Não é mel para boca de asno/III
Uma noite Marques anunciou em casa de Azevedo que Meneses estava doente, e por isso não ia lá.
O velho Azevedo e Hortênsia sentiram a doença do moço. Luizinha recebeu a notícia com indiferença.
Indagaram da doença; mas o próprio Marques não sabia o que era.
A doença era uma febre que cedeu no fim de quinze dias à ação da medicina. No fim de vinte dias Meneses apresentou-se em casa de Azevedo, ainda pálido e magro.
Hortênsia doeu-se de o ver assim. Compreendeu que aquele amor não correspondido entrava por muito na doença de Meneses. Sem que lhe coubesse culpa por isso, Hortênsia teve remorsos de lho ter inspirado.
Era o mesmo que se a flor tivesse culpa do perfume que exala, ou a estrela do fulgor que despede de si.
Nessa mesma noite Marques disse a Hortênsia que ia pedi-la em casamento no dia seguinte.
— Autoriza-me? perguntou ele.
— Com uma condição.
— Qual?
— É que o fará secretamente, e que nada divulgará até o dia do casamento, que deve ser daqui a alguns meses.
— Por que esta condição?
— Já me nega o direito de fazer uma condição?
Marques calou-se, sem compreender.
Era fácil, entretanto, entrar no pensamento íntimo de Hortênsia.
A moça não queria com a publicidade imediata do casamento amargurar fatalmente a existência de Meneses.
Contava ela que, pouco depois do pedido e do ajuste, alcançaria licença do pai para ir passar fora dois ou três meses.
— É quanto basta, pensava ela, para que o outro me esqueça e não sofra.
Esta delicadeza de sentimento, que revelava em Hortênsia uma rara elevação de espírito e uma alma perfeita, se Marques pudesse compreendê-la e adivinhá-la, talvez condenasse a moça.
Entretanto, Hortênsia obrava de boa-fé. Queria ser feliz, mas teria remorsos se, para sê-lo, houvesse de fazer padecer alguém.
Marques, conforme a promessa, foi no dia seguinte à casa de Azevedo, e na forma tradicional pediu a mão de Hortênsia.
O pai da moça não tinha objeção alguma; e apenas, pro forma, impôs a condição da aquiescência da filha, que não tardou em dá-la.
Resolveu-se que o casamento seria dali a seis meses; e logo daí a dois dias Hortênsia pediu ao pai para ir visitar o tio, que residia em Valença.
Azevedo consentiu.
Marques, apenas recebeu a resposta afirmativa de Azevedo em relação ao casamento, repetiu a declaração de que até o dia aprazado o casamento seria um inviolável segredo.
— Mas, pensou ele consigo, para Meneses eu não tenho segredos, e este devo dizer-lho, sob pena de mostrar-me mau amigo.
O moço estava ansioso por comunicar a alguém a sua felicidade. Foi dali para a casa em que Meneses advogava.
— Grande notícia, disse ele ao entrar.
— O que é?
— Vou casar-me.
— Com a Hortênsia?
— Com a Hortênsia.
Meneses empalideceu, e sentiu que o coração batia-lhe com força. Ele esperava por aquilo mesmo; mas ouvir a declaração do fato, naturalmente próximo, adquirir a certeza de que a amada de seu coração já era de outro, não só pelo amor, como pelos laços de uma próxima e assentada aliança, era uma tortura a que ele não podia fugir nem dissimular.
A sua comoção foi tão visível, que Marques perguntou-lhe:
— Que tens?
— Nada; restos daquela moléstia. Ando muito doente. Não é nada. Então, vais casar-te? Dou-te os meus parabéns.
— Obrigado, meu amigo.
— Quando é o casamento?
— Daqui a seis meses.
— Tão tarde!
— É vontade dela. Seja como for, é coisa assentada. Ora, não sei que sinto com isto; é uma impressão nova. Custa-me a crer que eu vá casar deveras...
— Por quê?
— Eu sei lá! Também, se não fosse ela, não casava. É bonita a minha noiva, não?
— É.
— E ama-me!... Queres ver a última carta dela?
Meneses dispensava bem a leitura da carta; mas como?
Marques tirou a carta do bolso e começou a lê-la; Meneses fazia esforços para não prestar atenção ao que ouvia.
Mas era debalde.
Ouvia tudo; e cada uma daquelas palavras, cada um daqueles protestos era uma punhalada que o pobre moço recebia no coração.
Quando Marques saiu, Meneses retirou-se para casa, aturdido como se o houvessem deitado ao fundo de um grande abismo, ou como se acabasse de ouvir a sua sentença de morte.
Amava perdidamente a uma mulher que o não amava, que amava a outro e que ia casar. O fato é comum; os que o tiverem conhecido por experiência própria avaliarão a dor do pobre moço.
Daí a dias efetuou-se a viagem de Hortênsia, que foi com a irmã e a tia para Valença. Marques não dissimulou a contrariedade que sentia com semelhante viagem, cuja razão não compreendia. Mas Hortênsia facilmente o convenceu de que era necessária aquela viagem, e despediu-se dele com lágrimas.
A leitora deste romance já terá reparado que Hortênsia exercia sobre Marques uma influência que tinha causa na superioridade do seu espírito. Amava-o, como devem amar as rainhas, dominando.
Marques sentiu muito a partida de Hortênsia, e o disse a Meneses.
O noivo amava a noiva; mas cumpre dizer que a intensidade do seu afeto não era a mesma que a noiva sentia por ele.
Marques gostava de Hortênsia: é a verdadeira expressão.
Casava-se porque gostava dela, e porque era uma mulher formosa, requestada por muitos, elegante, e finalmente porque a idéia do casamento fazia-lhe o efeito de um mistério novo para ele, que já andava ao corrente de todos os mistérios mais ou menos novos.
Agora por que brinco do destino uma mulher superior apaixonou-se por um rapaz tão frívolo?
A pergunta é ingênua e ociosa.
Nada mais comum do que estas alianças entre dois corações antípodas; nada mais raro do que uma união perfeitamente acertada.
Separando-se de Marques, a filha de Azevedo não se esquecia dele um só instante. Apenas chegou a Valença, escreveu-lhe uma carta, repassada de saudades, cheia de protestos.
Marques respondeu com outra epístola igualmente ardente, e cheia de protestos análogos.
Ambos almejavam pelo dia feliz do casamento.
Ficou entendido que a correspondência seria regular e freqüente.
O noivo de Hortênsia não deixava de comunicar ao amigo todas as cartas da noiva, e bem assim as respostas que lhe mandava, e que eram sujeitas à correção literária de Meneses.
O pobre advogado estava em uma posição dolorosa; mas não podia escapar-lhe sem abrir o seu coração.
Era o que ele não queria; tinha a altivez do infortúnio.