O Anjo Rafael/III
Ora, o nosso herói teve um sonho durante o curto espaço de tempo que dormiu. Sonhou que tendo executado o seu plano de suicídio, fora levado para a cidade das dores eternas, onde Belzebu o destinava a ser perpetuamente queimado numa imensa fogueira. O infeliz fazia as suas objeções ao anjo do reino escuro; mas este, com uma única resposta, reiterava a ordem dada. Quatro chanceleres infernais lançaram mão dele e o lançaram ao fogo. O doutor deu um grito e acordou.
Saía de um sonho para entrar em outro.
Levantou-se espantado; não conhecia o quarto em que se achava, nem a casa em que dormira. Mas pouco a pouco foi-lhe reproduzindo a memória todos os incidentes da véspera. O sonho tinha sido um mal imaginário; mas a realidade era um mal positivo. O rapaz teve ímpetos de gritar; reconheceu, porém, a inutilidade do recurso; preferiu esperar.
Não esperou muito; daí alguns minutos ouviu o ruído da chave na fechadura.
Entrou o criado.
Trazia na mão as folhas do dia.
— Já de pé!
— Sim, respondeu o dr. Antero. Que horas são?
— Oito horas. Aqui tem as folhas de hoje. Olhe, ali tem um lavatório
O doutor não havia reparado ainda no lavatório; a preocupação tinha-lhe feito esquecer a lavagem do rosto; tratou de remediar o esquecimento.
Enquanto lavava o rosto, perguntou-lhe o criado:
— A que horas almoça?
— Almoçar?
— Sim, almoçar.
— Pois eu vou ficar aqui?
— São ordens que tenho.
— Mas, enfim, estou ansioso por falar a esse major que não conheço, e que me tem preso sem que eu saiba por que motivo.
— Preso! exclamou o criado. O senhor não está preso; meu amo quer falar-lhe, e por isso é que eu o fui chamar; deu-lhe quarto, cama, dá-lhe um almoço; creio que isto não é tê-lo preso.
O doutor tinha enxugado o rosto, e sentou-se numa poltrona.
— Mas que me quer teu amo? perguntou-lhe.
— Isso não sei, respondeu o criado. A que horas quer o almoço?
— A que for do teu gosto.
— Bem, respondeu o criado. Aqui tem as folhas.
O criado fez um respeitoso cumprimento ao doutor e saiu fechando a porta.
Cada minuto que passava era para o desgraçado moço um século de angústia. O que mais o torturava eram precisamente aquelas atenções, aqueles obséquios sem explicação possível, sem presumível desfecho. Que homem seria esse major, e que lhe queria ele? O doutor fez mil vezes esta pergunta a si mesmo sem achar resposta possível.
Do criado já sabia ele que nada poderia alcançar; além de novo na casa, parecia absolutamente estúpido. Seria honesto?
O dr. Antero fez esta última reflexão metendo a mão no bolso e tirando a carteira. Restavam-lhe ainda uns cinqüenta mil-réis.
— É quanto basta, pensou ele, para conseguir deste pateta que me ponha fora daqui.
O doutor esquecia que já na véspera o criado recusara dinheiro em troca de um serviço menos importante.
Às nove horas o criado voltou trazendo numa bandeja um almoço delicado e apetitoso. Apesar da gravidade da situação, o nosso herói atacou o almoço com uma intrepidez de verdadeiro general de mesa. Dentro de vinte minutos só restavam nos pratos mortos e feridos.
Ao mesmo tempo que comia ia ele interrogando o criado.
— Dize-me cá; queres fazer-me um grande favor?
— Qual?
— Tenho aqui cinqüenta mil-réis à tua disposição, e amanhã posso dar-te mais cinqüenta, ou cem, ou duzentos; em troca disto peço-te que arranjes meio de me pôr fora desta casa.
— Impossível, senhor, respondeu o criado sorrindo; eu só obedeço a meu amo.
— Sim; mas teu amo nunca virá a saber que eu te dei dinheiro; tu podes dizer-lhe que a minha fuga foi devida a um descuido, e deste modo ficamos ambos salvos.
— Eu sou honrado; não posso aceitar o seu dinheiro.
O doutor ficou desanimado com a austeridade do fâmulo; bebeu o resto do borgonha que tinha no copo, e levantou-se fazendo um gesto de desespero.
O criado não se impressionou; preparou o café para o hóspede e foi oferecer-lhe. O doutor bebeu dois ou três goles e restituiu-lhe a xícara. O criado arrumou a louça na bandeja e saiu.
No fim de meia hora voltou o criado dizendo que seu amo estava pronto para receber o dr. Antero.
Conquanto o doutor desejasse sair da situação em que se achava, e saber o fim para que o haviam mandado buscar, nem por isso o impressionou menos a idéia de ir ver enfim o terrível e desconhecido major.
Lembrou-se que podia haver algum perigo, e instintivamente apalpou a algibeira; esquecia-se de que ao deitar-se tinha posto a pistola debaixo do travesseiro. Era impossível tirá-la à vista do criado, resignou-se.
O criado fê-lo sair primeiro, fechou a porta e seguiu adiante para guiar o mísero doutor. Atravessaram o corredor por onde haviam passado na véspera; depois entraram em outro corredor que ia ter a uma pequena sala. Aí disse o criado ao doutor que esperasse enquanto ia dar parte a seu amo, e penetrando numa sala que ficava à esquerda, voltou pouco depois dizendo que o major esperava o dr. Antero.
O doutor passou à outra sala.