O Último Concerto/I
Vi-o pela primeira vez no teatro de Santa Isabel, em Pernambuco, em uma noite em que a companhia italiana, dirigida por d. José Amat, dava o Barbeiro de Sevilha, a feiticeira pérola da coroa rossiniana.
Nada tem a minha história com a arquitetura ou com a empresa lírica do teatro pernambucano. Deixemos, pois, o edifício do Santa Isabel, que era graciosíssimo, e o empresário Amat, que ouve a esta hora os gorjeios vibrantes da Adelina Patti, para nos embebermos unicamente na essência que produziu este conto fugitivo e real, como a imagem da vida comum. Às oito horas em ponto apoderei-me da minha cadeira, pouco distante da orquestra. O regente moveu agilmente a batuta e os instrumentos entraram em campo, atacando com brio e com amor a introdução da ópera monumental.
Eu havia chegado da Corte poucos dias antes, e não estava disposto a perder a mais sutil particularidade da vida elegante de Pernambuco. Na véspera gozara os suaves eflúvios das auras do Caxangá; na antevéspera dormira em Apipucos, com as janelas do quarto abertas aos quatro ventos do céu e ao melancólico clarão da lua aventureira.
A orquestra deu-me desde o princípio a conhecer a inteligência dos professores que a compunham e do maestro que a regia. A introdução do Barbeiro, viva, cristalina, eloqüente, ora sentida como um amuo entre lágrimas, ora turbulenta como as gargalhadas de uma infância traquinas, prendia a minha atenção de turista à fiel interpretação musical da jóia de Rossini.
As senhoras nos camarotes, cheias de interesse, de pedrarias e de sorrisos, aspiravam os sons diáfanos das originais harmonias; os dillettanti sentavam-se caprichosamente limpando os vidros do binóculo e o cristal dos pince-nez indiscretos.
No meio da grandiosa ouverture, a flauta incumbida de um solo brilhante espalhou com uma etérea onda de melodias o profundo silêncio da atenção e do êxtase em todo o teatro.
Nos camarotes os leques colheram as buliçosas asas; na platéia os murmúrios e os diálogos cessaram como por encanto, à primeira nota do mágico instrumento.
A flauta era acordada por sopro de mestre, uma brisa inspirada percorria-lhe o misterioso tubo, extraindo daí cardumes de sons peregrinos que voavam em redor de todas as almas como um bando de segredos divinos.
Não pareciam notas de instrumento tangido por força humana, pois só o vento que surpreende o eco, só hálito da tarde que desperta o arvoredo possuem vozes assim, tão macias, tão brandas e tão magoadas.
As palmas na platéia e os lenços nos camarotes receberam os últimos ais do predileto instrumento.
Foi tal o sucesso, que por um minuto o regente suspendeu a orquestra em massa.
— Bravo, Salustiano! — gritavam as vozes frescas da mocidade acadêmica.
— Viva o Salustiano!
— Bis! Bis!
— O solo!
— O solo, Salustiano!
Recrudesciam as palmas, multiplicavam-se os bravos, e os aplausos, de animados que eram, chegaram a tocar a veemência do delírio.
Não houve remédio; apesar do olhar trôpego do delegado e de cinco ou seis fardas imponentes do camarote policial, o regente da orquestra voltou a página da partitura, e a meiga flauta, a adorada flauta, a flauta tentadora, ergueu-se de novo como um incenso de melodia naquele religioso silêncio do amor e da admiração popular!
Quando precipitaram-se as novas ovações, no final do solo, Salustiano levantou-se do fundo da orquestra e inclinou a cabeça comovida perante o público, arquejante de entusiasmo.
Era um rapaz de 22 a 25 anos, pálido e formoso como aquele Rafael de Lamartine, cujo retrato todos nós gravamos na nossa alma, depois da leitura das castas estrofes do mais inspirado livro deste século.
Fulgurava em seus negros olhos o tranqüilo astro do gênio, que derrama sobre as fisionomias favoritas da divindade uma aurora imortal. Ele sorria tímido quando saudou o público, e a flauta estremecia em suas mãos, como o arco da rabeca entre os dedos de Paganini na hora dos supremos triunfos.
Momentos depois, ergueu-se o pano, e Rossini, auxiliado por uma ruim companhia ambulante, apoderou-se da atenção pública.
Menos da minha; durante todo o primeiro ato não afastei os meus olhos do semblante pensativo e meigo de Salustiano.