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O Abolicionismo/IX

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CAPÍTULO IX
O tráfico de africanos


Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Castro Alves


A escravidão entre nós não teve outra fonte neste século senão o comércio de africanos. Têm-se denunciado diversos crimes no norte contra as raças indígenas, mas semelhantes fatos são raros. Entre os escravos há por certo descendentes de caboclos remotamente escravizados, mas tais exceções não tiram à escravidão brasileira o caráter de puramente africana. Os escravos ou são os próprios africanos importados, ou os seus descendentes.

O que foi, e infelizmente ainda é, o tráfico de escravos no continente africano, os exploradores nos contam em páginas que horrorizam; o que era nos navios negreiros, nós o sabemos pela tradição oral das vítimas; o que por fim se tornava depois do desembarque em nossas praias, desde que se acendiam as fogueiras anunciativas, quando se internava a caravana e os negros boçais tomavam os seus lugares ao lado dos ladinos nos quadros das fazendas, vê-lo-emos mais tarde. Basta-me dizer que a história não oferece no seu longo decurso um crime geral que pela perversidade, horror e infinidade dos crimes particulares que o compõem, pela sua duração, pelos seus motivos sórdidos, pela desumanidade do seu sistema complexo de medidas, pelos proventos dele tirados, pelo número das suas vítimas, e por todas as suas consequências, possa de longe ser comparado à colonização africana da América.

Ao procurar descrever o tráfico de escravos na África Oriental, foi-me necessário manter-me bem dentro da verdade para não se me arguir de exagerado; mas o assunto não consentia que eu o fosse. Pintar com cores por demais carregadas os seus efeitos é simplesmente impossível. O espetáculo que presenciei, apesar de serem incidentes comuns do tráfico, são tão repulsivos que sempre procuro afastá-los da memória. No caso das mais desagradáveis recordações, eu consigo por fim adormecê-las no esquecimento; mas as cenas do tráfico voltam-me ao pensamento sem serem chamadas, e fazem-me estremecer no silêncio da noite horrorizado com a fidelidade com que se reproduzem.

Estas palavras são do Dr. Livingstone e dispensam quaisquer outras sobre a perseguição de que a África é vítima há séculos, pela cor dos seus habitantes.

Castro Alves na sua Tragédia no mar não pintou senão a realidade do suplício dantesco, ou antes romano, a que o tombadilho dos navios negreiros [1] servia de arena e o porão de subterrâneo. Quem ouviu descrever os horrores do tráfico tem sempre diante dos olhos um quadro que lembra a pintura de Géricault, O Naufrágio da Medusa. A balada de Southey, do marinheiro que tomara parte nessa navegação maldita, e a quem o remorso não deixara mais repouso e a consciência perseguia de dentro implacável e vingadora, expressa a agonia mental de quantos se empregaram nesse contrabando de sangue tendo um vislumbre de consciência.

Uma vez desembarcados os esqueletos vivos, eram conduzidos para o eito das fazendas, para o meio dos cafezais. O tráfico tinha completado a sua obra, começava a da escravidão. Não entro neste volume na história do tráfico e, portanto, só incidentemente me refiro às humilhações que impôs ao Brasil a avidez insaciável e sanguinária daquele comércio. De 1831 até 1850 o governo brasileiro achou-se, com efeito, empenhado com o inglês numa luta diplomática do mais triste caráter para nós, por não poder executar os seus tratados e as suas leis. Em vez de patrioticamente entender-se com a Inglaterra, como nesse tempo haviam feito quase todas as potências da Europa e da América para a completa destruição da pirataria que infestava os seus portos e costas; em vez de aceitar agradecido o concurso do estrangeiro para resgatar a sua própria bandeira do poder dos piratas, o governo deixou-se aterrar e reduzir à impotência por estes. A Inglaterra esperou até 1845 que o Brasil entrasse em acordo com ela; foi somente em 1845, quando em falta de um tratado conosco ela ia perder o fruto de vinte e oito anos de sacrifícios, que Lord Aberdeen apresentou o seu bill. O bill Aberdeen, pode-se dizer, foi uma afronta ao encontro da qual a escravidão forçou o governo brasileiro a ir. A luta estava travada entre a Inglaterra e o tráfico, e não podia, nem devia acabar, por honra da humanidade, recuando ela. Foi isso que os nossos estadistas não pensaram. A cerração que os cercava não lhes permitia ver que em 1845 o sol do nosso século já estava alto demais para alumiar ainda tal pirataria neste hemisfério.

