Não é mel para boca de asno/IV
Um dia Meneses levantou-se da cama com a resolução firme de esquecer Hortênsia.
— Por que motivo, dizia ele consigo, hei de alimentar um amor até aqui impossível, agora criminoso? Não tarda muito que os veja casados, e tudo estará acabado para mim. Preciso viver; tenho necessidade do futuro. Há um grande meio; é o trabalho e o estudo.
Desse dia em diante Meneses redobrou de esforços; dividiu-se entre o trabalho e o estudo; lia até alta noite, e procurava formar-se completamente na difícil ciência que abraçara.
Procurava conscienciosamente esquecer a noiva do amigo.
Uma noite encontrou Marques no teatro, porque devemos dizer que a fim de não ser confidente dos amores felizes de Hortênsia e Marques, o jovem advogado evitava o mais que podia achar-se com ele.
Marques, apenas o viu, deu-lhe a notícia de que Hortênsia lhe mandara lembranças na última carta.
— É uma carta de queixas, meu caro Meneses; tenho pena de a ter deixado em casa. Como eu me demorei em mandar-lhe a última carta minha, Hortênsia diz-me que eu a esqueço. Vê lá! Mas eu já mandei dizer-lhe que não; que a amo como sempre. Coisas de namorados que não te interessam a ti. Que tens feito?
— Trabalho agora muito, disse Meneses.
— Metido nos autos! que maçada!
— Não; gosto daquilo.
— Ah! gostas... há quem goste do amarelo.
— Os autos são maçantes, mas a ciência é bela.
— É um aforismo que eu dispenso. Melhor processo é aquilo.
E Marques apontou para um camarote de segunda ordem.
Meneses olhou e viu uma mulher vestida de preto, sozinha, olhando para o lado em que os dois rapazes se achavam.
— Que achas? disse Marques.
— É bonita. Quem é?
— É uma mulher...
— Respeito o mistério.
— Não me interrompas: é uma mulher adorável e incomparável...
— Se Hortênsia te ouvisse, disse Meneses sorrindo.
— Oh! ela é mulher à parte, é a minha esposa... está fora de questão. Demais, isto são pecadilhos de pequena monta. Hortênsia há de acostumar-se a eles.
Meneses não respondeu; mas disse consigo: Pobre Hortênsia!
Marques propôs a Meneses apresentá-lo à dama em questão. Meneses recusou.
Acabado o espetáculo saíram os dois. À porta, Meneses despediu-se de Marques, mas este, depois de indagar por que lado ia ele, disse que o acompanhava. Adiante, num lugar pouco freqüentado, estava um carro parado.
— É o meu carro; vou deixar-te em casa, disse Marques.
— Mas eu ainda vou tomar chá aí em qualquer hotel.
— Toma chá comigo.
E arrastou Meneses para o carro.
No fundo do carro estava a mulher do teatro.
Meneses já não podia recusar e entrou.
O carro seguiu para a casa da mulher, que Marques disse chamar-se Sofia.
Duas horas depois, Meneses seguia para casa, a pé, e meditando profundamente no futuro que ia ter a noiva de Marques.
Este não ocultara a Sofia o projeto do casamento, porque a rapariga, estando à mesa do chá, disse a Meneses:
— Que me diz, doutor, ao casamento deste senhorzinho?
— Digo que é um belo casamento.
— Que tolice! casar-se nesta idade!
Um mês depois desta cena estava Meneses no escritório, quando entrou o velho Azevedo com as feições um pouco alteradas.
— Que tem? disse-lhe o advogado.
— Onde está o Marques?
— Não o vejo há oito dias.
— Nem o verá mais, disse Azevedo fulo de cólera.
— Por quê?
— Veja isto.
E mostrou-lhe o Jornal do Commercio desse dia, onde vinha, entre os passageiros para o Rio da Prata, o nome do noivo de Hortênsia.
— Partiu para o Rio da Prata... Não leu isto?
— Leio agora, porque não tenho tempo de ler tudo. Que iria lá fazer?
— Foi acompanhar esta passageira.
E Azevedo apontou para o nome de Sofia.
— Seria isso? balbuciou Meneses, procurando desculpar o amigo.
— Foi. Eu sabia há dias que havia alguma coisa; recebi duas cartas anônimas que me diziam estar o meu futuro genro de amores com aquela mulher. Entristeceu-me o fato. A coisa era tão verdadeira que ele escasseou as suas visitas à minha casa, e a pobre Hortênsia, em duas cartas que me escreveu ultimamente, dizia ter pressentimento de que não seria feliz. Coitadinha! se ela soubesse! há de sabê-lo; é impossível que não saiba! e ela ama-o.
O advogado procurou acalmar o pai de Hortênsia, censurou o procedimento de Marques, e incumbiu-se de escrever-lhe para ver se o trazia de novo ao caminho do dever.
Mas Azevedo recusou; disse-lhe que era já impossível; e que, se nas vésperas do enlace Marques procedia assim, o que não faria quando fosse casado?
— É melhor que Hortênsia sofra de uma vez do que a vida inteira, disse ele.
Azevedo, nesse mesmo dia, escreveu à filha que viesse para a corte.
Não foi difícil convencer a Hortênsia. Ela própria, assustada com o escassear da correspondência de Marques, estava decidida a isso.
Daí a cinco dias estavam todas em casa.