Natal (artigo)
Disse-nos anteontem o telégrafo que as festas de hoje, em Inglaterra, serão desbotadas e tristes. O grande povo do Norte não terá este ano o righte merrie Christmas dos seus antepassados. Através dos seus lares, entre as crianças reunidas, o coração dos pais não sussurrará o contentamento dos velhos cantos de Herrick:
Come, bring with a noise,
My merrie, merrie boyes,
The Christmas Log to the firing.
Os meninos ali poderão lembrar-se com saudades do Natal de há um ano como dos de outros séculos os contempladores das coisas antigas:
England was Merry England, when
Old Christmas brought his sports again.
Entre os Natais históricos da Grã-Bretanha ficará este como o mais remoto de todos, o de 790, quando os Welsh acometeram de improviso os soldados de Offa, entre as alegrias desta data, trucidando-os; como o de 878, quando, em meio de regozijos semelhantes, se viu surpreendido Alfredo por Guthrum, cujos dinamarqueses caíram sobre o monarca inglês e suas forças, desbaratando-as, e foragindo-o; como o de 1065, quando Eduardo, maldoente e preso ao leito, não podia assistir à consagração da abadia de Westminster; como os de 1518 e 1525, quando a praga da smeating sickness, devastando a capital, obrigava o rei a não comemorar festivamente o nascimento do Salvador, ou a despir da sua solenidade e ocultá-las em Eltham, no mais íntimo de uma corte reduzida, as celebrações do costume.
Nos olhos da soberana da maior das nações da terra não haverá esta noite as lágrimas de Eduardo II curtindo o Natal de 1326 no cárcere de Kenilworth, nem as do rei de França e David de Escócia decorando com o seu cativeiro, no séquito do outro Eduardo, as galas do Natal de 1328. Mas a alegria fugiu deles, e a amargura, que os turva, não permite à mais augusta das majestades humanas esconder o pranto, única gema da sua coroa que lhe cintila vivamente na melancolia destas provações. Mais cruel do que peste, a guerra dizima a nobre raça, cujo sangue tem levado a civilização a todos os continentes, a mais benfazeja das nações, sobrepondo à viuvez inconsolável da rainha, mãe do seu povo, o luto de uma orfandade, cujas vítimas a guerra multiplica e arrebata como o pó ao sopro mau do vento do deserto.
A política da força, para a qual a ciência e o gênio de uma era de maravilhas ainda não descobriram sucedâneo eficaz, introduziu a desgraça e a morte no seio da família inglesa. Ao fragor das suas decepções o mundo inteiro se alvorota. A ela acorre de todos os pontos do horizonte a prole das nações, com que a sua assombrosa maternidade tem coberto a superfície do globo. Mas os reveses se repetem sobre a sua fortuna, como se um capricho do destino se divertisse em a converter de martelo em bigorna.
Todas as paixões subalternas da nossa espécie, a ingratidão, a inveja e a cobiça dos Estados, mais sórdidas do que as dos indivíduos, agitam, corvejando, as asas rasteiras em torno da águia dos mares, colhida, por uma vertigem das alturas excessivas, entre as arestas de um erro desastroso. E o menor dos povos, um dos menos civilizados, um dos mais pobres da descendência da Europa, vence, abate, sacia de derrotas a mais vasta, a mais sólida, a mais opulenta das potências européias.
É o mais duro de todos os naufrágios este naufrágio do orgulho humano nas costas naufragosas daquele extremo do mundo, onde a região tormentória, subjugada pelos precursores da Inglaterra no domínio das vagas, parecia ter encerrado para sempre a ameaça dos seus perigos nas estrofes imortais, em que o poeta daquelas águas entoou o maior dos cantos do oceano. Das epopéias d’África nenhuma ecoará em acentos mais profundos na imaginação da humanidade. E, no dia de hoje, para o homem dos nossos dias, embotado à singeleza das imagens primitivas, o espetáculo divino do berço do Cristo entre as palhas de um curral falará menos eloqüentemente aos fracos e aos fortes, aos grandes e aos pequenos, das misérias da nossa soberba que essas vitórias daquela mesquinha colônia agreste sobre a mais alta encarnação contemporânea da inteligência e do poder humano. Exatamente sob o governo do estadista, cujas teorias, ainda há pouco, indigitavam as nações débeis como o quinhão providencial das mais florescentes, é que a mais próspera, a mais rica, a mais robusta de todas havia de ser humilhada na sua grandeza titânica pelo heroísmo de um pigmeu.
Aí está por que agora, às margens do Tâmisa, através das vidraças embaciadas pela neve, as estrelas do céu não rebrilham, com o mesmo fulgor, ao coração dos inocentinhos, nos ramos da árvore do Natal. O fumo das batalhas do Transvaal projeta a sua sombra no teu presepe, ó Jesus, e envolve em dolorosa ansiedade a redondeza do planeta. Das costas setentrionais do hemisfério luminoso ao meio-dia do hemisfério obscuro, um meridiano de ferro assinala a singradura contínua dos navios, que transportam em parcelas formidáveis o arsenal das armas do gigante, hoje vencido, amanhã vitorioso. Tudo para determinar, afinal, a sorte do pleito violento entre dois povos criados no Evangelho. Cada um deles afirma a certeza de pelejar sob os auspícios daquela divindade, que se deu a conhecer às criaturas, nascendo num estábulo e morrendo numa cruz. E por ela se odeiam, por ela se exterminam, por ela empenham em derramar a morte esses tesoiros do vigor dos atletas, da tenacidade dos justos, da ciência dos inspirados, com que a natureza dota as raças privilegiadas, a fim de propagarem o bem, e enobrecerem a vida.
De modo, ó Cristo, que estas duas partes da cristandade se despedaçam, na mais pura sinceridade da fé, em nome da tua lei, de misericórdia, tal qual antes de vires ao mundo, quando cada povo tinha o seu deus, inimigo dos mais deuses, ou como quando, antes de se revelar a justiça ao gênero humano, os litígios do direito se solviam pelo azar dos combates singulares. De um e outro lado, em ambos os acampamentos, as mãos ensangüentadas no fatricídio se estarão levantando ao mesmo tempo, neste momento, para esperança, cujo benefício borbota no teu seio, da mesma fonte que a caridade, e cada qual porfiará em te honrar melhor, associando aos crimes da sua ambição, ou da sua ferocidade, a tua influência inseparável, da paz.
Estas as flores do teu Natal, quase no derradeiro ano do século que se quer chamar das luzes. Permite, ó filho de Maria, que vejamos o teu, o século do Cristo. Porque mil e novecentos anos da tua palavra e das tuas obras não bastaram, para tornar os homens menos pagãos do que os súditos dos césares romanos. Mais do que a incredulidade de Adriano, erigindo um templo a Júpiter entre as oliveiras do monte que presenciou a tua ascensão, um templo a Vênus no Gólgota, que assistiu ao teu martírio, um templo a Adônis nas grutas de Belém, que atestam o teu nascimento, deve ofender a tua bondade, e infamar a tua crença a injúria deste cristianismo caçador de homens, cujas preces, Deus da bondade e do perdão, te envolvem na cumplicidade dos sacrifícios mais atrozes.