O Último Concerto/III

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Salustiano veio convalescer em minha companhia.

Aluguei para esse fim uma pequena e graciosa casa em Olinda, onde acondicionei a limitadíssima família do artista. Eu freqüentava nesse tempo o quarto ano acadêmico, e, depois da aula, voava ao meu silencioso sítio, em cujo limiar os dois hóspedes recebiam-me como se recebe um irmão e um filho estremecido.

Olinda é uma das mais encantadoras paragens do mundo.

Para os amigos da solidão, da paisagem e do silêncio, nada vale aquela cidade peregrina, plantada à beira d'água, e que contempla pensativa o mar, como a noiva de um marinheiro à espera da adorada vela do seu amor.

À tarde, eu e o artista sentávamo-nos em uma espécie de terraço que deitava para o nascente, e líamos alguma coisa, quase sempre o Intermezzo de Reine, de que ele era apaixonadíssimo.

E enquanto os navios singravam ao longe, e as jangadas perdiam-se na barra inflamada no horizonte, a alma daquele sublime rapaz bolava como uma gaivota nas doces ondas da inspiração e da poesia:

LV

“A floresta despertou ao som precipitado dos meus passos e eu vi as árvores agitarem os ramos, murmurando piedosamente e compadecendo-se do meu destino.

LVI

Em campos agrestes e desertos enterram-se os infelizes que se suicidam.

Ali nasce uma flor azul; chamam-lhe a flor da alma maldita.

Parei nesses campos e desprendi um suspiro. A noite estava fria e silenciosa. Aos raios frouxos da lua, eu via mover-se brandamente a flor da alma maldita.

LVII

Uma negra escuridão cobre os meus olhos, depois que os não a alumia a luz dos teus, ó meu anjo idolatrado!

A estrela do amor apagou-se para mim; vejo aberto um abismo diante dos meus passos; oh! noite eterna, sepulta-me para sempre no teu regaço!”



— E haverá melhores harmonias do que as desta protetora lira? — dizia-me o Salustiano, com os olhos úmidos e extáticos. Repara naquele brigue que aproa para nós; vê como o clarão do sol no poente envolve-o como que de uma bênção divina! Ler-se Heine, desta maneira, é gozar duas vezes a poesia; pelos olhos e pelos ouvidos! Lê, lê!

Voltando alguns capítulos do Intemezzo, eu continuava:

LVIII

“A tempestade faz gemer a frondosa ramagem das árvores, a noite está pesada e fria; eu atravesso o bosque no meu altivo e impaciente corcel. E enquanto o meu cavalo galopa, os pensamentos que me borbulham na mente transportam-me aos pés da minha amante.

Ladram os cães, aparecem os criados com archotes; eu subo a escada, fazendo tinir as minhas estridentes esporas.

Em um aposento atapetado e resplandecente com a chama de milhares de luzes, no seio de uma atmosfera serena e embalsamada, minha amante espera-me. Caio delirante entre os seus braços!

E o vento fustiga as folhas do carvalho, e elas parecem dizer no seu murmúrio lúgubre:

‘Para que te deixas dominar, louco cavaleiro, de insensatas ilusões!”

O crepúsculo, cujo véu obscuro caía lentamente sobre as ondas e envolvia a terra silenciosa, interceptava-nos a leitura do poema.

A velha, com medo do sereno, reclamava para o interior da casa a presença do filho, e terminávamos a noite, antes de nos recolhermos, ele a seguir o vôo das mariposas em redor do lampião, eu a folhear as Ordenações do Reino e os contos de Nodier.

Um dia Salustiano disse-me:

— Há um segredo na minha alma que preciso te revelar. Um segredo profundo como o mar, e perigoso como ele.

Contemplei-o atônito; nunca sua voz soara em meus ouvidos com tão fúnebre entoação, nem seus olhos despediram tão lúgubres centelhas.

