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O Abolicionismo/VIII

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“A grande injustiça da lei é não ter cuidado das gerações atuais.”

J. A. Saraiva

Não pretendo neste capítulo estudar a lei Rio Branco senão de um ponto de vista: o das esperanças razoáveis que pode deduzir do seu conjunto, e das condições em que foi votada, que atribua ao nosso Poder Legislativo firmeza de propósito, seriedade de motivos, pundonor nacional e espírito de eqüidade. Não se o julgando resoluto, refletido, patriótico e justo, não se pode derivar da lei esperança alguma, e deve-se mesmo temer que ela não seja pontualmente executada, como não foi a de 7 de novembro de 1831, feita quando a nação estava ainda à mercê dos agentes do tráfico.

A lei de 28 de setembro de 1871, [1] seja dito incidentemente, foi um passo de gigante dado pelo país. Imperfeita, incompleta, impolítica, injusta, e até absurda, como nos parece hoje, essa lei foi nada menos que o bloqueio moral da escravidão. A sua única parte definitiva e final foi este princípio: “Ninguém mais nasce escravo”. Tudo o mais, ou foi necessariamente transitório, como a entrega desses mesmos ingênuos ao cativeiro até aos vinte e um anos; ou incompleto, como o sistema de resgate forçado; ou insignificante, como as classes de escravos libertados: ou absurdo, como o direito do senhor da escrava à indenização de uma apólice de 600$000 pela criança de oito anos que não deixou morrer; ou injusto, como a separação do menor e da mãe, em caso de alienação desta. Isso quanto ao que se acha disposto na lei; quanto ao que foi esquecido o índice de omissões não teria fim. Apesar de tudo, porém, o simples princípio fundamental em que ela se assenta basta para fazer dessa lei o primeiro ato de legislação humanitária da nossa história.

Reduzida à expressão mais simples, a lei quer dizer a extinção da escravatura dentro de um prazo de meio século; mas essa extinção não podia ser decretada para o futuro sem dar lugar à aspiração geral de vê-la decretada para o presente. Não são os escravos somente que não se contentam com a liberdade dos seus filhos e querem também ser livres; somo nós todos que queremos ver o Brasil desembaraçado e purificado da escravidão, e não nos contentamos com a certeza de que as gerações futuras hão de ter esse privilégio. A lei de 28 de setembro, ao dizer aos escravos: “Os vossos filhos dora em diante nascerão livres, e chegando à idade da emancipação civil serão cidadãos”, esqueçamos por enquanto os serviços, disse implicitamente a todos os brasileiros: “Os vossos filhos, ou os vossos netos, hão de pertencer a um país regenerador.”

Essa promessa dupla poderia parecer final aos escravos, não porém aos livres. O efeito dessa perspectiva de uma pátria respeitada e honesta para os que vierem depois de nós, não podia ser outro senão o de despertar em nós mesmos a ambição de pertencer-lhe. Quando um Estado qualquer aumenta para o futuro a honra e a dignidade dos seus nacionais, nada mais natural do que reclamarem contra esse adiamento os que se vêem na posse do título diminuído. Não é provável que os escravos tenham inveja da sorte dos seus filhos; mas que outro sentimento nos pode causar, a nós cidadãos de um país de escravos, a certeza de que a geração futura há de possuir essa mesma pátria moralmente engrandecida - por ter a escravidão de menos?

É nesse sentimento de orgulho, ou melhor de pundonor nacional, inseparável do verdadeiro patriotismo, que se funda a primeira esperança de que a lei de 28 de setembro não seja a solução do problema individual de cada escravo e de cada brasileiro.

As acusações levantadas contra o projeto, se não deviam prevalecer para fazê-lo cair - porque as imperfeições, deficiências, absurdos, tudo o que se queira, da lei são infinitamente preferíveis à lógica da escravidão -, mostravam os pontos em que, pela opinião mesma dos seus adversários, a reforma, uma vez promulgada, precisaria ser moralizada, alargada e desenvolvida.

