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Mulheres e creanças/Capítulo XII

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CAPITULO XII

A toilette

 

 

As mulheres teem, na generalidade, um costume deploravel! Só se vestem e se enfeitam e querem ser amaveis para o publico.

O marido, ainda o mais feliz e mais extremoso, tem sempre um rival terrivel, um rival exigente, um rival que lhe rouba parte das prerogativas e lhe cerceia parte dos direitos.

Esse rival é o publico, é esse detestavel tyranno chamado tout le monde, a quem tudo se sacrifica, e do qual em recompensa só se recebem criticas e desdens!

Para elle nos vestimos, para elle levamos horas e horas a combinar o effeito da nossa toilette, para elle estamos defronte do espelho prendendo flores no cabello, inventando as difficeis architecturas do penteado, colhêr invejas e semear despeitos, de todas as ferozes exigencias sociaes, de que são submissas escravas!

Desfranzem a testa, ageitam um sorriso malicioso ou sentimental, consoante o genero da physionomia, mergulham o corpo nas tepidas e perfumadas caricias do banho, vestem-se, burnem-se, penteiam-se, pintam-se... e apparecem transformadas.

Durante umas poucas de horas estão no palco.

O auditorio é escrupulosissimo. Ao menor indicio que lhe destôe, manifesta sem piedade o seu desagrado.

Ellas, no entanto, suam sous le harnais, mas são intrepidas até á heroicidade.

Teem caricias felinas, sorrisos que adormecem a tristeza nos corações mais desconsolados, sabem ser engenhosas, cheias de invenções felizes, conseguem plenamente o seu fim, e ao deixarem a scena fica no ar uma impressão boa, quasi enternecida.

Chegou a occasião de voltar aos bastidores.

N’este caso os bastidores são a companhia do marido.

Oh! Como ellas veem cansadas, aborrecidas, cheias de tedio, e de desalento! Despem, com a voluptuosidade com que se despe um cilicio, todas essas elegancias que as torturavam; o sorriso ficticio apaga-se-lhes dos labios, a luz ficticia esmorece-lhes no olhar.

A pelle precisa de cold-cream, de veloutine, de todos os ingredientes nauseabundos: o cabello cahe-lhes aos pés, solto dos ganchos que o prendiam, e em quanto a aia, com um sorriso ladino, os recolhe cuidadosamente na caixa de cartão, o marido contempla assarapantado, cheio de ingenuo e comico assombro, aquella cabeça que ainda ha pouco, no orgulho com que se erguia, na magestade altiva com que ostentava o delicado edificio das tranças e dos riçados, lembrava uma das cabeças gentis que o seculo XVIII beijou com enlevos e que a guilhotina beijou com volupia selvagem.

O pé estreito e cambré, que ainda ha pouco nos circulos vertiginosos da valsa, fazia pensar n’aquellas andorinhas forasteiras, que roçam a terra com o vôo inquieto e leve, sacode as prisões que o ligavam dolorosamente, e dilata-se á vontade, com uma furia de independencia verdadeiramente demagogica e revolucionaria, na primeira chinela que apparece.

Todo o aspecto physico se transfigura e — consequencia fatal d’esta mesma causa — o aspecto moral transfigura-se tambem.

Como a dissimulação eterna é impossivel ainda aos mais hypocritas, os defeitos que tão cuidadosamente se esconderam ao publico, revelam-se ao marido.

Riamos sem vontade ainda agora! Com a fortuna! Desabafemos o nosso mau humor, visto que estamos em casa!

Tinhamos paciencia para aturar com expressão interessada e benevola as sensaborias muito estafadas de um senhor engravatado, de luvas côr de canario e bigode retorcido e insolente?...

Sejamos agora desapiedadas para as historias já um pouco velhas, mas em summa bastante apresentaveis que o nosso marido nos quer contar!

Fingir! sempre fingir!... Impossivel!

Sejamos verdadeiras, ao menos n’esta occasião, já que só desagradamos áquelle que tem obrigação restricta de nos aturar, quer queira, quer não!

Isto, que á primeira vista parece insignificante, quasi frivolo, tem um alcance enorme no destino de vv. ex.as, minhas senhoras!

O marido, ao perceber que de todas as mulheres a mais desagradavel é a sua, tem um momento de profunda tristeza, ao qual succedem uns poucos de annos de revolta!

É assim que se destroe a familia, é assim que se torna desflorido e deserto o lar.

Em compensação enchem-se os salões, os clubs, os theatros, os botequins. Resta saber se uma das cousas póde n’uma sociedade honesta e bem constituida supprir a outra.

Sejam mais garridas em casa, e sejam-no menos fóra; aspirem á elegancia desprezando os mentirosos artificios; procurem, antes de tudo, agradar á familia e conseguirão a pouco e pouco, sem esforço premeditado, agradar aos estranhos.

Uma familia boa, unida e feliz é como um fóco de calor que attrahe e que irradia luz benefica.

Ha casas onde se entra e onde nos sentimos como n’um meio sympathico e captivante.

São sempre as casas em que a mulher possue a intelligencia do coração, essa cousa rara e preciosa, que suppre a formosura, o talento e todos os attractivos do espirito.

Vestir-se com uma graça despretenciosa e simples, rodear-se de cousas bellas, sentir e communicar em torno de si o prazer das distracções delicadas, ser em casa um perfume vivo, uma harmonia suave que não cansa, uma luz serena que allumia e que não deslumbra, eis o que é ser mulher na accepção completa da palavra.

Toda a mulher tem de ser coquette para o marido emquanto para o marido a eterna tentação for o pômo vedado.

Em geral só se conhecem os dous extremos.

Ou a matrona envolvida na sua virtude como n’uma couraça, temivel, assanhadiça, formidavel, imaginando merecer todas as homenagens do esposo, porque afugenta com medonho aspecto as homenagens de todos os outros; ou então a mulher dos salões, a flôr exotica das nossas estufas mundanas, Salamandra que vive no fogo, Ninon de biscuit que se compraz nas adorações que provoca e que inspira, infativel actriz que só á luz da ribalta sabe desenvolver e manifestar todos os seus recursos.

Entre os dous contrastes é que fica a verdade.

Mulheres, desenvolvei no seio da familia as graças que desperdiçaes pelas voragens d’este mundo.

Tende todas as flexibilidades e todas as resistentencias, todas as graças e todas as energias; sêde o encanto, sem deixardes de ser a virtude; e sobretudo perdei de vista o publico, esse brutal amante que vos absorve, que vos perde e que nunca vos corresponde.