— Há um segredo em minha alma! — repetiu o artista.

A natureza parecia querer ser intérprete das confidências misteriosas de Salustiano. O céu, pensativo e curioso, acendera todas as suas pupilas, e um milhão de aragens molhava a asa no mar e nas flores, à cata de segredos. As ondas sussurravam na praia alva e longa, a lua entornava o tesouro de mágicas ardentias, e no mar alto vogavam, mal surpreendidas por nossos olhos enevoados, as velas dos navios que abicavam ao porto, lutando com a maré e com os ventos contrários.

Salustiano tomou-me as mãos inquietas entre as suas:

— Crê, meu amigo, um mistério profundo me persegue como a minha sombra, como o meu sangue, como a minha alma. Dir-se-ia que Deus deu-me o gosto e o sentimento da poesia unicamente para que eu medisse o espaço que a desventura ocupa no meu coração! Amo, amo perdidamente uma mulher!

— E é essa a tua desgraça?

— É, sim; a minha desgraça está nesse amor. Não leste nunca a história de Bernardim Ribeiro e as aventuras do Tasso, pobres vermes sublimes apaixonados por uma estrela? Pois eu sou como eles. Estou apaixonado por uma estrela!

Salustiano ergueu os olhos ao céu, respirando sofregamente.

— Que estrela? — perguntei eu, gracejando. — Vésper, Mercúrio, Saturno, Minerva, Vênus, Júpiter? Estarás apaixonado por Júpiter, Salustiano?

— Júpiter, o rei dos raios? Justamente! O meu astro fulmina, meu caro, arrasa, pulveriza, incendeia! Tu a conheces; é a mulher mais bela do mundo; e decerto o anjo mais desejado do céu.

— Oh!

— Não rias. Poupa-me o teu espírito hoje, e deixa que esta confissão corra pacífica e suave como todas as confissões em que entra a alma.

— Está dito. Conta-me a tua paixão.

— Não é propriamente uma paixão mundana; não é o amor; não é o desejo; não é o entusiasmo; não é o coração. É o êxtase e o misticismo. Encontrei-a um dia... Mas para que recordar-te coisas que não podem te interessar absolutamente?

— Continua!

A velha chamou o filho por duas ou três vezes. Caía o sereno com o terno raio das estrelas.

— Eu sou pobre, como sabes; pobríssimo até; sou um miserável...

— Grande termo! Um miserável!

— Um miserável na extensão da palavra. O burguês que encontra na gaveta uma moeda de vintém, e na mesa uma côdea de pão, é mais feliz do que eu. Muito mais feliz.

— Estás hoje digno de um taquígrafo!

— Ri-te, tu que possuis um pai, uma família e tens um correspondente que te compra livros. Em vão, meu filho, em vão tentarás devassar com a vista impotente o negro abismo em que se estorce a miséria! Ser proletário é pouco; sentir a dor dessa lepra é que é horrível. Eu a sinto, Luís! Sinto-a com as maiores torturas e com as mais amargas lágrimas!

Minha alma pendia dos lábios vibrantes do artista, como um virtuose das cordas trêmulas de uma rabeca ou do tubo de uma flauta Inspirada.

— A minha estrela, esse astro fatal que conduz os poetas e os artistas, iluminou-me o espírito e arremessou-me ao canto obscuro de uma orquestra, em cujo trabalho mal chegavam minhas mãos a arrecadar o pequeno óbolo para o sustento desta infeliz mulher que me deu a vida. Como eu invejei, como eu invejo Bellini, Rossini, Mercadante, Donizetti, Beethoven e os outros mestres! Esses foram os prediletos do Senhor, e as suas inspirações, bafejadas pelo sopro divino, impuseram-se ao mundo com o fulgor dos fenômenos e a grandeza dos milagres!

— Espera, Salustiano. Para ti é que o futuro reserva palmas e coroas. Verás.

