No seio da Virgem Mãe (1922)/III

Wikisource, a biblioteca livre
III [1]

Ao precioso artigo em que o director desta Revista ([2]) tratou há pouco da quadra mística

No seio da Virgem-Mãe
incarnou divina graca:
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça

que, sem ser criação do vulgo, figura nos Cancioneiros Populares, e nesse estado causa a justa admiração de nacionais e estrangeiros, posso acrescentar mais alguns traços em demonstração da popularidade do delicado símile, ou seja da delicada concepção da conceição nela expressa.

Se Cláudio Basto nos mostrou que o primeiro que disse

Sol penetrat vitrum, nec frangitur aut violatur,
sic Virgo peperit, nec maculata fuit.

primeiro, pelo menos até que seja descoberto outro artista mais antigo, — foi um teólogo-filósofo medieval: aquele Pedro Lombardo, bispo de Paris, cujos quatro livros de Sentenças conteem tôda a doutrina dos Padres da Igreja, exposta com tanta clareza e serenidade que ficaram sendo o Manual predilecto do século XII e modêlo para outros posteriores, eu tinha demonstrado, há alguns anos, que, propalada seguramente na Igreja em Sermões, Hinos e Representações sacras latinas, a ideia poética, cujo configurador desconhecia, passara às literaturas românicas.

Foi numa nota do meu estudo sôbre a Saudade Portuguesa ([3]) que eu indiquei dois trechos literários, um tirado de um Mystério do Natal francês, analisado por Petit de Juleville; outro de um Auto do Natal castelhano, do melhor imitador de Juan del Encina, o que o pastoril começou, no dizer de Garcia de Resende.

Torno a transcrevê-los aqui (N.os 1 e 2) e juntarei outros tantos (N.os 3 e 4) que encontrei durante leituras posteriores. Também dêsses um é literário, do século XVIII, ao passo que o último, que até hoje fecha o meu círculo, é popular ou popularizado.

1) Mystère de Nativité do século XIII:

Mais tout ainsy con la verrière
du soleil qui demeure entière
quant son ray par mi ouitre passe
que ne la brise ne la quasse
ainsy demeura ton corps sain.

2) Egloga nuevamente trobada por Hernando de Yanguas (raríssima fôlha volante do século XVI, de que há um exemplar na Biblioteca de Viena de Áustria e outro diverso na de Munich, reimpresso há pouco) ([4]). Nela é um pastor esperto (Mingo Sabido), que responde às preguntas do seu companheiro Benitillo, relativas à Virgem, da maneira seguinte:

B.Io, Mingo Sabido, saberlo quisiera
Como ha quedado del parto perheta?
M.Esso es cosilla, Benito, secreta:
Mas yo la barrunto ser desta manera:
Si el sol entra y sale por una vidriera
Sin punto dañaria, crebar ni herir,
Mejor pudo Dios entrar y salir.
Dexandola virgen, como antes lo era ([5]).

3) Foi o rei sábio de Castela e Leão, Afonso X (ou um dos seus clérigos-poetas, como Airas Nunes, que o auxiliaram na composição das (420) Cantigas de Santa Maria), que meteu os versos seguintes num dos Hinos que destinava a serem cantados em Sevilha, nas Festas de Dezembro de Santa Maria ([6]) :

E desto vos mostro prova verdadeira
do sol quando fer dentro em a vidreira
que, pero a passa, en nulla maneira
non fica britada de como siya.

Que macar o vidro do sol filla lume
nulla ren a luz do vidro non consume;
outrossi foi esto que contra costume
foi madre e virgen, ca Deus x’o queria.

4) Fernan Caballero acolheu nos seus Cuentos y Poesias populares andaluces um càntico-romance do Natal, em dezoito estrofes de refram, das quais a quarta diz:

Y el poder divino
obrando eficaz,
Maria fue virgen
y madre á la par,
cual el sol penetra
un puro cristal.
Virgen venturosa!
Parto celestial!

E certamente, quanto mais eu fôr lendo, tantos

mais paralelos do formoso trecho do Magister sententiarum (1164) hei-de encontrar.

Costumo alegar a quadra portuguesa como prova de que «Poesia popular é aquela que o povo canta». Canta... ou recita, porque nunca ouvi cantar No seio da Virgem-Mãe, nem No ventre da Virgem bela, nem tampouco a lição seguinte, que colhi em Ponte-do-Lima, em conversa com uma velha de Ourense:

Pariu o verbo divino
a virgem, cheia de graça:
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça.

Muito gostava de ouvir a melodia correspondente, a ver se é popular ou erudita.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

  1. Publicado na Lusa, ii, 145-146 (n.os 43-44, de 15-Dez.-1918 e 1-Jan.-1919), sob o título: No seio da Virgem-Mãe.
  2. Lusa, i, pág. 69-70.
  3. Edição da Renascença Portuguesa—1914. (Vid. Nota 150 a pag. 138).
  4. Dr. Eugen Kohler, Sieben Spanische Dramatische Eklogen mit einer Einleitung über die Anfaenge des Spanischen Dramas, Anmerkungon und Glossar. Dresden 1911.
  5. Pág. 203.
  6. Ed. da Academia Española, Madrid 1889, vol. ii, pág. 573. — Distingo na minha transcrição entre u consoante e u vogal.