O Anjo Rafael/II
A pessoa que batera à porta era um homem grosseiramente vestido. Trazia uma carta na mão.
— Que me quer? perguntou-lhe o dr. Antero.
— Trago esta carta, que lhe manda meu amo.
O dr. Antero aproximou-se da luz para ler a carta.
A carta dizia assim:
Uma pessoa que deseja propor um negócio ao sr. dr. Antero da Silva pede-lhe que venha imediatamente à sua casa. O portador desta o acompanhará. Trata-se de uma fortuna.
O rapaz leu e releu a carta, cuja letra não conhecia, e cujo laconismo trazia um ar de mistério.
— Quem é teu amo? perguntou o dr. Antero ao criado.
— É o sr. major Tomás.
— Tomás de quê?
— Não sei mais nada.
O dr. Antero franziu a testa. Que mistério seria aquele? Uma carta sem assinatura, uma proposta lacônica, um criado que não sabia o nome do patrão, eis quanto bastou para despertar vivamente a curiosidade do dr. Antero. Apesar de não ter o espírito propenso às aventuras, esta o impressionara a tal ponto que esqueceu por um instante a lúgubre viagem tão friamente planeada.
Olhou para o criado atentamente; as feições eram comuns, o olhar pouco menos de estúpido. Evidentemente não era um cúmplice, se é que no fundo daquela aventura havia um crime.
— Onde mora teu amo? perguntou o dr. Antero.
— Na Tijuca, respondeu o criado.
— Mora só?
— Com uma filha.
— Menina ou moça?
— Moça.
— Que qualidade de homem é o major Tomás?
— Não lhe posso dizer, respondeu o criado, porque fui para lá há oito dias apenas. Quando entrei, disse-me o patrão: "José, a tua obrigação é servir muito, falar pouco e não ver nada". Até hoje tenho executado a ordem do patrão.
— Há mais criados em casa? perguntou o dr. Antero.
— Há uma criada, que serve à filha do amo.
— Ninguém mais?
— Ninguém mais.
A idéia do suicídio já estava longe do espírito do dr. Antero. O que o prendia agora era o mistério daquela missão noturna e as singulares referências do portador da carta. Varreu-lhe do espírito igualmente a suspeita de um crime. A sua vida tinha sido tão indiferente ao resto dos homens, que não podia ter inspirado a ninguém a idéia de uma vingança.
Contudo, hesitava ainda; mas relendo o misterioso bilhete, reparou nas últimas palavras: trata-se de uma fortuna; palavras que nas duas primeiras leituras apenas lhe causaram uma ligeira impressão.
Quando um homem quer deixar a vida por um simples aborrecimento, a promessa de uma fortuna é razão bastante para suspender o passo fatal. No caso do dr. Antero a promessa da fortuna era razão decisiva. Se averiguarmos bem a causa principal do tédio que este mundo lhe inspirava, veremos que não é outra senão a falta de cabedais. Desde que estes lhe batiam à porta, o suicídio já não tinha razão de ser.
O doutor disse ao criado que o esperasse, e tratou de vestir-se.
— Em todo o caso, disse ele consigo, a todo tempo é tempo; se não morrer hoje posso morrer amanhã.
Vestiu-se, e lembrando-se de que seria conveniente ir armado, meteu a pistola no bolso, e saiu acompanhado pelo criado.
Quando os dois chegaram à porta da rua, já os esperava um carro. O criado convidou o dr. Antero a entrar, e foi sentar na almofada com o cocheiro.
Conquanto os cavalos fossem a trote largo, longa pareceu a viagem ao doutor, que, apesar das circunstâncias singulares daquela aventura, tinha ânsia por ver-lhe o desfecho. Entretanto, à proporção que o carro se ia afastando do centro populoso da cidade, o espírito do nosso viajante tomava-se de certa apreensão. Era ele mais estouvado que animoso; a sua tranqüilidade diante da morte não era resultado do valor de ânimo. No fundo do seu espírito havia uma extrema dose de fraqueza. Podia disfarçá-la quando dominava os acontecimentos; mas agora que os acontecimentos dominavam a ele, facilmente desaparecia o simulacro de coragem.
Enfim o carro chegou à Tijuca, e, depois de andar um grande espaço, parou diante de uma chácara completamente separada de todas as demais habitações.
O criado veio abrir a porta, e o doutor apeou-se. As pernas tremiam-lhe um pouco, e o coração pulsava-lhe apressadamente. Estavam diante de um portão fechado. A chácara era cercada por um muro um tanto baixo, por cima do qual o dr. Antero pôde ver a casa de habitação, colocada no fundo da chácara perto da encosta de uma colina.