Só por um motivo essa lei Aberdeen não foi um título de honra para a Inglaterra. Como se disse, por diversas vezes, no Parlamento inglês, a Inglaterra fez com uma nação fraca o que não faria contra uma nação forte. Uma das últimas carregações de escravos para o Brasil, a dos africanos chamados do Bracuí, internados em 1852 no Bananal de São Paulo, foi levada à sombra da bandeira dos Estados Unidos. Quando os cruzadores ingleses encontravam um navio negreiro que içava o pavilhão das estrelas deixavam-no passar. A atitude do Parlamento inglês votando a lei que deu jurisdição aos seus tribunais sobre navios e súditos brasileiros, empregados no tráfico, apreendidos ainda mesmo em águas territoriais do Brasil, teria sido altamente gloriosa para ela se essa lei fizesse parte de um sistema de medidas iguais contra todas as bandeiras usurpadas pelos agentes daquela pirataria.

Mas qualquer que fosse a fraqueza da Inglaterra em não proceder contra os fortes como procedia contra os fracos, o brasileiro que lê a nossa história diplomática durante o período militante do tráfico o que sente é ver o poderio que a soma de interesses englobada nesse nome exercia sobre o país.

Esse poderio era tal que Eusébio de Queirós ainda em 1849 num memorando que redigiu para ser presente ao Ministério sobre a questão começava assim:

Para reprimir o tráfico de africanos no país sem excitar uma revolução, faz-se necessário: 1º atacar com vigor as novas introduções, esquecendo e anistiando as anteriores à lei; 2º dirigir a repressão contra o tráfico no mar, ou no momento do desembarque, enquanto os africanos estão em mãos dos introdutores.

O mesmo estadista no seu célebre discurso de 1852, procurando mostrar como o tráfico somente acabou pelo interesse dos agricultores, cujas propriedades estavam passando para as mãos dos especuladores e dos traficantes por causa das dívidas contraídas pelo fornecimento de escravos, confessou a pressão exercida de 1831 a 1850 pela agricultura consorciada com aquele comércio sobre todos os governos e todos os partidos.

Sejamos francos [disse ele]: o tráfico, no Brasil, prendia-se a interesses, ou para melhor dizer, a presumidos interesses dos nossos agricultores; e num país em que a agricultura tem tamanha força era natural que a opinião pública se manifestasse em favor do tráfico; a opinião pública, que tamanha influência tem, não só nos governos representativos, como até nas próprias monarquias absolutas. O que há, pois, para admirar em que os nossos homens políticos se curvassem a essa lei da necessidade? O que há para admirar em que nós todos, amigos ou inimigos do tráfico, nos curvássemos a essa necessidade? Senhores, se isso fosse crime, seria um crime geral no Brasil; mas eu sustento que, quando em uma nação todos os partidos políticos ocupam o poder, quando todos os seus homens políticos têm sido chamados a exercê-lo, e todos eles estão concordes em uma conduta, é preciso que essa conduta seja apoiada em razões muito fortes; impossível que ela seja um crime e haveria temeridade em chamá-la um erro.

Trocada a palavra “tráfico” pela palavra “escravidão”, esse trecho de eloquência calorosamente aplaudido pela Câmara poderá servir de apologia no futuro aos estadistas de hoje que quiserem justificar a nossa época. A verdade, porém, é que houve sempre diferença entre os inimigos declarados do tráfico e os seus protetores. Feita essa reserva a favor de um ou outro homem público que nenhuma cumplicidade teve nele, e outra quanto à moralidade da doutrina, de que se não pode chamar crime nem erro à violação da lei moral, quando é uma nação inteira que a comete, as palavras justificativas do grande ministro da Justiça de 1850 não exageram a degradação a que chegou a nossa política até uma época ainda recente. Algumas datas bastam para prova. Pela Convenção de 1826, o comércio de africanos devia no fim de três anos ser equiparado à pirataria, e a lei que os equiparou tem a data de 4 de setembro de 1850. A liberdade imediata dos africanos legalmente capturados foi garantida pela mesma convenção, quando ratificou a de 1817 entre Portugal e a Grã-Bretanha, e o decreto que emancipou os africanos livres foi de 24 setembro de 1864. Por último, a Lei de 7 de novembro de 1831 está até hoje sem execução e os mesmos que ela declarou livres acham-se ainda em cativeiro. Nessa questão do tráfico bebemos as fezes todas do cálice.

