No seio da Virgem Mãe (1922)/V

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V

Logo depois de haver publicado na Lusa o artigo que forma o I cap. dêste opúsculo, encontrei, caído no chao, um papel impresso de aparência antiga, e, tomando-o por curiosidade de ver o que fôsse — los papeles rotos de las calles, de que fala Cervantes no seu Quixote ([1]) —, vi que era nem mais nem menos do que uma fôlha incompleta de um velho exemplar das Sentenças de Pedro Lombardo, e sob os olhos me ficaram imediatamente, por uma casualidade interessante deveras, as palavras do Mestre acêrca da Incarnação, com o símile de que acabava de tratar!

Não me sorriu assim o acaso daí em diante, — e quási nada mais se me deparou, após haver escrito o meu artigo na Lusa, que relação tivesse com êsse admirável símile e com a quadra portuguesa que tambem o aproveitou.

As investigações que fiz na tradição oral, tanto em o nosso país como na Galiza, nada me deram de novo. Não foram mais felizes as minhas leituras de trabalhos folclóricos, em tal sentido encaminhadas.

Encontrei, apenas, uma variante da quadra em as Notas sõbre Portugal, num artigo do S.r António Arroio, e que vai abaixo mencionada com o n.° 3, e na revista portuense A Arte, de 1899, a variante que leva o n.° 5.

Não julgo fora de propósito coleccionar aqui tôdas as formas da quadra que são do meu conhecimento, embora quási tôdas venham já espalhadas pelas páginas anteriores.

Ei-las:

1.No seio da Virgem-Mãe
incarnou divina Graça;
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça ([2]).

2.No ventre da Virgem-Mãe
incarnou divina Graça;
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça ([3]).

3.No ventre da Virgem Santa
incarnou divina Graça;
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça ([4]).

4.No ventre da Virgem bela
incarnou Jesus por Graça;
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça ([5]).

5.No ventre da Virgem pura
o Verbo incarnou por Graça;
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça ([6]).

6.No ventre da Virgem Pura
entrou a divina Graça;
como entrou, também saiu,
como o sol pela vidraça ([7]).

7.Pariu o Verbo divino
a Virgem, cheia de Graça,
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça ([8]).

Os dois últimos versos da quadra são, pode-se dizer, invariáveis. O primeiro verso é no seio ou no ventre da Virgem-Mãe, ou da: Virgem Pura, Virgem Santa, Virgem Bela... Não encontrei as variantes tôdas, que aponto, dêste primeiro verso, mas é natural que as haja.

O segundo verso é, em regra, incarnou divina Graça ou incarnou Jesus por Graça.

A forma que mo parece mais perfeita é a da quadra como vai em primeiro lugar:

No seio da Virgem-Mãe
incarnou divina Graça;
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça.

A quadra, desde que não faz parte de nenhuma canção, não tem (como é natural) música particular. Deverá ser cantada, em virtude da sua feição, com música de cânticos religiosos, à escolha de quem a cantar.

Efectivamente, o S.r Queirós Veloso, no já citado artigo Nas férias grandes, inserto em a Província, de 5 de Agôsto de 1887, diz ([9]):

— «A distancia ainda, senti-lhe os passos; e ouvi-lhe depois a voz clara cantar, na dolorida musica da Senhora do Sàmeiro, aquella ingênua e encantadora trova popular, a mais bella e curiosa interpretação da virgindade imaculada de Maria:

No seio da Virgem-Mãe» etc.

Ouviu-a, portanto, cantar o S.r D.or Queirós Veloso com a música popularizada do Hino à Senhora do Sàmeiro. Sem dúvida terá ela sido, ou é, cantada com a música de outros hinos ou cânticos religiosos. Eu é que nunca a ouvi cantar.

Por curiosidade, registo, na página seguinte, a quadra com a música do referido Hino à Senhora do Sàmeiro ([10]).

Encontrei a comparação, que esta bela quadra

aproveitou, nos Diálogos, de Amador Arrais ([11]), que a atribui a Sannazzaro (1458-1530), e, ainda que empregada com outro fim, em La Gerusalemme liberata, de Tasso ([12]), — ao que não faço maior referência, por o mesmo haver sido já notado no artigo anterior, da S.ra D.ra D. Carolina Michaêlis de Vasconcelos.

Estranhei não a haver achado na Dissertação theologica, historica, critica sobre a definibilidade do Mysterio da Conceição immaculada de Maria Santissima, de Fr. Manuel do Cenáculo, — onde, porém, são citadas muitas obras acêrca da «Incarnação», sendo possível que nessas alguma coisa se topasse.

Há neste livro de Fr. Manuel do Cenáculo imagens como as constantes dos seguintes passos:

« Conceição pura da Santissima Virgem, a qual figurada na luz claríssima nada pôde participar das trevas da culpa» ([13]).

«não chegou o bafo pestilente da serpente astuta, maldita, e antiga a empanar o purissimo cristal, Maria Santissima em sua conceição imrnacuculada » ([14]).

Imagens destas, baseadas em textos bíblicos, são correntes nos livros religiosos, nomeadamente na citada obra de Amador Arrais. Prosadores e poetas de todos os tamanhos as têm usado.

Puro como o cristal e puro como o sol (ou como as estrêlas) são até comparações populares.

O S.r Pedro Fernandes Tomás colheu, por exemplo, uma canção religiosa A’ Virgem, onde se inclui a seguinte quadra:

Vossa alma é mais pura
Que os puros crystaes;
Formosa sem mancha
Bemdita sejaes! ([15])

Puro como o sol é, igualmente, comparação espalhada entre o povo, com referência à pureza virginal. ([16])

Viana-do-Castolo, Abril de 1922.

Cláudio Basto.

  1. i p., cap. ix.
  2. Vid. pág. 7.
  3. Mil Trovas, pág. 7, 3.ª ed. Cfr. pág. 11 dêste opúsculo. — Também corre assim no Brasil (parte norte). Cfr. pág. 17 dêste opúsculo.
  4. Notas sôbre Portugal, artigo «O Povo Português», do S.r António Arroio, ii vol., Lisboa 1909, pág. 93.
  5. Vid. pág. 7.
  6. A Arte, revista do Pôrto, iii, pág. 64 (n.° 2, de Novembro de 1899).
  7. Vid. pág. 11.
  8. Vid. pág. 15.
  9. Apud Rev. lus., n, 343.
  10. Registo-a, devido à amabilidade do S.r Álvaro Ventura, distinto Sub-chefe da Banda de inf. 3 e professor de música, que prontamente acedeu ao pedido que, em tal sentido, lhe fiz, — o que muito lhe agradeço.
  11. Diál. 10.º, cap. lii; pág. 747 da ed. de 1846.
  12. iv, 32, na ed. de Venesa, 1756 (pág. 78).
  13. Lisboa 1758, pág. 3.
  14. Pág. i (Prefação).
  15. Pedro Fernandes Tomás, Velhas canções e romances populares portugueses, Coimbra 1913, pág. 82.
  16. Em livros que tratam de religiões orientais ou que a elas aludem, encontram-se bastas referências a divindades solares, — interessando-nos, agora, particularmente os livros onde é versada a questão de Cristo considerado mito solar. — Vid., por exemplo, o capítulo iv do conhecido livro de Emilio Bossi, Cristo nunca existiu.