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O Anjo Rafael/IV

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Estava ao fundo, sentado numa poltrona de couro, um velho alto e magro, envolvido num largo chambre amarelo.

O doutor deu apenas alguns passos e parou; mas o velho, apontando-lhe para uma cadeira que lhe ficava defronte, convidou-o a sentar.

O doutor obedeceu imediatamente.

Houve um curto silêncio, durante o qual o dr. Antero pôde examinar a figura que tinha diante de si.

Os cabelos do major Tomás eram completamente brancos; a tez era pálida e macilenta. Os olhos vivos, mas encovados; dissera-se a luz de uma vela prestes a extinguir-se, e soltando do fundo do castiçal os seus últimos lampejos.

Os beiços do velho eram finos e brancos; e o nariz, curvo como um bico de águia, assentado sobre um par de bigodes da cor dos cabelos; os bigodes eram a base daquela enorme coluna.

O aspecto do major poderia causar menos desagradável impressão, se não fossem as bastas e cerradas sobrancelhas, cujas pontas internas vinham ligar-se na parte superior do nariz; além disso o velho contraía constantemente a testa, o que lhe produzia uma enorme ruga que, vista de longe, dava ares de ser uma continuação do nariz.

Independentemente das circunstâncias especiais em que o doutor se achava, a figura do major inspirava um sentimento de medo. Podia ser uma excelente pessoa; mas o seu aspecto repugnava à vista e ao coração.

O dr. Antero não ousava romper o silêncio; e limitava-se a contemplar o homem. Este olhava alternativamente para o doutor e para as unhas. As mãos do velho pareciam garras; o dr. Antero já as estava sentindo cravadas em si.

— Estou falando ao dr. Antero da Silva? perguntou lentamente o major.

— Um seu criado.

— Criado de Deus, respondeu o major com um sorriso estranho.

Depois continuou:

— Doutor em medicina, não?

— Sim, senhor.

— Conheci muito seu pai; fomos companheiros no tempo da independência. Era ele mais velho do que eu dois anos. Pobre coronel! ainda hoje sinto a sua morte.

O moço respirou; a conversa levava um bom caminho; o major confessava-se amigo de seu pai, e lhe falava nele. Animou-se um pouco, e disse:

— Também eu, sr. major.

— Bom velho! continuou o major; sincero, alegre, valente...

— É verdade.

O major levantou-se um pouco, apoiando as mãos nos braços da poltrona, e disse com voz surda:

— E mais que tudo, era obediente àqueles que têm uma origem no céu!

O doutor arregalou os olhos; não compreendera bem o sentido das últimas palavras do major. Não podia supor que aludisse aos sentimentos religiosos de seu pai, que era tido no seu tempo como um profundo materialista.

Contudo, não quis contrariar o velho, e procurou ao mesmo tempo obter uma explicação.

— É exato, disse o rapaz; meu pai era profundamente religioso.

— Religioso não basta, respondeu o major brincando com os cordões do chambre; conheço muita gente religiosa que não respeita os enviados do céu. Creio que o senhor foi educado com as mesmas idéias de seu pai, não?

— Sim, senhor, balbuciou o dr. Antero aturdido com as palavras enigmáticas do major.

Este, depois de esfregar as mãos e torcer o bigode repetidas vezes, perguntou ao seu interlocutor:

— Diga-me, foi bem tratado em minha casa?

— Magnificamente.

— Pois aqui vai morar a seu gosto e o tempo que lhe parecer.

— Teria muita honra nisso, respondeu o doutor, se pudesse dispor do meu tempo; há de consentir, pois, que eu recuse por enquanto o seu oferecimento. Apressei-me a vir ontem por causa do bilhete que me mandou. Que me quer V. Excia.?

— Duas coisas: a sua companhia e o seu casamento; dou-lhe em troca uma fortuna.

O doutor olhou espantado para o velho, e este, compreendendo o espanto do rapaz, disse-lhe sorrindo:

— De que se admira?

— Eu...

— Do casamento, não é?

— Sim, confesso que... Não sei como mereço essa honra de ser convidado para noivo mediante uma fortuna.

— Compreendo o seu espanto; é próprio de quem foi educado lá fora; eu cá procedo de modo contrário ao que se pratica nesse mundo. Mas, vamos: aceita?

— Antes de tudo, sr. major, responda: por que se lembrou de mim?

— Fui amigo de seu pai; quero prestar-lhe esta homenagem póstuma, dando ao senhor em casamento a minha única filha.

— Trata-se então de sua filha?

— Sim, senhor; trata-se de Celestina.

Os olhos do velho tornaram-se mais vivos que nunca ao pronunciar o nome da filha.

O dr. Antero olhou algum tempo para o chão e respondeu:

— Bem sabe que o amor é que faz os casamentos felizes. Entregar uma moça a um rapaz a quem ela não ama é dar-lhe um suplício...

— Suplício! Ora, aí vem o senhor com a linguagem lá de fora. Minha filha ignora até o que seja amor; é um anjo na raça e na candura.

Dizendo estas últimas palavras o velho olhou para o teto e ficou assim durante algum tempo como se contemplasse alguma coisa invisível aos olhos do rapaz. Depois, abaixando outra vez os olhos, continuou:

— A sua objeção não vale nada.

— Tenho outra; é justo que aqui dentro não exista a mesma ordem de idéias que há lá fora; mas é natural que os que são lá de fora não partilhem as mesmas idéias cá de dentro. Por outros termos, eu não desejaria casar com uma moça sem amá-la.

— Aceito a objeção; estou certo que apenas a vir ficará morrendo por ela.

— É possível.

— É certo. Ora, pois, vá para o seu quarto; à hora do jantar mandá-lo-ei chamar; jantaremos os três.

O velho levantou-se e foi a um canto da sala puxar pelo cordão de uma campainha. O dr. Antero teve ocasião de ver então a estatura do major, que era alta e até certo ponto majestosa.

Acudiu o criado e o major deu-lhe ordem de conduzir o doutor para o quarto.