No País dos Ianques/IV
A hospitaleira sociedade de Jamaica havia nos conquistado a simpatia. Todos sentimos deixar tão cedo aquela encantadora ilha, cujos habitantes nos tinham prodigalizado tão generoso acolhimento. Lenços acenavam para bordo ao deixarmos o ancoradouro às 5 horas da tarde de 21, despedindo-nos talvez para sempre dessa boa gente.
Durante os dias 22 e 23, mar e vento rebelaram-se contra o navio. Navegávamos à bolina, sempre à vela e a vapor, amurados por bombordo.
Grandes rajadas frias sopravam do norte, cantando nos cabos da mastreação, sacudindo-os com violência.
O termômetro baixara sensivelmente, a coluna barométrica punha-nos calafrios...
O mar quebrava-se de encontro às bochechas do cruzador desafiando-lhe a resistência colossal.
Sabíamos que a latitude em que navegávamos, nas Antilhas, era muito freqüentada pelos ciclones, esses terríveis inimigos dos navegantes, que arrastam em sua cauda milhares de vidas. Receávamos esses fenômenos tanto mais porque os seus efeitos fazem-se sentir a grandes distâncias.
Os sintomas visíveis, se não eram evidentes, aproximavam-se das descrições de navegantes experimentados. O céu estendia-se limpo, como um largo pálio azul esbranquiçado; apenas no horizonte flutuavam pequenos estratos em forma de rabo de galo e algumas estrias avermelhadas, escarlates, despertavam-nos a atenção.
Ao meio-dia o sol tinha uma cor baça, com um disco azulado ao redor.
E crescia o mar em vagalhões medonhos e esfuziava o vento no cordame.
O navio caturrava e arfava morosamente; ouvia-se o barulho do hélice trabalhando fora dágua.
Pela madrugada de 24 lobrigamos por boreste o farol da ilha de Cuba, de luz muito branca, e no dia seguinte sulcávamos o golfo do México.
Poucos dias restavam para alcançarmos Nova Orleans.
E nada do suposto ciclone!
Por via de dúvidas, como o tempo continuasse borrascoso, ferramos a maior parte do pano, conservando apenas as gáveas rizadas nos terceiros e a mezena de capa.
Capeamos três dias consecutivos, sem que aparecesse o medonho visitante.
No quinto dia o vento amainou rondando para nordeste e o mar, por força das circunstâncias, também acalmou-se. Ferramos o resto do pano, navegando só a vapor.
A idéia da chegada preocupava todos os espíritos. Os Estados Unidos eram o assunto de todas as conversações.
Cedo tratou-se da limpeza do navio.
Cada qual tratou de si, de sua roupa, de seus objetos que o mar sacudira de um lado a outro dos camarotes. Os alojamentos apresentavam o curioso aspecto de um campo de batalha; malas confundiam-se umas sobre outras formando empilhamentos, a roupa branca usada andava de mistura com os fatos novos de pano; livros, papéis – tudo quanto era de uso quotidiano estava espalhado no convés, como se andasse por ali alguma criança traquinas.
Guerra ao mofo! Roupas ao sol! Ninguém se fez esperar. Começaram as arrumações, uma faina açodada, durante a qual soaram boas gargalhadas filhas de inalterável bom humor.
Os guardas-marinha alojavam-se à popa num acanhadíssimo compartimento que mal os comportava. Aí tinham suas camas, suas malas, seus livros.
Quantos prejuízos! Quantas decepções!
E todos acocorados, arrumando e desarrumando, numa confusão burlesca, maldiziam o mar e apostrofavam o vento. Netuno e Éolo nunca receberam tantas manifestações desairosas. Pois não! Ninguém tem suas coisas para vê-las de um dia para outro arruinadas, inutilizadas pelos caprichos incoercíveis do mar e do vento.
Finalmente, como nada há melhor que um dia depois de outro, veio o dia 29 de março em que dos vaus do joanete de proa o gajeiro anunciou – terra!
Continuava, entretanto, incessantemente, a azáfama. A guarnição da bateria ocupava-se da limpeza das peças, colocando-as em posição, abrindo e fechando culatras, lixando-as, lubrificando-as enquanto o fiel ia distribuindo o cartuxame.
Havia uma alegria geral a bordo e sentia-se um vago odor de tintas, como ao entrar-se numa casa nova, pintada de fresco.
Já era tempo de repousarmos das fadigas da viagem.