No seio da Virgem Mãe (1922)/IV

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IV

Aos quatro reflexos neo-latinos acima registados posso juntar, ao cabo de três anos, um único novo.

Do último quartel do século XV. Obra de Gomez Manrique, aquele nobre, erudito e modesto prócer castelhano, cujos versos o rei de Portugal D. Afonso V debalde ambicionou possuir; o que trocou versos, em português, com um dos colaboradores do Cancioneiro Geral ([1]); tio de Jorge Manrique, o das afamadas Coplas à la muerte de su padre que principiam Recuerde, el alma dormida!; e quanto a suas obras líricas e didácticas filho espiritual do grande Marquês de Santilhana.

Na excelente edição do seu Cancioneiro (em que há uma Representação scénica e um Mómo), publicado por D. Antonio Paz y Melia ([2]), figura um poema religioso intitulado Loores y Suplicaciones a Nuestra Señora ([3]), cuja segunda décima começa:

5.Oh fija de Dios y madre
desde abenicio creata,
Oh virgo semper yntata
de la cual nascio tu padre,
tu quedando tan entera
como sana vedriera
finca del sol traspasada.

Na Glosa em prosa, proveniente provavelmente do Dr. Pero Diaz de Toledo, há referência ao Mestre das Sentenças, Livro III, o que não deixa de ser curioso.

De além do Oceano vieram-me todavia materiais preciosos: da parte de um letrado que investiga com fervor e intensidade problemas literários e folclóricos, tendo já reunido num volume (Aérides) ([4]) uma série de estudos que julgo pouco conhecidos entre nós. Alberto Faria, — residente em Campinas (Estado de Sam Paulo do Brasil) — sabedor de linguas modernas e antigas, e crítico perspicaz, reparara nas suas vastas leituras nas freqüentes reminiscências da ideia versada na quadra popular relativa ao acto da transmissão da vida. Por isso sobressaltou-o a minha Nótula (150), impressa na Saudade Portuguesa, quando a leu em 1918.

Ignorando os artigos publicados posteriormente na Lusa, teve a gentileza de me expôr numa carta extensa as suas observações, que vou resumir aqui.

A forma da quadra popular, como corre no Brasil (parte-norte), é a seguinte:

No ventre da Virgem-mãe
incarnou divina graça:
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça.

Além do trecho de Fernan Caballero ( — que é o meu N.° 4) aponta um passo de um poema religioso moderno — do tempo do Romanticismo, o Volberg de Jean Siméon Pécontal ([5]). Transcreve-o:

5)Il naitra sur un lit de chaume,
et celle qui l’aura porté,
ce roy du céleste royaume,
gardera sa virginité,
car à travers sa chaste mère
passera l’enfant radieux.

E conta que Barbey-d’Aurévilly sublinhou os últimos dois versos como trait raphaélesque.

Quanto a estados anteriores da delicadíssima imagem da luz e da vidraça — anteriores aos textos tos que eu mencionara na Saudade — lembra que entre os teólogos místicos, de espírito neo-platónico, como o santo Dionísio Areopagita, Deus era a luz por excelência (— ??? ??? ?????? ???????) ([6]). Notifica que existem representações artísticas da Anunciação, como p. ex. a de Nicolas de Verdun (sec. XII) em que o anjo Gabriel estende a mão direita, de cujos dedos sáem dois raios de luz em direcção à orelha da Virgem.

Dá expressão à ideia que um poeta cristão do Renascimento como Sannazzaro em Dè partu Virginis seria o propagador da imagem poética.

Mostra em Dante, Petrarca e o Tasso diversos passos em que, sem desenvolvimento maior, se mencionam raios de luz, raios de sol, que incidem quer na água, quer em vidros.

O grande Florentino dissera p. ex. no Paraiso (ii , 34-36):

Per entro sè l’eterna, margherita
ne recevette com′acqua recepe
raggio di luce, permanendo unita.

O cantor de Laura, pela sua vez, declarara em um dos Sonetos da Vita ([7]):

Poi che vostro vedere in me resplende
come raggio di sol traluce in vetro
basti dunque il desio senza ch’io dica.

e repete no Trionfo della Divinità ([8]):

Passa il pensier si come sole in vetro.

