Mulheres e creanças/Capítulo V

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CAPITULO V

As mães e as filhas

 

 

Venho ainda hoje fallar ás mães a respeito das suas filhas. Creio que é um meio de ser ouvida com attenção.

Se as mães são pela maior parte das vezes a causa inconsciente dos males que affligem a educação de seus filhos, não é d’ellas a culpa, que só levam em mira o bem e a felicidade dos queridos fructos das suas entranhas.

Mas o amor das mães é cego como um instincto, e como tal precisa de ser guiado e dirigido.

Entregues a si, transviadas pelas noções incompletas que já lhes eivaram de erros funestos a educação que receberam na infancia, ouvindo mais a voz da propria vaidade, que a voz austera da razão, as mães continuam a suppôr que na educação de uma menina se deve attender antes de tudo ás exterioridades brilhantes, que farão d’ella a favorita dos salões mundanos, a elegante e afamada cultora de todas as delicadas frivolidades sociaes.

Desde a burgueza, que, apenas sahe dos desfiladeiros sombrios da miseria, já cuida tão sómente em hombrear com as duquezas que inveja de longe, até á mais aristocratica descendente das antigas paladinas, todas teem as mesmas noções falsissimas ácerca da educação que suas filhas devem receber.

Não estudam os diversos espiritos que se propoem a adornar com as mesmas galas sediças; para ellas uma educação de senhora não varia.

Segue sempre a mesma norma absurdamente anachronica.

Os filhos são reclamados pela escola, pelo lyceu, pelo instituto, e teem de sujeitar-se ás regras acanhadas e incompletas da educação official; as filhas, debaixo da direcção mediata ou immediata das mães, começam no lar domestico a sua aprendizagem, que é como que a opposição systematica a todos os instinctos poderosos de que a natureza as dotou.

Turbulentas, como é natural que sejam as creanças, aprendem a suffocar a espontanea e salutar actividade dos seus pequenos membros. A primeira obrigação que reconhecem é a de não fazerem bulha.

Tornam-se taciturnas e sonsas.

O habito de contrariarem incessantemente os impulsos tão naturaes da sua idade, como que lhes abre o caminho para a hypocrisia, o peior e o mais vulgar dos vicios femininos.

Sentindo continuamente pesar-lhe sobre a cabeça uma pressão despotica, de que não podem reconhecer a justiça, aspiram instinctivamente ao livramento, teem surdas revoltas intimas, de que nenhum olhar sonda os segredos.

Não se desenvolvem na plena liberdade da natureza, ha nos seus corpos miudinhos um aspecto de enfezamento e de fraqueza que faz pena.

A vaidade maternal cuida então de as enfeitar; o vestuario das suas pequenas joias torna-se para as mães — para as mulheres — um negocio de alta e gravissima importancia.

Não ha nada que as satisfaça; os bordados finos, as rendas, as sedas, as plumas, os velludos, tudo se combina para adornar o gracioso e querido anjo.

Dous resultados inevitaveis:

A immobilidade a que este luxo condemna as suas victimas pequeninas, e a feroz vaidade de que elle lhes lança n’alma a primeira semente, que mais tarde ha de desatar-se em venenosos fructos.

A pequena assim vestida julga-se forçosamente de uma essencia superior ás que não podem competir com ella em opulencia; de um lado levanta-se o orgulho, de outro lado rasteja a inveja.

O gosto de ser contemplada, admirada, de excitar emulações raivosas, de ser apontada como um modelo de elegancia infantil, accende no espirito da creança a funesta luz que mais tarde ha de allumiar os erros da mulher.

Quando sôa emfim a hora em que o espirito exige a sua indispensavel cultura, o mesmo systema que até alli dominou na educação da pequenina continúa a fazer sentir a sua corruptora influencia.

« — Quero que a minha filha se não possa envergonhar de apparecer ao pé das mais ricas! — diz a mãe enfatuada na sua funesta vaidade.

 

 

Chamam-se os professores de dança, de musica, de linguas, de desenho, ou conduz-se a menina ao collegio mais afamado em prendas d’este genero.

Algumas mães exigem tambem que as filhas aprendam a bordar a lã, a bordar a ouro, a bordar sobre escomilha, a fazer crochet, flôres, pequenos trabalhos de agulha, proprios para ornamentação de um quarto de pensionista ingenua.

Outras, mais dadas á sciencia, querem uns elementos de geographia, alguma historia sagrada e profana, uma leve tintura de arithmetica.

Por cima de tudo isto um pó dourado de devoção elegante, ministrada pelo director das consciencias do high-life.