O carro deu volta e partiu, enquanto o criado abria o portão com uma chave que trazia no bolso. Entraram os dois, e o criado fechando por dentro o portão indicou o caminho ao dr. Antero.
Não quero dar ao meu herói proporções que ele não tem; confesso que naquele momento o dr. Antero da Silva estava bem arrependido de ter aberto a porta ao importuno portador da carta. Se pudesse fugir, fugia, ainda correndo o risco de passar por covarde aos olhos do criado. Mas era impossível. O doutor fez das tripas coração, e caminhou na direção da casa.
A noite era clara, mas sem lua; soprava um vento que agitava brandamente as folhas das árvores.
O doutor caminhava por uma alameda acompanhado pelo criado; rangia a areia debaixo de seus pés. Apalpou o bolso para verificar se tinha a pistola consigo; em todo o caso era um recurso.
Quando chegaram ao meio do caminho o doutor perguntou ao criado:
— O carro não volta?
— Suponho que sim; meu amo o informará melhor.
O doutor teve uma idéia súbita: empregar o tiro no criado, saltar o muro e voltar para casa. Chegou a engatilhar a arma, mas imediatamente refletiu que o ruído despertaria a atenção, e a sua fuga tornava-se improvável.
Resignou-se, pois, à sorte, e caminhou para a casa misteriosa.
Misteriosa é o termo; todas as janelas estavam fechadas; não havia uma única réstia de luz; não se ouvia o menor rumor de fala.
O criado tirou do bolso outra chave, e com ela abriu a porta da casa, que tornou a fechar apenas o doutor entrou. Aí tirou o criado do bolso uma caixa de fósforos, acendeu um, e com ele um rolo de cera que trazia consigo.
O doutor viu então que se achava em uma espécie de pátio, tendo ao fundo uma escada comunicando para o sobrado. Perto da porta de entrada havia um cubículo tapado por um gradil de ferro, e que servia de casa a um enorme cão. O cão entrou a rosnar quando pressentiu gente; mas o criado fê-lo calar, dizendo:
— Silêncio, Dolabela!
Subiram a escada até acima, e depois de atravessarem um extenso corredor, acharam-se diante de uma porta fechada. O criado tirou do bolso uma terceira chave, e depois de abrir a porta convidou o dr. Antero a entrar, dizendo:
— Queira o senhor esperar aqui, enquanto eu vou dar parte a meu amo da sua chegada. Entretanto, deixe-me acender-lhe uma vela.
Efetivamente acendeu uma vela que se achava dentro de um castiçal de bronze em cima de uma pequena mesa redonda de mogno, e saiu.
O dr. Antero achava-se num quarto; havia a um lado uma cama alta; a mobília era de um gosto severo; o quarto tinha apenas uma janela, mas gradeada. Sobre a mesa havia alguns livros, pena, papel e tinta.
É fácil imaginar a ânsia com que o doutor esperou a resposta do seu misterioso correspondente. O que ele queria era pôr termo àquela aventura que tinha ares de um conto de Hoffmann. A resposta não se demorou. O criado voltou dizendo que o major Tomás não podia falar imediatamente ao doutor; oferecia-lhe quarto e cama, e adiava. a explicação para o dia seguinte.
O doutor insistiu em falar-lhe naquela ocasião, pretextando ter importante motivo de voltar à cidade; no caso de não poder o major falar-lhe, propunha ele voltar no dia seguinte. O criado ouviu-o com todo o respeito, mas declarou que não voltaria ao patrão, cujas ordens eram imperiosas. O doutor ofereceu dinheiro ao criado; mas este recusou os presentes de Artaxerxes com um gesto tão solene, que tapou a boca ao moço.
— Tenho ordem, disse finalmente o criado, de trazer-lhe uma ceia.
— Não tenho fome, respondeu o dr. Antero.
— Nesse caso, boa noite.
— Adeus.
O criado dirigiu-se para a porta, enquanto o doutor o seguia ansiosamente com os olhos. Iria ele fechar-lhe a porta por fora? Realizou-se a suspeita; o criado fechou a porta e levou a chave consigo.
É mais fácil imaginar que narrar a noite aflitiva do dr. Antero. Os primeiros raios do sol, penetrando através das grades da janela, acharam-no vestido sobre a cama, onde só conseguira adormecer pelas quatro horas da madrugada.