Torcato Tasso, êsse aplica a fórmula à fermosura profana de Armida, na sua Gerusalemme (v, 34), dizendo:

Come per acqua o per cristallo intero
trapassa il raggio e no’l divide o parte
per entro il chiuso manto osa il pensiero
di penetrar ne la vietata parte.

Profanação, realmente.

Com Amador Arrais, o ilustre Bispo de Portalegre, o investigador brasileiro se vira a Portugal, às scenas da Anunciação e Conceição, e indirectamente a Sannazzaro. Entre os Diálogos dêle há um em que de perto se cinge ao autor do poema De Partu Virginis, e equipara a Virgem à vidraça por que passa o puro raio ([9]).

O que é de admirar é que ainda não se encontrasse nas Líricas do cantor dos Lusíadas, nem nos Autos de devoção de Gil Vicente, nem nas prosas de Frei Tomé de Jesus, paralelo algum — quer dos cinco passos e da quadra popular, — quer das mais vagas redacções do conceito, tantas vezes secular.

Quási certa estou de que ainda os acharemos.

Talvez mesmo já fôssem patenteados!

O sr. Alberto Faria preparava em 1918 um novo volume de estudos — Acendalhas — em que tencionava encorporar os seus e os meus materiais.

Claro que lhe respondí, mal recebêra a carta, enviando-lhe a Lusa e alguns opúsculos meus.

Ignoro todavia se o correio lhe entregou a remessa. Debalde esperei pela réplica.

Por isso renovo agora em público os agradecimentos já dados em particular.

E espero receber mercê.

Porto, 25 de Abril de 1922.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

  1. Álvaro de Brito. Vid. Menendez y Pelayo, Antologia, vol. VI, p. LV-CIII.
  2. Madrid, 1886. 2 voll.
  3. Vol. II, pág. 279.
  4. Rio, 1918.
  5. Paris, 1831 (segundo Larousse). O letrado brasileiro leu-o no Journal des débats de 1838.
  6. De divinis nominibus, cap. iv, parte 6.
  7. O LXIV.
  8. Verso 34.
  9. É o Da invocação de N. S. (cap. LII). Eis o teor da carta que traslado textualmente:
    «Infelizmente, não consegui ainda avistar o De Partu Virginis — poema de 1525, em que Sannazaro, precedendo o cantor de Clorinda, teria fundido os metros dos de Beatriz e Laura, mas com aplicação mistica. Lá — a fonte provável tanto dos versos citados por V. E. como dos por mim citados. Foi ele assaz querido (sabe-o a investigadora insigne melhor que ninguem) dos quinhentistas portugueses: traduziu-o Caminha, imitou-o Camões, etc., etc.
    E A. Arraiz põe-nos na pista verdadeira ao que se me afigura, de passagens dos 'Diálogos. Escreveu no Da invocação de N. S. (cap. xxxiv, post. med.):
    «Acabando, pois, o arrazoamento do Anjo, deu a Virgem seu consentimento tão esperado dos filhos de Adão, abriu o coração à fé, a boca à confissão, e as entranhas ao creador, e disse: «En adsum, accipio venerans tua jussa tuumque dulce sacrum, pater omnipotens (Sann.) Eis aqui a serva do Senhor rendida a vossos mandados com a veneração devida». E ditas estas palavras, viu resplandecer com nova luz a casa onde estava, tanto que não podendo sofrer os raios reluzentes, se lhe dobrou o temor, e logo se seguiu o que conta o mesmo poeta: «Sine vi, sine labe pudoris Arcam intumuit verbo».
    Ora as redacções havidas por V. E., sem duvida mais proximas da primitiva, insistem em grosso nesta circunstancia («sin punto dañar la ni herir» — que ne la brise ni la quasse); afinadas na expressão, pela sintese, as que alcancei, tornaram-na apenas perceptivel. Mas o bispo de Portalegre que tinha diante o texto latino em sua integra, volvendo à isenção do dano material, deixou noticia da imagem anterior (mesmo cap. in fin.) [*]
    «Tambem (San.) a faz (a Virgem) similhante à vidraça por quem passa o puro raio que desfaz as trevas sem movimento, nem lesão sua. Passo o seu conto por vos não causar enfadamento com tanta poesia.»
    Que pena para mim, carecente da lição original, levantar-se o cálamo transcritor.»
    [*] Aliás: cap. LII, do mesmo diálogo. — C. B.