Não se admitte de modo nenhum que um velho sacerdote obscuro e despretencioso, cujos sermões não tenham fama, cujas predicas não sejam ouvidas, entre suspiros e lagrimas, pelas devotas da aristocracia, inicie a pequena neophyta nos mysterios subtis da doutrina catholica.

É indispensavel um padre galante, perfumado, estrangeiro, que torne o ensino da religião alguma cousa de artistico e de adocicado como elle.

Saber bem doutrina constitue um dos deveres de uma educação primorosa, e no entanto a filha que aprendeu, a mãe que a mandou ensinar, ignoram todos os deveres a que esta sciencia, a ser bem comprehendida, as obrigaria.

Sabem doutrina como sabem grammatica; quer dizer repetem de cór umas certas e determinadas regras de que não percebem a applicação pratica.

Aos quinze annos a menina preparada por estes elementos tem a sua educação completa.

Quer seja filha de um duque, quer seja filha de um fabricante, quer o seu destino a reserve para receber n’uma sala faustuosa os altos personagens da politica e da diplomacia, para fazer parte da côrte, para conviver n’um pé de intimidade com todos os grandes, e com todos os opulentos; quer ella tenha de partilhar as luctas obscuras de um modesto empregado, de um industrial de poucos haveres, de um artista desprotegido, é a mesma a sua educação moral, physica e intellectual.

Está do mesmo modo preparada para as luctas e para os combates da vida; tem a mesma força nos musculos, tem as mesmas faculdades no espirito, tem as mesmas noções na consciencia.

A burgueza ou a fidalga, com tanto que tenham dinheiro, teem os mesmos direitos, as mesmas aspirações, ambicionam para suas filhas o mesmo lugar na sociedade.

Mas o que deve confessar-se uma vez por todas é que esta educação, toda vaidade, toda orgulho frivolo, toda inutil ostentação, convem tão pouco á filha da aristocracia e da opulencia, como á filha da burguezia e da mediocridade.

Uma, collocada nos altos pincaros sociaes, precisa de ter o juizo recto e seguro para conhecer os homens, a graça ondeante e fina para os attrahir, o conhecimento profundo dos seus interesses e paixões, para os conciliar entre si; precisa de fallar a cada um a linguagem mais propria para o convencer e dominar; precisa de ser, junto de seu marido um auxiliar proficuo com que elle conte, uma intima e fiel alliada, que o ajude a conservar dignamente a posição que herdou dos seus avós ou que conquistou com o braço e com o pensamento.

A outra, n’uma esphera que é inferior á da primeira, segundo o ponto de vista social, mas que de feito lhe é superior, porque inclue mais altos e mais complexos deveres — a outra precisa de descer com seu marido á arena onde combatem os modernos trabalhadores, precisa de lhe ser em tudo e por tudo ajuda, guia e conselho, precisa de acceitar para si terriveis responsabilidades, para as quaes nenhuma lição a preparou!

Dir-me-hão que o nivelamento democratico das modernas sociedades dá a todos os mesmos direitos, porque dá a todos os mesmos deveres; que a mãe opulenta e nobre que cria suas filhas nos fôfos ocios da riqueza não sabe se em breve terá de vel-as curvadas ao peso da maxima miseria, assim como a mulher de um humilde empregado não sabe se verá sua filha ascender a uma prospera e brilhante posição, elevada por um d’esses casamentos que são vulgares, como d’antes eram raros.

D’accordo, meus senhores; mas essa hypothese em cousa alguma destróe a minha asserção, pois o que eu disse e repito é que a educação feminina, tal como hoje a entendem, para nenhuma classe da sociedade, para nenhuma posição brilhante ou precaria é util ou conveniente.

 

 

Que desenvolvimento moral, physico ou intellectual, póde adquirir-se partindo de tão errados principios?

A que fim se aspira, que fim se attinge, alcançando uma educação que tem por unica base a vaidade?

Pois a mulher, que levou annos e annos da sua vida a adquirir conhecimentos inuteis, está porventura armada para resistir ás tentações, ás adversidades, ás miserias, aos combates da vida?

Imagine-se, em contraposição a esta falsa cultura, que constitue o que os burguezes embebecidos em comico enthusiasmo chamam uma educação muito fina, imagine-se que as mães, juntando-se n’uma piedosa cruzada, conseguiam crear uma instituição moderna, onde suas filhas recebessem a educação que hoje lhes poderia servir, para se tornarem uteis na sociedade e na familia.

Quantas vezes não tenho eu acariciado em sonhos