O Anjo Rafael/IX

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Esta criada, que se chamava Antônia, representava ter quarenta anos de idade. Não era feia nem bonita; tinha umas feições comuns e irregulares. Mas bastava olhá-la para ver nela o tipo da bondade e da dedicação.

Antônia entrou precipitadamente, e ajoelhou-se aos pés do doutor.

— Não vá! sr. doutor! não vá!

— Levante-se, Antônia, disse o rapaz.

Antônia levantou-se e repetiu as mesmas palavras.

— Que eu não vá? perguntou o doutor; mas por quê?

— Salve aquela menina!

— Pois quê! ela está em perigo?

— Não; mas é preciso salvá-la. Pensa que eu não adivinhei o seu pensamento? O senhor quer ir-se embora de uma vez.

— Não; prometo...

— Quer, e eu lhe peço que não vá... pelo menos até amanhã.

— Mas não me explicará...

— Agora, é impossível; pode vir gente; mas esta noite; olhe, à meia-noite, quando ela já estiver dormindo, eu virei aqui e lhe explicarei tudo. Mas promete que não vai?

O rapaz respondeu maquinalmente.

— Prometo.

Antônia saiu precipitadamente.

No meio daquela constante alternativa de boas e más impressões, naquele desenrolar de emoções diversas, de mistérios diferentes, era de admirar que o espírito do rapaz não ficasse abalado, tão abalado como o do major. Parece que chegou a recear de si.

Logo depois que saiu Antônia, sentou-se o doutor, e entrou a conjecturar que perigo seria aquele de que era preciso salvar a pequena. Mas não atinando com ele, resolveu ir ter com ela ou com o major, e já se preparava para isso, quando o futuro sogro lhe entrou pelo quarto.

Vinha alegre e lépido.

— Ora, guarde-o Deus, disse ele ao entrar; é a primeira vez que o visito no seu quarto.

— É verdade, respondeu o doutor. Queira sentar-se.

— Mas também o motivo que me traz aqui é importante, disse o velho assentando-se.

— Ah!

— Sabe quem morreu?

— Não.

— O diabo.

Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho continuou:

— Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior alegria da minha vida. Que lhe parece?

— Parece-me que é uma felicidade para nós todos, disse o dr. Antero; mas como soube da notícia?

— Soube por carta que recebi hoje do meu amigo Bernardo, também amigo de seu pai. Não vejo o Bernardo há doze anos; chegou agora do Norte, e apressou-se a escrever-me para dar esta agradável notícia.

O velho levantou-se, passeou pelo quarto sorrindo, murmurando algumas palavras sozinho, e parando de quando em quando para contemplar o hóspede.

— Não acha, disse ele numa das vezes que parou, não acha que esta notícia é a melhor festa que posso ter por ocasião de casar minha filha?

— Com efeito, assim é, respondeu o rapaz levantando-se; mas, visto que o inimigo da luz morreu, não falemos mais nele.

— Tem muita razão; não falemos mais nele.

O doutor dirigiu a conversa para assuntos diversos; falou de campanhas, de literatura, de plantações, de tudo quanto afastasse o major dos assuntos angélicos ou diabólicos.

Finalmente saiu o major dizendo que esperava o coronel Bernardo, seu amigo, para jantar, e que teria sumo prazer em apresentar-lhe.

Mas a hora do jantar chegou sem que chegasse o coronel, de maneira que o doutor ficou convencido de que o coronel, a carta e o diabo não passavam de criações do major. Devia estar convencido desde princípio; e se estivesse convencido estaria em erro, porque o coronel Bernardo apresentou-se em casa às ave-marias.

Era um homem cheio de corpo, robusto, vermelho, olhos vivos, falando apressadamente, um homem sem cuidados nem remorsos. Representava quarenta anos e tinha cinqüenta e dois; vestia uma sobrecasaca militar.

O major abraçou o coronel com uma satisfação ruidosa, e apresentou-o ao dr. Antero como um dos seus melhores amigos. Apresentou o doutor ao coronel declarando ao mesmo tempo que ia ser seu genro; e finalmente mandou chamar a filha, que não tardou muito a chegar à sala.

Quando o coronel pôs os olhos em Celestina arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; tinha-a visto pequena e achava-a moça feita, e moça bonita. Abraçou-a paternalmente.

Durou a conversa entre os quatro uma meia hora, tempo em que o coronel, com uma volubilidade que contrastava com a frase pausada do major, contou mil e uma circunstâncias da sua vida de província.

No fim desse tempo, o coronel declarou que queria falar em particular ao major; o doutor retirou-se para o seu quarto, deixando Celestina, que poucos minutos depois retirou-se também.

O coronel e o major fecharam-se na sala; ninguém ouvia a conversa, mas o criado viu que só à meia-noite saiu da sala o coronel, dirigindo-se para o quarto que lhe haviam preparado.

Quanto ao doutor, apenas entrou no quarto viu sobre a mesa uma carta, com sobrescrito para ele. Abriu e leu o seguinte:

Meu noivo, escrevo-lhe para dizer que não se esqueça de mim, que sonhe comigo, e que goste de mim como eu gosto do senhor. — Sua noiva, Celestina.

Nada mais.

Era uma cartinha de amores pouco parecida com as que se escrevem em casos tais, uma carta simples, ingênua, audaz, sincera.

O rapaz releu-a, beijou-a e levou-a ao coração.

Depois preparou-se para receber a visita de Antônia, que, como os leitores se devem lembrar, estava marcada para a meia-noite.

Para matar o tempo o rapaz abriu um dos livros que estavam sobre a mesa. Acertou de ser Paulo e Virgínia; o doutor nunca havia lido o celeste romance; o seu ideal e a sua educação o afastavam daquela literatura. Mas agora tinha o espírito preparado para apreciar páginas tais; sentou-se e leu rapidamente metade da obra.