No túmulo dos vencidos

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Almas sensíveis à admiração pelo heroísmo, ao reconhecimento pela abnegação e à piedade pelo martírio insistem na idéia, suscitada aqui há seis anos, de consagrar aos mortos de 1893 e 1894 sepultura cristã. Renova-se hoje, em homenagem a eles, a comemoração ânua da gratidão e da saudade. A comovida romaria dos sobreviventes, dos moços, das senhoras vai levar preces e flores ao torrão ensopado no sangue das vítimas do generoso movimento. É de crer que desta vez se não reproduza o espetáculo inaudito de 1896, que as baionetas não fechem o cemitério às grinaldas e às orações dos crentes. Sobre a lutuosa manifestação se projeta a sombra do comandante da Divisão Branca, o intrépido oficial, que, há sete anos, comandava o Aquidabã, e agora comanda o Riachuelo, que com a mesma galhardia, com que então arrebatava os revo­lucionários ao encontro da morte, hoje reconduz ao da pátria o chefe do Estado. A justa consideração, que presentemente o dignifica nas regiões oficiais, se atesta o seu patriotismo, não certifica menos eloqüentemente o dos camaradas, que dele apenas se diferençaram em ter ficado sepultos no desbarato da sua causa.

Ir semear naqueles túmulos algumas perpétuas, e erguer dentre eles algumas súplicas ao céu, não é só praticar a última obra de caridade para com os nossos infelizes irmãos: é também resgatar um pouco da nossa dívida comum para com aquele imenso holocausto humano. Se o egoísmo não tivesse mirrado o coração desta sociedade, ela não esqueceria tão ingratamente a sua parte decisiva nas influências morais, que arrastaram a marinha ao golpe de 6 de setembro. Quando a esquadra se precipitou nessa reação contra a ditadura, tinha todos os motivos, para se supor a vanguarda do país, o instrumento do meio nacional, agitado em vibrações irresistíveis. O elemento, que a despenhara nesse erro, assistiu-lhe imperturbável à derrota. Mais. Encolhido, acobardado, não estremeceu, quando a cólera do vencedor liquidava, na baía do Rio de Janeiro, os restos da marinha dispersa, essa gloriosa maruja confiada à honra do governo triunfante pela capitulação de 13 de março.

Durante quatro meses, a contar dessa data, as armas da legalidade espingardearam friamente, nas ilhas deste porto, quinhentos a seiscentos homens. Tal o depoimento dado ao autor destas linhas, quando, em 1895, regressava do exílio, por uma alta patente do exército, então investida em cargo de elevada confiança administrativa no Ministério da Guerra. “Isto apurei com todos os elementos da certeza oficial”, disse-nos ele, “pelos meios que a minha situação atual me proporcionava”. Entretanto, aquelas vidas eram sagradas. “O ato de matar ou ofender o inimigo, impossibilitado, pela rendição, ou pela captura, de resistir”, diz um grande magistrado inglês, o clássico Phillimore, “é pecaminoso, brutal e indefensável. As leis da justa guerra adscrevem o vencedor ao dever de poupar os que depuseram as armas, impetram quartel, ou jazem feridos e indefesos. Matá-los é assassinar. E os que o fazem, devem morrer pelo patíbulo, não pelo fuzil.”

Assim, por um atentado a que o direito impõe esse ferrete, morreram os trucidados de 1894. Ainda não sabia o governo brasileiro que o cativeiro de guerra, em nossos dias, já não é mais que uma seqüestração temporária, destinada simplesmente a impedir que o prisioneiro continue a participar nas hostilidades. Não sabia que já no século passado este continente vira aplicar essa regra de humanidade pelos ingleses aos americanos rebeldes. Não sabia que, neste século, os americanos a proclamaram, nas instruções de 1863, formuladas, para o serviço dos exércitos em campanha, justamente no meio da maior guerra civil que jamais devastou o globo, declarando crime capital o homicídio do inimigo rendido. Não sabia que, para esse efeito, o moderno direito das gentes abriga os revolucionários sob a equiparação de beligerantes. Não sabia que entre estes e aqueles a só distinção a tal respeito admissível está na ressalva, que deixa ao poder público o direito de submeter, mais tarde, os vencidos aos tribunais regulares.

Tudo havia de ignorar, naturalmente, uma situação, que com a vergonha da nossa ausência na convenção de Genebra imaginava exculpar-nos, entre as nações, das atrocidades aqui perpetradas contra as leis do gênero humano. Daí, dessa inocência pagã em meio ao mundo civilizado, os inenarráveis horrores que desonraram a vitória. Era desses morticínios que Montaigne, num capítulo inscrito Da cobardia, mãe da crueza, só reputava capazes as feras da multidão, ou os bagageiros da tropa: “De ordinário é o povoléu, ou a gente da bagagem que transforma as vitórias em matadoiro; sendo a causa de tão inauditas truculências, nas guerras populares, a escória do vulgacho, cujo denodo consiste em mergulhar as mãos no sangue até aos cotovelos, e espostejar aos pés corpos humanos.”