É por isso que nos envergonha ler as increpações que nos faziam homens como Sir Robert Peel, Lord Palmerston e Lord Brougham, e ver os ministros ingleses reclamando a liberdade dos africanos que a nossa própria lei declarou livres sem resultado algum. A pretexto da dignidade nacional ofendida, o nosso governo, que se achava na posição coata em que o descreveu Eusébio, cobria praticamente com a sua bandeira e a sua soberania as expedições dos traficantes organizadas no Rio e na Bahia. Se o que se fez em 1850 houvesse sido feito em 1844, não teria por certo havido bill Aberdeen.

A questão nunca devera ter sido colocada entre o Brasil e a Inglaterra, mas ente o Brasil com a Inglaterra de um lado e o tráfico do outro. Se jamais a história deixou de registrar uma aliança digna e honesta, foi essa a que não fizemos com aquela nação. O princípio: que o navio negreiro não tem direito à proteção do pavilhão, seria muito mais honroso para nós do que todos os argumentos tirados do direito internacional para consumar definitivamente o cativeiro perpétuo de estrangeiros introduzidos à força em nosso país.

O poder, porém, do tráfico era irresistível e até 1851 não menos de um milhão de africanos foram lançados em nossas senzalas. A cifra de 50 mil por ano não é exagerada.

Mais tarde teremos que considerar a soma que o Brasil empregou desse modo. Esse milhão de africanos não lhe custou menos de 400 mil contos. Desses 400 mil contos que sorveram as economias da lavoura durante 20 anos, 135 mil contos representam a despesa total dos negreiros, e 260 mil os seus lucros.[2]

Esse imenso prejuízo nacional não foi visto durante anos pelos nossos estadistas, os quais supunham que o tráfico enriquecia o país. Grande parte, seguramente, desse capital voltou para a lavoura quando as fazendas caíram em mãos dos negociantes de escravos que tinham hipotecas sobre elas por esse fornecimento, e assim se tornaram senhores perpétuos do seu próprio contrabando. Foi Eusébio quem o disse no seguinte trecho do seu discurso de 16 de julho de 1852 a que já me referi:

A isto [“o desequilíbrio entre as duas classes de livres e escravos” produzido “pela progressão ascendente do tráfico” “que nos anos de 1846, 1847 e 1848 havia triplicado”] veio juntar-se o interesse dos nossos lavradores: a princípio acreditando que na compra do maior número de escravos consistia o aumento dos seus lucros, os nossos agricultores, sem advertirem no gravíssimo perigo que ameaçava o país, só tratavam da aquisição de novos braços comprando-os a crédito, a pagamento de três a quatro anos, vencendo no intervalo juros mordentes. [Aqui segue-se a frase sobre a mortalidade dos africanos citada em outro capítulo.] Assim os escravos morriam, mas as dívidas ficavam, e com elas os terrenos hipotecados aos especuladores, que compravam os africanos aos traficantes para revender aos lavradores (Apoiados). Assim a nossa propriedade territorial ia passando da mão dos agricultores para os especuladores e traficantes (Apoiados). Essa experiência despertou os nossos lavradores, e fez-lhes conhecer que achavam sua ruína onde procuravam a riqueza, e ficou o tráfico desde esse momento definitivamente condenado.

Grande parte do mesmo capital realizado foi empregada na edificação do Rio de Janeiro e da Bahia, mas o restante foi exportado para Portugal, que tirou assim do tráfico, como tem tirado da escravidão no Brasil, não menores lucros do que a Espanha tirou dessas mesmas fontes em Cuba.

Ninguém, entretanto, lembra-se de lamentar o dinheiro desperdiçado nesse ignóbil comércio, porque os seus prejuízos morais deixaram na sombra todos os lucros cessantes e toda a perda material do país. O brasileiro que lê hoje os papéis do tráfico, para sempre preservados como o arquivo de uma das empresas mais sombrias a que jamais se lançou a especulação sem consciência que deslustra as conquistas civilizadoras do comércio, não atende senão à monstruosidade do crime e aos algarismos que dão a medida dele. O lado econômico é secundário, e o fato de haver sido este o principal, segundo a própria demonstração de Eusébio, tanto para triplicar de 1846 a 1848 o comércio, como para extingui-lo dois anos depois, prova somente a cegueira com que o país todo animava essa revoltante pirataria. Os poucos homens a quem esse estado de coisas profundamente revoltava, como por exemplo os Andradas, nada podiam fazer para modificá-lo. Os ousados traficantes de negros novos encastelados na sua riqueza mal adquirida eram onipotentes e levantavam contra quem ousava erguer a voz para denunciar-lhes o comércio as acusações de estrangeiros, de aliados da Inglaterra, de cúmplices das humilhações infligidas ao país.