A lei de 28 de setembro não deve ser tomada como uma transação entre o Estado e os proprietários de escravos; mas como um ato de soberania nacional. Os proprietários tinham tanto direito de impor a sua vontade ao país quanto qualquer outra minoria dentro dele. A lei não é um tratado com a cláusula subentendida que não poderá ser alterado sem o acordo das partes contratantes. Pelo contrário, foi feita com a inteligência dos dois lados, seguramente com a previsão da parte dos proprietários, de que seria somente um passo. Os que a repeliram, dizia que ela eqüivalia à abolição imediata;[2] dos que a votaram, muitos qualificaram-na de deficiente e expressaram o desejo de vê-la completada por outras medidas, notavelmente pelo prazo. Quando, porém, o Poder Legislativo fosse unânime em dar à lei Rio Branco o alcance e a significação de uma solução definitiva da questão, aquela legislatura não tinha delegação especial para ligar as futuras Câmaras, nem o direito de fazer leis que não pudessem ser ampliadas ou revogadas por estas. Mais tarde veremos que profecias terríveis foram feitas então, que medidas excepcionais foram julgadas precisas.

Outra pretensão singular é a de que esse ato legalizou todos os abusos que não proscreveu, anistiou todos os crimes que não puniu, revogou todas as leis que não mencionou. Pretende-se mesmo, que essa lei, que aboliu expressamente as antigas revogações de alforria, foi até revogar por sua vez a carta de liberdade que a lei de 7 de novembro de 1831 dera a todos os africanos importados depois dela. Não admira que essa hermenêutica em matéria de escravidão - matéria em que na dúvida, aí não há dúvida alguma, é o princípio da liberdade que prevalece - quando lemos ainda hoje editais para a venda judicial de ingênuos. [3]

Essa interpretação, todavia - séria como é, por ser a nossa magistratura na sua generalidade cúmplice da escravidão, como o foi, por tanto tempo, do tráfico - aparta-se demasiado da opinião pública para por verdadeiramente em perigo o caráter da lei de 28 de setembro. Vejamos, deixando de parte a construção escravagista da lei, em que pontos, pelos próprios argumentos dos que a combateram, estava indicada desde o princípio a necessidade de reformá-la, e, pelos argumentos dos que a promoveram, a necessidade de alargá-la e de aumentar-lhe o alcance. Comecemos pelos últimos.

Em geral pode-se dizer que a lei foi deficiente em omitir medidas propostas muito antes no Parlamento, como, por exemplo, o projeto Wanderlei (de 1854) que proibia o tráfico interprovincial de escravos. A lei que libertou os nascituros podia bem ter localizado a escravidão nas províncias. Igualmente pontos capitais sustentados com toda a força no Conselho de Estado, como, por exemplo, a fixação do preço máximo para a alforria, a revogação da pena bárbara de açoites e da lei de 10 de junho de 1835, a proibição de dividir a família escrava, incompletamente formulada na lei de 15 de setembro de 1869, foram deixados de parte na proposta do governo e por isso o Código negro brasileiro, civil e penal, continua, depois da lei chamada de emancipação, a ser em geral tão bárbaro quanto antes.

A direção principal entretanto, em que se propôs o alargamento da lei, foi a do prazo. Nessa matéria, Souza Franco teve a maior parte, e o prazo por mim proposto na Câmara dos Deputados em 1880 não foi senão a execução do plano delineado por aquele estadista na seguinte proposta que apresentou no Conselho de Estado em 1867:

Que a declaração do dia em que cessa a escravidão no Império deve ficar para o décimo ano da execução da lei supra sendo o artigo seguinte: — Art. 23. No décimo ano da execução desta lei, o governo, tendo colhido todas as informações as apresentará à Assembléia Geral Legislativa, com a estatística dos libertados, em virtude de sua execução, e do número dos escravos então existentes no Império para que, sob proposta também sua, se fixe o prazo em que a escravidão cessará completamente. [4]

A disposição (acrescentava ele em 1868) cuja falta é mais sensível (no projeto em discussão no Conselho de Estado) é a do prazo em que a escravidão cesse em todo o Império. O projeto, calando-se sobre esse ponto muito importante, parece ter tido por fim evitar reclamações de prazo muito breve, que assuste os proprietários de escravos, e também a melindrosa questão da indenização. Não satisfaria porém a opinião que exige compromisso expresso da extinção da escravidão.

O prazo, por outro lado, era combatido no grupo liberal mesmo, por demasiado extenso. Pimenta Bueno, depois marquês de São Vicente, propusera o dia 31 de dezembro de 1899 para a abolição completa no Império com indenização. Foi esse o prazo discutido no Conselho de Estado,[5] onde foi julgado por uns muito longo para os escravos, e por outros afastado demais para ser marcado em 1867. A extensão do prazo era com efeito absurda.