— Porque sou moço; não é verdade? Deixa-te disso. Eu nasci com a desventura amarrada às costas, como o caramujo com a inseparável concha. Esta desventura atroz é a minha existência; sem ela, eu morreria, embora nadasse em mares de dinheiro e me reclinasse aos coxins da opulência. Há quem venha ao mundo para ser banqueiro, quem venha para ser poeta, artista, bandido, parricida ou milionário. É o destino, meu caro. O destino inexorável e fatal. Quanto a mim, vim ao mundo com a seguinte sina: amar a glória impossível e a mulher mais impossível ainda. Eis o caso do canto de Heine ou de Murger: um grilo amante da estrela Vênus!

— E a tua flauta, louco!

Os olhos do artista chamejaram na sombra.

— A minha flauta? É a minha perdição, é a minha tortura, é o meu abismo! Que de dores tenho tragado por causa dela, Deus do céu! Foi em uma noite da Traviata — continuou ele, com a voz vacilante e a face lívida, como um condenado que se confessa no último degrau do cadafalso -, em uma noite em que o teatro estava cheio até a última galeria e uma atriz festejada incumbia-se pela primeira vez do tipo da Violeta. Ela estava no teatro...

— Ela?

— Não me perturbes! — exclamou Salustiano torcendo-me a mão nervosamente. — Ela estava no teatro. Bem defronte de mim; risonha, coberta de flores, de brilhantes e de cetins voluptuosos...

No fundo do camarote o pai contemplava-a com um olhar meigo e persistente. De seus olhos escuros escapava-se a irradiação de um céu inteiro, quando a noite vai calma e o mar adormece aos melancólicos afagos do vento! Por mais que meus olhos a procurassem, ela entregava-se venturosa aos meneios do seu leque e às frases perfumadas que um ou outro elegante, nos intervalos, dirigia-lhe em furtiva visita. Subiu o pano no quarto ato. Toda a sua alma embebeu-se no feiticeiro poema das lágrimas e das amarguras que em cena se desenrolava. Da pupila úmida desprendia-lhe um terno lampejo, e sua boca entreaberta deixava escapar suspiros mais chorosos e puros do que todas as melodias de Verdi... Incumbido do acompanhamento da célebre romanza final, estremeci tomando a flauta, como um assassino quando levanta o punhal sobre um peito indefeso. As luzes do salão multiplicaram-se à minha vista ansiosa; os aromas invadiram-me vertiginosamente; orquestra, teatro, luzes, público, Verdi, artistas, tudo desapareceu ante meus olhos paralisados, e só ela, ela só, erguia-se na noite tempestuosa de minha alma, à semelhança de um astro que rompe o nevoeiro da chuva ou o sorriso de uma mãe que transparece através de nossas mais tormentosas lágrimas!...

A prima-dona volvia o olhar assustado para a orquestra; o regente agitava a batuta; o povo murmurava... Que tinha eu com esse mundo estúpido, incapaz de compreender-me?

O sangue fervia-me nas artérias; a luz fugia de meu espírito; palpitava-me sôfrego o coração, e com a vista cravada nela, que, como todos, me contemplava indiferentemente, deixei cair das mãos a flauta inútil, saboreando o prazer inefável da minha ventura, das minhas dores, dos meus triunfos e das minhas alegrias simbolizadas naquela criança esplêndida e cruel! Arrancaram-me das mãos o maldito instrumento, e não sei como continuou o espetáculo.

No dia seguinte lembrei-me da ridícula cena, enquanto minha mãe chorava à cabeceira de minha cama e o médico estudava-me o pulso e a cabeça.

— Salustiano! — exclamou a velha pela centésima vez. Levantamo-nos ambos e dirigimo-nos ao interior da casa.

O artista disse-me ainda quase ao ouvido:

— Eu te hei de mostrar. Se morrer em breve, crimina-a porque morro por causa dela.

— Ora!

— Morro.