O verdadeiro patriotismo, isto é, o que concilia a pátria com a humanidade, não pretende mais que o Brasil tivesse o direito de ir com a sua bandeira, à sombra do direito das gentes, criado para a proteção e não para a destruição da nossa espécie, roubar homens na África e transportá-los para o seu território.

Sir James Hudson qualificou uma vez o argumento “da dignidade nacional”, que o nosso governo sempre apresentava, nos seguintes termos: “Uma dignidade que se procura manter à custa da honra nacional, da deterioração dos interesses do país, da degradação gradual, mas certa do seu povo”. Essas palavras não eram merecidas em 1850 quando foram escritas; mas aplicam-se, com a maior justiça, ao longo período de 1831 até aquele ano.

Esse é o sentimento da atual geração. Todos nós fazemos votos para que, se alguma outra vez em nossa história, aterrando o governo, prostituindo a justiça, corrompendo as autoridades e amordaçando o Parlamento, algum outro poder, irresistível como foi o tráfico, se senhorear da nossa bandeira e subjugar as nossas leis para infligir um longo e atroz martírio nas mesmas condições a um povo de outro continente ou de outro país, essa pirataria não dure senão o tempo de ser esmagada com todos os seus cúmplices por qualquer nação que o possa fazer.

A soberania nacional para ser respeitada deve conter-se nos seus limites; não é ato de soberania o roubo de estrangeiros para o cativeiro. Cada tiro dos cruzadores ingleses que impedia tais homens de serem internados nas fazendas e os livrava da escravidão perpétua era um serviço à honra nacional. Esse pano verde-amarelo que os navios negreiros içavam à popa, era apenas uma profanação da nossa bandeira. Essa, eles não tinham o direito de a levantar nos antros flutuantes que prolongavam os barracões da costa de Angola e Moçambique até a costa da Bahia e do Rio de Janeiro. A lei proibia semelhante insulto ao nosso pavilhão, e quem o fazia não tinha direito algum de usar dele.

Essas ideias podem hoje ser expressas com a nobre altivez de um patriotismo que não confunde os limites da pátria com o círculo das depredações traçado no mapa do globo por qualquer bando de aventureiros; a questão é se a geração atual, que a odeia sinceramente o tráfico e se acha tão longe dele como da Inquisição e do Absolutismo, não deve pôr-lhe efetivamente termo, anulando aquela parte das suas transações que não tem o menor vislumbre de legalidade. Se o deve, é preciso acabar com a escravidão que não é senão o tráfico, tornado permanente e legitimado, do período em que a nossa lei interna já o havia declarado criminoso e no qual, todavia, ele foi levado por diante em escala e proporções nunca vistas.

Notas do autor

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  1. Esses navios chamados túmulos flutuantes, e que o eram em mais de um sentido, custavam relativamente nada. Uma embarcação de cem toneladas, no valor de sete contos, servia para o transporte de mais de 350 escravos (depoimento de Sir Charles Hotham, adiante citado, sec. 604).O custo total do transporte desse número de escravos (navio, salários da equipagem, mantimentos, comandante, etc.) não excedia de 10 contos de réis, ou em números redondos 30 mil réis por cabeça. (O mesmo, secs. 604-611). Um brigue de 167 toneladas capturado tinha a bordo 852 escravos, outro de 59, 400. Muitos desses navios foram destruídos depois de apresados como impróprios para a navegação.
  2. “Sendo £6 o custo do escravo em África, e calculando sobre a base de que um sobre três venha a ser capturado, o custo de transportar os dois outros seria £9 por pessoa, £18, às quais devem-se acrescentar £9 da perda do que foi capturado, perfazendo no Brasil o custo total dos dois escravos transportados £27 ou £13 10s por cabeça. Se o preço do escravo no desembarque é £60 haverá um lucro, não obstante a apreensão de um terço e incluindo o custo dos dois navios que transportam os dois terços de £46 10s por cabeça? – Eu penso assim.” Depoimento de Sir Charles Hotham, comandante da esquadra inglesa na África ocidental. Abril 1849. First Report from the Select Committee (House of Commons) 1849 § 614. O meu cálculo é esse mesmo tomando £40 como preço médio do africano no Brasil.