O Último Concerto/V

Wikisource, a biblioteca livre

Deixei de receber inteiramente cartas do Salustiano. Esperei três, quatro, cinco vapores da linha do norte. Fui a bordo do Tocantins, com cujo comandante dava-me há tempos, e pedi-lhe notícias do artista.

— Na capital não está — disse-me o comandante. A propósito, tenho aqui jornais do Pará. Quer consultá-los? Pode ser que o orientem de qualquer forma!

Abri os jornais e corri ansiosamente à seção dos espetáculos. Em vão! Não havia vestígio do nome de Salustiano.

— Mas de que Salustiano fala o senhor?

— De um músico, um flautista, que partiu no Cruzeiro para o Pará.

Um passageiro, interpelado pelo comandante, declarou-me que Salustiano dera concertos na capital, onde fora muito festejado, e que partira para o interior da província pouco tempo depois, em companhia de sua mãe.

— E conheceu-o? — perguntei com crescente interesse.

— De vista apenas. Assisti a dois concertos dele. É um gênio!

— Um gênio, tem razão. Foi muito aplaudido pelo povo?

— Excessivamente. Era enchente certa no teatro toda vez que se anunciava um concerto do Salustiano.

— Obrigado!

Voltei à terra impressionado.

Onde estaria aquele mau amigo, aquele admirável talento, cuja imagem perseguia-me com a persistência incansável da figura da mulher amada, que não nos abandona um minuto sequer? Nessas vacilações de espírito agitei-me durante dois meses largos e aborrecidos.

Raiou o dia do carnaval, e o teatro de Santa Isabel anunciou pomposos bailes de máscaras.

No domingo gordo à noite dirigia os meus passos para o largo da Princesa. A fachada do formoso edifício do Santa Isabel, iluminada e florida, trazia-me à mente as misteriosas festas do serralho, em que em uma hora se goza tudo quanto se chega a saborear em dois anos nas cinco partes do mundo.

Os mascarados atropelavam-se à porta e o saguão regurgitava de povo. A música derramava no ar calmo da noite os seus inúmeros encantos e as suas infernais tentações.

Ornado apenas com a máscara insulsa que a natureza me concedeu, recebi o meu bilhete de ingresso e afastei a mole ruidosa para entrar no salão.

Entrei.

Não havia começado o baile ainda. Cruzavam-se os máscaras e os curiosos em várias direções, e a orquestra, incumbida de atiçar os sentidos populares, repetia, tentando os folgazões, a primeira parte de uma quadrilha provocadora.

Despejavam os lustres torrentes de fogo; dos vasos acondicionados junto aos grandes espelhos escapavam-se vagas de aromas diabólicos; o segredo preparava no meio de toda essa perigosa atmosfera as suas cem garras diamantinas e os seus irresistíveis filtros.

Às dez horas em ponto formou-se a quadrilha, e o maestro Colas acenou com a imperial batuta à sua harmoniosa falange.

O que é o carnaval, sabem todos os que não têm vivido dentro de um ostracismo imbecil, separados da humanidade turbulenta e ativa.

O baile de máscaras é o resumo do baile da vida.

O dominó, o pierrô, o debardeur, o polichinelo representam excelentemente a criatura humana fardada de vários matizes e sujeita aos indecifráveis sentimentos que a acometem.

A loucura toma a vanguarda nesses pleitos revolucionários e brilhantes; o espírito da mordacidade, da injúria ou da intriga, é sombra do veludo e do cetim, exercita-se contra as vítimas que o acaso lhe sugeriu, e bloqueia o senso comum de uma maneira insuportável.

Os camarotes começaram a se encher desde as nove horas. Às dez e meia abriu-se um na segunda ordem, e apareceu-me ante os olhos curiosos... quem? A desconhecida do clube em todo o fulgor de sua imensa beleza.

Trajava um vestido de cetim verde-claro com fofos alvos, e na cabeça sustinha um toucado de margaridas e palmas verdes. Um colar de esmeraldas e pérolas acariciava-lhe o colo palpitante.

Correu com o binóculo a platéia, examinou os camarotes e disse, sorrindo ao velho, que a seguia como uma sombra, não sei o que, que o fez também sorrir.

Depois da quadrilha marcava o programa uma valsa. O delírio subia nota por nota a escala do entusiasmo e da loucura. Cresciam os perfumes, multiplicavam-se os movimentos dos pares dançantes, e a poeira que os pés levantavam no turbilhão enevoava o espaço, aclarado vertiginosamente por oitocentos tubos de gás.

Ela, à semelhança dos cisnes que nadam, e das estrelas que brilham, deixava-se guiar indiferentemente pelas cambiantes ondas em que seu espírito se embalava. Parecia-me a figura de Hebe nos resplendores do paraíso, desmanchando ao furacão dos ventos e das harmonias a basta cabeleira desgrenhada.

Seus olhos seguiam as danças sem luzirem de febre ou de interesse natural na mocidade; seu peito largo e nu respirava como de costume, e o leque abria-se mansamente como uma nuvem alva sobre os seus lábios distraídos.

Alguns máscaras procuraram com ditos tolos e lembranças banais arrancar-me à espécie de misticismo que me subjugava; meus olhos, porém, fitavam-se religiosamente sobre aquela criatura, que, a meu ver, era a depositária da existência, de uma das mais preciosas existências da Terra.