Não concordoa com o artigo do projeto (São Vicente) - foi o voto do Conselheiro Nabuco - que marca como termo da escravidão o último dia do ano de 1899. Se não podemos marcar um prazo mais breve, é melhor nada dizer: cada um calcule pela probabilidade dos fatos naturais dos nascimentos e óbitos, e pelas medidas do projeto, quando acabará a escravidão: a declaração de um quarto de século não é lisonjeira ao Brasil.

No Senado, porém, na discussão da lei, foi apresentado um prazo mais curto - o de vinte anos - pelo senador Silveira da Mota. Esse prazo levava a escravidão até o ano de 1891 do qual ela vai se aproximando sem limitação alguma. Ainda esse prazo pareceu longo demais ao senador Nabuco, o qual disse no Senado: Eu não sou contrário à idéia do prazo, não como substitutiva da idéia do projeto, mas como complementar dela.

O prazo dado à escravidão pela lei proposta era de cinqüenta ou sessenta anos, mas havia, além da liberdade pelo nascimento, as medidas da lei e esperança de que, uma vez votada essa, “a porfia dos partidos seria para que a emancipação gradual fosse a mais ampla e a mais breve possível”.[6] Por isso o prazo era um meio apenas de proteger os interesses das gerações existentes de escravos, de preencher de alguma forma a lacuna que faz a grande injustiça na lei, na frase do sr. Saraiva, que serve de epígrafe a este capítulo.

A lei não cuidou das gerações atuais; mas foi feita em nome dessas, arrancada pela compaixão e pelo interesse que a sua sorte inspirava dentro e fora do país, espalhando-se pelo mundo a notícia de que o Brasil havia emancipado seus escravos; e por isso durante toda a discussão o sentimento predominante era de pesar, por se fazer tanto pelos que ainda não tinham nascido e tão pouco pelos que haviam passado a vida no cativeiro.

Aqui entram os argumentos dos inimigos do projeto. A injustiça de libertar os nascituros, deixando entregues à sua sorte os escravos existentes, não podia escapar, nem escapou, aos amigos da lei, e foi-lhes lançada em rosto pelos contrarios. O interesse d’estes pelos velhos escravos vergados ao peso dos annos, não podia ser expresso de modo mais pathetico do que, por exemplo, pela lavoira de Pirahy nas palavras que vou griphar: — “Fundada na mais manifesta injustiça relativa entre os escravos, diziam os agricultores d'aquelle municipio, (a proposta) concede o favor da liberdade aos que, pelo cego acaso, nascerem depois de tal dia, conservando entretanto na escravidão os individuos que por longos, proveitosos e relevantes serviços mais jus têem á liberdade.”!

Esse era o grande, o formidavel grito dos inimigos da proposta: — “Libertaes, diziam elles, as gerações futuras, e nada fazeis pelos que estão, ha trinta, quarenta, cincoenta annos, e mais, mergulhados na degradação do captiveiro.” A isso respondiam os partidarios da reforma: — “Não nos esquecemos das gerações actuaes; para ellas ha a liberdade gradual,” ou na phrase do senador Nabuco: — “Confiem os escravos na emancipação gradual.” O compromisso do paiz para com estes não podia ser mais solemne. Dizia-se-lhes: — “Por ora decretamos a liberdade dos vossos filhos ainda não nascidos, mas a vossa não ha de tardar: a lei estabeleceu meios, creou um fundo de emancipação que vos libertará a todos, providenciou para encontrardes nas sociedades de emancipação o capital preciso para a vossa alforria.”

Por outro lado a lei foi antes denunciada como devendo ser o fim da escravidão. Já vimos o que se disse na Câmara. Em toda a parte se repetia que viria a abolição logo após ela. Os receios do marquês de Olinda de que o Estado fosse “posto em convulsão”,[7] não se verificaram; mas esses receios provinham do conhecimento da lógica das coisas humanas que esta frase do visconde de Itaboraí revela:

Nem é preciso terem os escravos muito atilamento para compreender que os mesmos direitos dos filhos devem ter os seus progenitores, nem se pode supor que vejam com indiferença esvaecerem-se-lhes as esperanças de liberdade, que têm afagado em seus corações

Está aí claramente um ponto da lei de 28 de setembro no qual os seus adversários tinham razão em querer harmonizá-la com a justiça. O grito: “Deveis fazer pelas gerações atuais pelo menos tanto quanto baste ou seja preciso para que não se torne para elas uma decepção o que fizestes pelas gerações futuras”, partiu dos inimigos da proposta; se esse grito nenhum valor moral tinha para impedir as Câmaras de votá-la, hoje que essa proposta é lei do Estado, os próprios que o levantaram estão obrigados a moralizar a lei.

