Não é mel para boca de asno/I

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Era um dia de procissão de Corpus Christi, que a igreja do Sacramento preparara com certo luxo.

A Rua do Sacramento, a do Hospício, o Largo do Rocio estavam mais ou menos cheios de povo que aguardava o préstito religioso.

Na janela de uma casa do Rocio, atulhada de gente como todas as janelas daquela rua, havia três moças, duas das quais pareciam irmãs, não só pela semelhança das feições, mas ainda pela identidade dos vestidos.

A diferença é que uma era morena, e possuía belíssimos cabelos negros, ao passo que a outra tinha a tez clara e os cabelos castanhos.

Essa era a diferença que se podia enxergar cá debaixo, porque se as examinássemos de perto veríamos no rosto de cada uma delas os traços distintivos que separavam aquelas duas almas.

Para sabermos os seus nomes não é preciso subir à casa; basta aproximarmo-nos de dois rapazes que da esquina da Rua do Conde olham para a casa, que ficava do lado da Rua do Espírito Santo.

— Vês? diz um deles ao outro levantando um pouco a bengala na direção da casa.

— Vejo; são as Azevedos. Quem é a outra?

— É uma prima delas.

— Não é feia.

— Mas é uma cabeça de vento. Queres ir lá?

— Não; vou passear.

— Passear, Meneses! Não sou tão tolo que o acredite.

— Por quê?

— Porque eu sei onde vais.

Meneses sorriu, e olhou para o interlocutor perguntando:

— É uma novidade que eu tinha vontade de saber.

— Vais para casa da tua Vênus.

— Não conheço!

— Nem eu; mas é natural...

— Ah! é natural! Adeus, Marques.

— Adeus, Meneses.

E os dois rapazes separaram-se; Marques dirigiu-se para a casa onde estavam as três moças, e Meneses seguiu caminho pelo lado da Petalógica.

Se Marques olhasse para trás, veria que Meneses, apenas chegou à esquina da Rua dos Ciganos, parou de novo e lançou um último olhar para a janela em questão; no fim de alguns segundos seguiu viagem.

Marques subiu pela escada acima. As raparigas, que o tinham visto entrar, foram recebê-lo alegremente.

— Não era o dr. Meneses quem estava com o senhor? perguntou uma das Azevedos.

— Era, respondeu Marques; convidei-o a subir mas ele não quis... Talvez fizesse mal, continuou Marques, a casa não é minha, não acha, D. Margarida?

D. Margarida era uma senhora que estava assentada na sala; era a dona da casa, tia das Azevedos, e mãe da terceira moça que, com estas, estava à janela.

— Ora, ande lá, disse D. Margarida, faça agora cerimônias comigo. Bem sabe que esta casa é sua e dos seus amigos. A procissão já saiu?

— Para lhe falar a verdade, não sei; eu venho do lado do Campo.

— Passou lá por casa? perguntou uma das Azevedos, a morena.

— Passei, D. Luizinha; estava fechada.

— É natural; papai anda passeando e nós estamos aqui.

Marques sentou-se; Luizinha foi para o piano, com a prima, e começou a tocar não sei que variações sobre motivos da Marta.

Quanto à irmã de Luizinha, essa foi encostar-se à janela, em posição tal que os seus dois belos olhos castanhos observavam quanto se passava na sala; o corpo estava meio voltado para a rua, mas a cabeça estava voltada para dentro.

Quando digo que ela observava quanto se passava na sala, uso de uma expressão mal cabida, porque os olhos da moça fitavam-se nos de Marques que achava meio de atender a D. Margarida e às olhadelas da jovem Hortênsia.

Era nem mais nem menos um namoro.

Hortênsia merecia bem que um rapaz se apaixonasse por ela. Não era alta, mas era esbelta, e sobretudo vestia com elegância suprema. Tinha duas coisas admiráveis: os olhos que eram rasgados e profundos, e as mãos que pareciam ter sido cortadas a alguma obra-prima da estatuária.

Comparando com ela, e atendendo-se apenas ao exterior, Marques era uma bela escolha para o coração de Hortênsia. Era bonito, mas a sua beleza não era nem efeminada, nem máscula; apenas um meio-termo; tinha coisas de uma e coisas de outra: uma fronte de deus Marte e um olhar de Ganimedes.

Era um amor já esboçado que havia entre aquelas duas criaturas. Marques, se compreendesse Hortênsia como aquele olhar estava pedindo, seria um homem feliz. Compreendia?