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Rompendo o ultimo laço
Que ainda á terra as prendia,
Encontrárão-se no espaço
Duas almas. Parecia
Que o destino as convocára

Para aquella mesma hora;
E livres, livres agora,
Correm a estrada do céo,
Vão ver a divina face:
Uma era a de Lovelace,
Era a outra a de Romeo.

Voavão... porém, voando
Fallavão ambas. E o céo
Ia as vozes escutando
Das duas almas. Romeo
De Lovelace indagava
Que fizera n'esta vida
E que saudades levava.

«Eu amei... mas quantas, quantas,
E como, e como não sei;
Não seria o amor mais puro,
Mas o certo é que as amei.
Se era tão fundo e tão vasto
O meu pobre coração!
Cada dia era uma gloria,
Cada hora uma paixão.
Amei todas; e na historia
Dos amores que senti

Nenhuma d'aquellas bellas
Deixou de escrever por si.

«Nem a patricia de Helena,
De verde myrtho c'roada,
Nascida como açucena
Pelos zephyros beijada,
Aos brandos raios da lua,
Á voz das nymphas do mar,
Trança loura, espadua nua,
Calma fronte e calmo olhar.

«Nem a belleza latina,
Nervosa, ardente, robusta,
Levantando a voz augusta
Pela margem peregrina,
Onde do écho em seus lamentos,
Por virtude soberana,
Repete a todos os ventos
A nota virgiliana.

«Nem a doce, aerea Ingleza,
Que os ventos frios do norte
Fizerão fria de morte
Mas divina de belleza.

«Nem a ardente Castelhana,
Córada ao sol de Madrid,
Belleza tão soberana,
Tão despotica no amor,
Que troca os trophéos de um Cid
Pelo olhar de um trovador.

«Nem a virgem pensativa
Que as margens do velho Rheno,
Como a pura sensitiva
Vive das auras do céo
E murcha ao mais leve aceno
De mãos humanas; tão pura
Como aquella Margarida
Que a Fausto um dia encontrou.

«E muitas mais, e amei todas,
Todas minha alma encerrou.
Foi essa a minha virtude,
Era esse o meu condão.
Que importava a latitude?
Era o mesmo coração,
Os mesmos labios, o mesmo
Arder na chamma fatal....
Amei a todas e a esmo.»

Lovelace concluíra;
Entravão ambos no céo;
E o Senhor que tudo ouvira,
Voltou os olhos immensos
Para a alma de Romeo:
«E tu? — Eu amei na vida
Uma só vez, e subi
D'aquella cruenta lida,
Senhor, a acolher-me em ti.»
Das duas almas, a pura,
A formosa, olhando em face
A divindade ficou;
E a alma de Lovelace
De novo á terra baixou.

D'aqui vem que a terra conta,
Por um decreto do céo,
Cem Lovelaces n'um dia
E em cem annos um Romeo.