Graças àquela chacina, a armada brasileira perdeu a legião de heróis, cujos despojos semearam de vastos sepulcrários cruentos as formosas águas de Guanabara. Graças a essas eliminações bárbaras, os nossos navios, apesar de tão poucos, não têm hoje braços, com que acudir à manobra, ou guarnecer os canhões. Salvou-se, mercê de Deus, a oficialidade, violentamente disputada à bandeira lusitana. Salvaram-se os que, como Alexandrino de Alencar e Custódio de Melo, não estavam encerrados entre as baterias das nossas fortalezas. Mas a flor da nossa admirável marinhagem, aquela bizarra soldadesca naval, essa colônia de lobos marinhos, que enxameava nas amuras e nas enxárcias dos nossos vasos de guerra, padeceu, no silêncio complacente das trevas, a morte obscura, inútil e afrontosa dos salteadores pelas carabinas da legalidade.

Vamos ajoelhar no chão embebido daquele sangue, oferecer em expiação à misericórdia divina os remorsos da nossa pusilanimidade, implorar ao Senhor descendentes melhores, que nos reabilitem das decadências desta geração. O espírito de ódio e cisão continua a senhorear o Estado na pessoa daqueles que não sabem esquecer, que se não reconciliam com as anistias, que teimam em dividir os vencidos, exaltando a uns com as mais eminentes honrarias, enquanto para outros não têm senão as proscrições mais acintosas. Quando o cabido de Mariana convidava a Luís Alves de Lima, depois Duque de Caxias, para um Te-Deum em ação de graças a Deus pelo bom êxito das armas legais, o general, coroado pela fortuna no extermínio da revolta mineira, deu aos sacerdotes uma lição de evangelho, dizendo que a ocasião era de rezar pelos mortos, não se exultar pelos resultados de uma luta, que devia cobrir de dó todos os corações brasileiros. Assim sentiam os grandes capitães no Brasil de outrora. No Brasil de hoje não há palavra senão para as apoteoses da força e as reivindicações da crueldade. Que nos deixem ao menos, no seio da mulher e no da juventude, entre os ingênuos e os fracos, um lugar para essa cerimônia cristã, sem andores, arengas, nem guiões, aos abandonados da tragédia naval.

Tantos epinícios à fortuna obrigam a algumas lágrimas pela desgraça. Na guerra civil as palmas do triunfo se entrelaçam em crepe. Para irmãos, que o mais doloroso extremo da legítima defesa induzia a matar irmãos, não há fazer gala do fratricídio inevitável. A luta das armas, que separa as famílias humanas umas das outras por sulcos de sangue, não seria capaz de inspirar essa admiração inteligente e essa fascinadora simpatia, em que a glória exerce o seu prestígio sobre os homens, se não fora a transfiguração, que lhe imprime a ciência, o gênio e a virtude, abrindo-lhe na reivindicação do direito e na defesa da pátria um ideal superior às rivalidades e interesses que inimizam os estados.

Em torno de cada uma dessas famílias humanas o princípio da independência nacional traça, no território do país, um círculo sagrado, cuja integridade constitui o culto de uma classe, educada nas qualidades viris da resistência e do desprezo da vida. Guarda armada desses confins, que limitam as ambições entre os povos, e asseguram a cada raça a expansão da sua liberdade e do seu progresso, a guerra aponta aos exércitos esse horizonte, que vai do passado ao futuro, cortado de vôos d’águia, onde a glória acena aos fortes com a companhia dos heróis na imortalidade. Mas, quando o prélio não é na fronteira, não é pelo território, não é contra o estrangeiro; quando é a família que se retalha, quando é o lar que se ensangüenta, quando são os parentes que se dilaceram, a vitória vem abeberada em pranto, saturada de fel, revestida de luto, os irmãos sobrevivos não se podem banquetear, a lareira apagada pelas agonias domésticas não se enflora, a família mutilada não tem de que rejubilar, os próprios lutadores escapos da carniceria sentem o amargor da sua estrela, e a consciência do dever obedecido, único prêmio possível de tais combates, retrai-se, para agradecer ao Criador o termo da provação que a armou contra o seu próprio sangue, para se acautelar contra as sugestões do ódio intestino, para considerar compadecidos no destino daqueles, cujo transvio se expiou com o castigo supremo de expirarem pelo ferro e pelo fogo às mãos de seus compatriotas.

A justiça feita, em nome da pátria, pelos tribunais, ou pelas armas, se se consuma em existências roubadas à comunhão nacional, não deixa de ser justiça; mas os seus executores devem sentir que foram os instrumentos de uma coisa terrível. O juiz pronuncia a pena fatal, e cobre-se. A força armada, sufocando no extermínio a insurreição, edifique-se: recebeu a maior lição, a que a Providência pode submeter as virtudes militares. Aprenda a se não insurgir, a amar a paz, a observar o direito, a servir ao elemento inerme. Mas não confunda o irmão com o inimigo, não se desumane, não tripudie, não creia que nessas ceifas estéreis se restolhem coroas.

A pátria não seria a mais insigne expressão da maternidade, se consentisse agravar, contra filhos seus, imolados a paixões e ­ideais nobres, a dura expiação da morte em batalhas fratricidas, ou execuções selvagens, com as pompas, os estrépitos, as fanfarras da alegria, e não tivesse abertas as portas dos seus templos, recamados de carinhos os eternos dormitórios dos seus campos santos para os infortúnios do entusiasmo, do heroísmo, do amor da liberdade. Ao menos isso se não subtraia ao quinhão doloroso dos que à sua terra fizeram, numa época interesseira e servil, o sacrifício de si mesmos.