Noções Elementares de Archeologia/Prologo

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PROLOGO
 

 

N’este seculo, em que a civilisação tem caminhado progressivamente nas principaes nações, não podia esquecer por mais tempo um estudo que consiste em investigar o modo como começára a existencia da raça humana desde o berço até o seu simultaneo desenvolvimento, não só dos objectos necessarios para a defeza exterior, como em relação aos usos domesticos e habitações: conseguindo-se por este curioso estudo formar juizo seguro ácerca da existencia interior do viver e dos costumes dos primitivos habitantes da terra.

Depois do cataclismo que passou o planeta em que existiram, e das lutas encarniçadas e continuas das differentes raças, as quaes se disputavam tenazmente a posse do territorio mais fertil e mais ameno, tendo muitas d'essas raças já desapparecido do mundo por inteiramente destruidas, e em outros se tenham confundido os elementos das suas respectivas nacionalidades, pois que nenhum d'elles nos deixou a historia escripta d'esses tempos remotos; a sua existencia rude e aventurosa não lhes proporcionavam o poderem cultivar a intelligencia, nem suavisar os costumes, para se dedicarem ao aperfeiçoamento intellectual: portanto, só pelos vestigios da sua imperfeita industria, os quaes se acham encerrados entre as camadas successivas da terra, só por diversos fragmentos, elles nos poderam revelar a sua vida social, e nos mostraram o grau de sua nascente civilisação. Assim formulâmos a historia, ainda que incompleta nos primitivos tempos da terra habitada, e descobrindo os segredos d'essa existencia, saberemos quaes foram os esforços da intelligencia humana desde o seu alvorecer.

Quando os romanos se impozeram aos outros povos, e em repetidas conquistas ampliaram o seu dominio no antigo mundo, invadiram o territorio d'essas raças indigenas, e depois de renhidas batalhas o povo-rei subjugou-as, hasteando entre ellas a aguia romana; porém n'essas épocas já havia historiadores que nos deixaram as narrações de taes feitos: assim o estudo d'esses acontecimentos, não é tão difficil, porque não precisâmos de ir inteiramente á crusta terraquea pedir-lhe os seus segredos.

A invasão dos barbaros do Norte veiu depois desapossar os romanos de suas conquistas, e a destruição que ella causou foi total, e de tal modo, que aos actos do elemento da parte mais feroz d'essas hordas se ficou chamando vandalismo. Se um cataclismo terrestre havia, pois, feito desapparecer antes os vestigios dos povos mais antigos do mundo, os barbaros do Norte não foram menos prejudiciaes por aniquilarem a civilisacão que os romanos haviam plantado na Europa.

Todos conhecem a decadencia do Baixo-Imperio: as guerras continuas; o desprezo e o esquecimento da instrucção; até que appareceu um homem de animo forte e de intelligencia superior, que, apoderando-se do poder, formou um novo imperio, e pela sua sabedoria e por suas victorias alcançou a gloria de haver feito reviver o explendor da civilisação na Europa.

A idade media foi fecunda em acontecimentos, que prepararam os povos para aguardarem uma era, em que os seus direitos e a sua civilisação triumphassem das arbitrariedades e dos vexames que soffriam; depois surgiu o renascimento das lettras e das artes, que foi o prenuncio da nova civilisação.

Fica, portanto, reconhecida a necessidade de um estudo especial dos fragmentos e das ruinas dos antigos para formarmos, como já dissemos, justa idéa dos usos, costumes e crenças dos primeiros habitantes do mundo, e principalmente dos que existiram na Europa, muito mais interessante para nós, por vivermos no territorio occupado por elles. Poderemos d'este modo dirigir os nossos especiaes estudos para a Lusitania, e entrar nas mais minuciosas investigações com respeito aos tumulos, ás fortificações, aos templos, aos ornatos, ás habitações, a tudo emfim que determina e constitue a sciencia da archeologia, com a qual supprimos a falta da historia escripta.

Foram os allemães, os inglezes e os francezes os primeiros que trataram d'essas curiosas investigações; e os sabios que se dedicaram a taes e tão uteis estudos, principalmente Mr. de Caumont, e outros, que publicaram obras de grande merito, são dignos da nossa admiração e do nosso reconhecimento, porque, procurando as origens da industria humana, nos revelaram interessantes conhecimentos, que não só serviram para coordenar a historia das épocas mais remotas, mas tambem para estimular o desejo de conservar as antiguidades que estavam dispersas e desprezadas, attestando ignorancia e incuria.

Em Portugal nunca se pensara n'este ramo de instrucção, posto que em alvará de 14 de agosto de 1721 se ordenasse que se fossem colligindo as informações indispensaveis e se adquirissem objectos antigos, que facilitassem o estudo da archeologia, porém ficou em letra morta; e tanto assim que só em 1864 se organisou o primeiro museu archeologico, por iniciativa da pessoa que escreve estas linhas, fazendo o governo para esse fim a concessão das ruinas da monumental egreja gothica do Carmo, de Lisboa, onde tambem depois estabelecemos em annos successivos um curso ácerca da historia geral da architectura.

Como quer que seja, a sciencia da archeologia não fôra cultivada entre nós methodicamente, e por isso não deve estranhar-se que não apparecesse até hoje, em Portugal, alguma obra elementar que auxiliasse o seu estudo. Para supprir tal falta, ousamos nós mandar imprimir um resumido trabalho, que comprehende a descripção dos objectos antigos, desde a edade de pedra até ao seculo XVII, tomando para norma a notavel obra do sr. de Caumont, o qual, além de distinguir-nos com a sua apreciavel amisade, nos auctorisou a servirmo-nos dos seus admiraveis trabalhos; e já que nos é licito honrar-lhe aqui a memoria gloriosa, sejam estas paginas consagradas ao illustre fundador da sciencia archeologica em França, como levantado a um dos testemunhos da nossa veneração.

No volume, que vamos publicar, e cujos fundamentos lançámos haverá sete annos, estão illustrados corn gravuras numerosas, mais de 300 no texto, as passagens em que se tornava indispensavel esse meio de observação; seguindo, quanto possivel, a obra do sr. de Caumont, como já indicámos, procuramos ao mesmo tempo amplial-a com as explicações das antiguidades encontradas em Portugal, interessando assim ainda mais os nossos compatriotas.

Suppomos que este livro poderá ser tambem de proveito nas nossas escolas, onde é tão geralmente reconhecida a necessidade de livros especiaes, que fallem aos alumnos de assumptos que são hoje do dominio de uma educação liberal; assim se tornarão adeptos do estudo e da sciencia archeologica, que lhe fornece as primeiras bases, para que sejam outros tantos propagandistas da conservação da nossa arte e das nossas preciosidades archeologicas.

Apezar de ser trabalho complexo e difficil, não só para a nossa limitada intelligencia, mas tambem pelos escassos recursos de que podemos dispor para uma publicação d'esta ordem, o nosso vivo desejo de divulgar o gosto pela archeologia, de satisfazer ao constante empenho em estimular o estudo d'esta sciencia indispensavel para bem avaliar a historia da arte em Portugal, sirva comtudo de attenuante ás faltas que houvessemos de commetter. E tambem, digamol-o, ficam aqui os cimentos de obra mais perfeita e de maior tomo para os que possam lançar-lhe hombros mais robustos e intelligencia mais apurada. Os que prezam o trabalho e amem o estudo relevem a nossa ousadia, e deitem-a á conta da boa vontade e da sinceridade com que sempre tentámos bem servir a patria.

17 de Maio de 1877.