O sr. Cristiano Ottoni disse há dois anos da tribuna do Senado ao que combateram a reforma de 1871: “O que o patriotismo aconselha é que nos coloquemos dentro da lei de 28 de setembro; mas para estudar seus defeitos e lacunas, para corrigi-los e suprimi-los.” Ora esses defeitos e lacunas denunciados pela oposição eram principalmente o abandono da geração presente e a condição servil dos ingênuos até os vinte e um anos. O mais estrênuo dos adversários da lei reconheceu então que “a nação brasileira tinha assumido sérios compromissos perante as nações”, e que a promessa de libertação dos escravos por um fundo de amortização era uma dívida de honra. “Por cinco anos, disse ele, choveu sobre as almas dos míseros cativos, como o maná sobre os israelitas no deserto, a esperança da liberdade, bafejada do trono.” [8]

Quanto aos ingênuos, por exemplo, com que aparência de lógica e de sentimento da dignidade cívica não denunciavam os adversários da lei a criação dessa classe de futuros cidadãos educados na escravidão e com todos os vícios dela. Ainda o mesmo sr. Cristiano Ottoni, num discurso no Clube da Lavoura e do Comércio, expressava-se assim a respeito dessa classe:

E que cidadãos são esses? Como vêm eles depois para a sociedade, tendo sido cativos de fato, não sabendo ler nem escrever, não tendo a mínima noção dos direitos e deveres do cidadão, inçados de todos o vícios da senzala? (Apoiados.) Vícios da inteligência e vícios do coração? (Apoiados.)

Esses apoiados dos próprios diretamente responsáveis pelos vícios da senzala são pelos menos inconscientes.

O argumento é por sua natureza abolicionista: formulado pelos mesmos que queriam manter esses ingênuos na condição de escravos, é uma compaixão mal colocada e a condenação apenas da capacidade política dos libertos.

Apesar disso, porém, quando o sr. Paulino de Sousa exprobava ao visconde do Rio Branco “essa classe predileta dos novos ingênuos (que o visconde de Itaboraí chamara escravos-livres), educados na escravidão até aos vinte e um anos, isto é, durante o tempo em que se formam o caráter moral, a inclinação e os hábitos dos indivíduos”, aquele chefe conservador, sem o querer por certo, mostrava um dos defeitos capitais da lei, que precisava ser emendado de acordo com o sentimento da dignidade cívica. Não há razão, e a nossa lei constitucional não permite dúvida, para que o liberto, o que foi escravo, não seja cidadão; mas há sérios motivos para que os ingênuos, cidadãos como quaisquer outros, não sejam educados no cativeiro. Já que esses ingênuos existem, não será dever estrito dos que viram tão claramente esse erro da lei concorrer para que o “o caráter moral, a inclinação e os hábitos” de centenas de milhares de cidadãos brasileiros sejam formados longe da atmosfera empestada da senzala que, segundo a confissão dos que melhor a conhecem, é uma verdadeira Gruta do Cão para todas as qualidades nobres?

É assim que tudo quanto foi dito contra a lei do ponto de vista da civilização torna obrigatório para os que a combateram o modificá-la e desenvolvê-la. Nesse sentido o sr. Cristiano Ottoni deu um belo exemplo. Por outro lado as esperanças, as animações, as expectativas de que os partidários e entusiastas da reforma, encheram a alma e a imaginação dos escravos, constituem outras tantas promessas de que estes têm o direito de exigir o cumprimento. A lei não foi o repúdio vergonhoso do compromisso tomado com o mundo em 1866 pelo ministro de Estrangeiros do Brasil. Pelo contrário foi os eu reconhecimento, a sua ratificação solene.