Lembrei-me do Salustiano. Onde estaria àquela hora o inspirado artista? Ele daria de bom grado metade dos dias futuros, unicamente para acompanhar como eu os ziguezagues caprichosos que o leque da elegante descrevia em redor de sua casta formosura!

A meia-noite o delírio tocou a meta; a dança macabra entrava na festa estendendo os seus braços medonhos e insaciáveis.

Ergui-me de um canto onde me sentara, quase escondido por uma multidão de espectadores, e dirigi-me ao saguão. Um polichinelo, cheio de guizos, deteve-me o passo e enlaçou-me a cintura

— Que fazes aqui?

Achei originalíssima a pergunta, e desatei uma gargalhada.

— Não deverias aqui vir! — continuou ele com a voz esganiçada e vibrante. — Isto é o turbilhão, meu caro, o turbilhão em que ela aparece como o santelmo no meio dos naufrágios!

Esforcei-me por me desvencilhar do abraço.

— Espera um pouco, impertinente folhetinista, e olha para aquele camarote!

O dedo enluvado designava-me o camarote da menina do clube, a Laura do Salustiano, a Laura ou a Beatriz, a inspiração que ia matando os sonhos e as alegrias do meu desventurado artista.

— Repara, repara naquela tranqüilidade, e naquele indiferentismo! Assim fazem as estrelas, não é verdade? Quando as ondas espumam e fervem loucamente! Malvada! E há entre nós, entre cancanistas e valsistas, palhaços e macacos, um homem que vive por ela, vive, sofre, agoniza e morre!

— Quem é esse homem? — acudi eu intrigado.

— É um homem! Rara avis! Bípede implume, segundo Platão, estupor de vícios, segundo Voltaire. Ele corre talvez arrebatado pelos furores da dança, contemplando-a através do prisma fatídico deste baile celebrado em honra do nascimento do diabo!

O polichinelo apertava-me a cintura em risco de partir-me as costelas.

— Mas, admira a sua beleza! — prosseguiu ele dando à voz o tom da súplica e da humilhação -, admira-a agora, agora que ela se debruça do camarote como um anjo que espia as misérias da Terra! Tra la la, la, la! bonita valsa, sim senhor, bonita valsa de Auber! Quatro bemóis, quatro bemóis tem esta valsa! Andante! Tra la la!

— É um ébrio! — pensei comigo. — Com licença, meu espirituoso polichinelo, eu já volto.

— Não te deixo, não! Hás de ouvir-me até o fim! E dá graças a Deus, mal-aventurado, que estás ouvindo um moribundo!

A voz estrangulava-lhe na garganta opressa. Mais de 20 pessoas nos cercavam curiosas.

— Aquela menina que tu vês, pura, branca, meiga, tranqüila, é o cadafalso em que se degolam uma por uma as ilusões de uma existência inteira! Eu armo-a! — articulou ele em um soluço, sufocando a frase em meu ouvido.

Arrastei-o para fora da sala. Ele seguiu-me trêmulo e as suas luvas queimavam com o calor das mãos febricitantes. No botequim arrancou-se de meu braço por um violento esforço e saltou sobre o balcão. Todos voltaram-se para ele, alegres, como se esperassem um chorrilho de sandices.

— Eu morrerei! — gritava o polichinelo, emprestando à voz variadíssimos tons. — Eu morrerei por causa dela, mas que importa? Com todos os diabos! Que importa? Que importa?

O botequim enchia-se, à proporção que o máscara gesticulava falando.

— Vocês todos olham-me contentes, e nenhum de vocês é capaz de me entender. Vão dançar, imbecis. Dancem até arrebentar! Pulem! Saltem! Estorçam-se, aniquilem-se, oh foliões do grande carnaval! Oé! Oé!

O caixeiro servia conhaque a um freguês. O polichinelo curvou-se rápido, e, apoderando-se do cálice cheio, engoliu o espírito em meio segundo.

Pungiu-me cruel desgosto vendo-o cambalear.

A orquestra no salão chamava os dilletanti para nova dança. O botequim esvaziou-se pouco a pouco. O polichinelo continuou com movimentos mais frenéticos:

— Dancem, dancem, felizes idiotas! Para vocês é que se inventou o carnaval!... Oé! O carnaval, a asneira, os pulos, a toleima! Offenbach, Strauss, Schulloff, Goria, Ravina, Arditi e os outros! Dêem lembranças, marotos, à bela dos olhos grandes e das tranças flutuantes! Ela me mata, mas eu amo-a! Tra la le li! Adoro-a!... Sinto por aquela criatura um...

Subitamente o polichinelo virou-se para a porta que desembocava no saguão e, estendendo os braços, ficou hirto, pasmo e inteiriçado como um espectro... Segui-lhe os movimentos e notei que entre as pessoas que se retiravam vinha uma moça, coberta por um longo albornoz, cor de pérola.

Temi conhecer a verdade. Lancei-me ao máscara que, preso de um violento ataque, despenhava-se de cabeça baixa como um corpo decapitado.

Eu e algumas pessoas presentes arrancamo-lhe os disfarces que o desfiguravam...

Por baixo daquelas barbas ásperas e ridículas apareceu-nos o lívido rosto de Salustiano inanimado.