Que se tem feito até hoje para saldar essa dívida de honra? No correr destas páginas ver-se-ão quais foram e quais prometem ser os efeitos da lei comparativamente aos da morte; a bondade e afeição dos senhores pelos escravos, assim como a iniciativa particular tem feito muito mais que o Estado, mas dez vezes menos que a morte. “A morte liberta 300.000”, disse no Senado a autoridade insuspeita que tenho tanto citado, o sr. Cristiano Ottoni, “os particulares 35.000, o Estado que se obrigou à emancipação 5.000 no mesmo período.” O mercado de escravos continua, as famílias são divididas, as portas delineadas na lei não foram ainda rasgadas, a escravidão é a mesma sempre, os seus crimes e as suas atrocidades repetem-se freqüentemente, e os escravos vêem-se nas mesmas condições individuais, com o mesmo horizonte e o mesmo futuro de sempre, desde que os primeiros africanos foram internados no sertão do Brasil. A não se ir além da lei, esta ficaria sendo uma mentira nacional, um artifício fraudulento pra enganar o mundo, os brasileiros, e, o que é mais triste ainda, os próprios escravos. A causa destes, porém, assenta sobre outra base, que todavia não deverá ser considerada mais forte do que esses compromissos nacionais: a ilegalidade da escravidão. Para se verificar até que ponto a escravidão entre nós é ilegal, é preciso conhecer-lhe as origens, e a pirataria da qual ela deriva os seus direitos por uma série de endossos tão válidos como a transação primitiva.

Notas do autor

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  1. Não sou suspeito falando dessa lei. Além de ter pessoalmente particular interesse no renome histórico do visconde do Rio Branco, ninguém contribuiu mais para preparar aquele ato legislativo e mover a opinião em seu favor do que meu pai, que de 1866 a 1871 fez dele a sua principal questão política. “No Conselho de Estado” disse no Senado, em 1871, sr. F. Otaviano, falando do senador Nabuco, “na correspondência com os fazendeiros, e na tribuna por meio de eloqüentes discursos, foi ele que fez a idéia amadurecer e tomar proporções de vontade nacional.” Em todo esse período em que a resolução conhecida do imperador serviu de núcleo à formação de uma força constitucional capaz de vencer o poder da escravidão, isto é, de 66 a 71, aquele estadista, como Sousa Franco, Otaviano, Tavares Bastos, preparou o Partido Liberal, ao passo que São Vicente e Tales Torres-Homem prepararam o partido Conservador para a reforma, à qual coube ao visconde do Rio Branco a honra de ligar merecidamente o seu nome com o aplauso de todos eles.
  2. “Há de acontecer o que prevejo: se passar a proposta do governo, a emancipação estará feita no país dentro de um ou dois anos (Apoiados) O SR. ANDRADE FIGUEIRA: E eles sabem disso. O SR. C. MACHADO: É a véspera do dia da emancipação total. O SR. ANDRADE FIGUEIRA: O sr. presidente do Conselho declarou no seu parecer no Conselho de Estado que esta seria a conseqüência” - Discurso do Sr. Almeida Pereira na Câmara dos Deputados em agosto de 1971
  3. A respeito de um desses editais, tive a honra de dirigir um protesto ao visconde de Paranaguá, presidente do Conselho, no qual dizia: “A lei de 7 de novembro de 1831 está de fato revogada; chegou o momento de o governo mostrar que essa não pode ser a sorte da lei de 28 de setembro de 1871. É preciso impedir esse tráfico de ingênuos que desponta. Não é abafando escândalos dessa ordem que se o pode conseguir. Esse edital de Valença abre uma página tristíssima na história do Brasil, e cabe a V. Exa. rasgá-la quanto antes. A começar a venda, por editais ou sem eles, dos serviços dos ingênuos, a lei de 28 de setembro de 1871 será em breve reputada pelo mundo como a mais monstruosa mentira a que uma nação jamais recorreu para esconder um crime. A questão é a seguinte: Podem ou não os ingênuos ser vendidos? Pertence ao governo salvar a dignidade de toda essa imensa classe criada pela lei de 28 de setembro”.
  4. O ilustre chefe liberal acreditava assim que na sessão legislativa de 1879 ou poder-se-ia “decretar a extinção total da escravidão pata o 1º ou 2º quinquênio de 1880-90.
  5. “Num projeto apresentado a 17 de maio de 1865 o visconde de Jequitinhonha propôs, entre outras medidas, o prazo de quinze anos para a abolição da escravidão civil no Brasil. Esse prazo, caso fosse adotado teria acabado a escravidão em 1880. Dois anos depois, porém, no Conselho de Estado, pronunciando-se sobre o prazo-Pimenta Bueno (ia até o fim do século) aquele estadista condenou-o, tendo-se decidido a adotar o sistema da liberdade dos que nascessem depois da lei promulgada. Jequitinhonha, de quem disse o visconde de Jaguari, “foi ele o primeiro homem de Estado que se empenhou pela emancipação dos escravos entre nós” - a homenagem seria mais justa dizendo-se: no Segundo reinado, - era um abolicionista convicto, franco e declarado. Na questão extravagante todavia, que mais ocupou o Conselho de Estado: - se os filhos livres de mãe escrava seriam ingênuos ou libertos? - e na qual o princípio: o parto segue o ventre, representou tão importante papel, aquele estadista deixou-se enlear por uma teia de aranha do romanismo, e uniu-se aos que queriam declarar liberto a quem nunca havia sido escravo. Esses e outros erros, porém, em nada diminuem o renome do abolicionista de Montezuma, cuja atitude frente à escravidão sempre foi a de um adversário convencido de que ela era literalmente, na sua frase, o “cancro” do Brasil.
  6. Nabuco, discurso na discussão do projeto de lei sobre o elemento servil.
  7. “A não se seguir o plano que acabo de indicar (o de não se fazer absolutamente nada) não vejo providências que não ponha o Estado em convulsão... Uma só palavra que deixe perceber a idéia de emancipação por mais adornada que ela seja”, - isto é, disfarçada - “abre a porta a milhares de desgraças”. Trabalho sobre a extinção da escravatura no Brasil, p. 38 e 41.
  8. José de Alencar, ministro do gabinete Itaboraí, denunciou aquele período de gestação em termos que hoje, em vez de serem uma censura, fazem honra a Dom Pedro II: “Não se trata”, disse o notável escritor cearense, o qual nessa questão se deixou guiar, não pelos seus melhores sentimentos, mas por prevenções pessoais, “de uma lei, trata-se de uma conjuração do poder. Desde 1867 que o Poder conspira, fatigando a relutância dos estadistas chamados ao governo, embotando a resistência dos partidos; desde 1867 que se prepara nas sombras este golpe de Estado, que há de firmar no país o absolutismo ou antes desmascará-lo.” Que a ação individual do imperador foi empregada, sobretudo depois de 1845 até 1850, em favor da supressão do tráfico, resultando naquele ano nas medidas de Eusébio de Queiroz, e de 1866 a 1871 em favor da emancipação dos nascituros, resultando neste último ano na lei Rio Branco, é um fato que o imperador, se quisesse escrever memórias e contar o que se passou com os diversos gabinetes dos dois períodos , poderia firmar historicamente com um sem número de provas. A sua parte no que se tem feito é muito grande, e quase a essencial, porquanto ele poderia ter feito o mesmo com outros homens e por outros meios, sem receio de revolução. O que eu digo porém é que se Dom Pedro II, desde que subiu ao trono, tivesse como Norte invariável do seu reinado o realizar a abolição como seu pai realizou a Independência, sem exercer mais poder pessoal do que exerceu, por exemplo, para levar a guerra do Paraguai até a destruição total do governo de Lopez, a escravidão já teria a esta hora desaparecido do Brasil. É verdade que se não fosse o imperador, os piores traficantes de escravos teriam sido feitos condes e marqueses do Império, e que Sua Majestade sempre mostrou repugnância pelo tráfico, e interesse pelo trabalho livre; mas comparado à soma de poder que ele exerce ou possui, o que se tem feito em favor dos escravos no seu reinado já de quarenta e três anos, é muito pouco. Basta dizer que ainda hoje a capital do Império é um mercado de escravos! Veja-se por outro lado o que fez o Czar Alexandre II, dentro de seis anos de reinado. Não temos que nos incomodar com os que nos chamam de contraditórios, porque fazemos apelo ao imperador sendo opostos, pelo menos na maior parte, ao governo pessoal. O uso do prestígio e da força acumulada que o imperador representa no Brasil, em favor da emancipação dos escravos, seria no mais lato sentido da palavra expressão da vontade nacional. Com a escravidão não há governo livre, nem democracia verdadeira; há somente governo de casta e regime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes, e a população avassalada e empobrecida não ousa tê-los.