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O Anjo Rafael/X

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A meia-noite ouviu bater à porta; era Antônia.

A boa mulher entrou com preparação; receava que o menor ruído a comprometesse. O rapaz fechou a porta, e fez com que Antônia se sentasse.

— Agradeço-lhe o ter ficado, disse ela sentando-se, e vou dizer-lhe que perigo ameaça a minha pobre Celestina.

— Perigo de vida? perguntou o doutor.

— Mais do que isso.

— De honra?

— Menos que isso.

— Então...

— O perigo da razão; eu receio que a pobre moça fique louca.

— Receia? disse o doutor sorrindo tristemente; está certa de que ela já o não está?

— Estou. Mas pode vir a ficar, tão louca como o pai.

— Esse...

— Esse está perdido.

— Quem sabe?

Antônia abanou a cabeça.

— Deve estar, porque há doze anos que perdeu a razão.

— Sabe o motivo?

— Não sei. Eu vim para esta casa há cinco anos; a menina tinha dez; era, como hoje, uma criaturinha viva, alegre e boa. Mas nunca tinha saído daqui; é provável que não tenha visto em sua vida mais de dez pessoas. Ignora tudo. O pai, que já então estava convencido de que era o anjo Rafael, como ainda hoje diz, repetia-o à filha constantemente, de maneira que ela acredita firmemente ser filha de um anjo. Tentei dissuadi-la disso; mas ela foi contar ao major, e este ameaçou-me de mandar-me embora se eu inculcasse más idéias à filha. Era má idéia dizer à menina que ele não era o que dizia e simplesmente um desgraçado doido.

— E a mãe dela?

— Não conheci; perguntei por ela a Celestina; e soube que ela também a não conhecera, pela razão de que não tivera mãe. Referiu-me ter sabido, por boca de seu pai, que ela viera ao mundo por obra e graça do céu. Bem vê que a menina não está louca; mas aonde irá ter com estas idéias?

O doutor estava pensativo; compreendia agora as palavras incoerentes da moça ao piano. A narração de Antônia era verossímil. Cumpria salvar a moça levando-a para fora dali. Para isso o casamento era o melhor meio.

— Tens razão, boa Antônia, disse ele, salvaremos Celestina; descansa em mim.

— Jura?

— Juro.

Antônia beijou a mão ao rapaz, derramando algumas lágrimas de contentamento. É que Celestina era para ela mais do que ama, era uma espécie de filha criada na solidão.

Saiu a criada, e o doutor deitou-se, não só porque a hora era adiantada, como porque o seu espírito pedia algum repouso ao cabo de tantas e novas emoções.

No dia seguinte falou ao major na necessidade de abreviar o casamento, e por conseqüência na de arranjar os papéis.

Concordou-se que o casamento seria na capela de casa, e o major concedeu licença para que um padre os casasse; isto pela consideração de que, se Celestina, como filha de um anjo, estava acima de um padre, não acontecia o mesmo com o doutor, que era simplesmente um homem.

Quanto aos papéis, levantou-se uma dúvida relativamente à declaração do nome da mãe da moça. O major declarou peremptoriamente que Celestina não tinha mãe.

Mas o coronel, que estava presente, interveio no debate, dizendo ao major estas palavras, que o doutor não compreendeu, mas que lhe fizeram impressão:

— Tomás! lembra-te de ontem à noite.

O major calou-se imediatamente. Quanto ao coronel, voltando-se para o dr. Antero disse-lhe:

— Tudo se há de arranjar: descanse.

A conversa ficou nisto.

Mas houve quanto bastasse para que o doutor descobrisse nas mãos do coronel Bernardo o fio daquela meada. O rapaz não hesitou em aproveitar a primeira ocasião para entender-se com o coronel a fim de o informar acerca dos mil e um pontos obscuros daquele quadro que há dias tinha diante dos olhos.

Celestina não assistira à conversa; estava na outra sala tocando piano. O doutor lá foi ter com ela, e achou-a triste. Perguntou-lhe por quê.

— Eu sei! respondeu a moça; está-me parecendo que o senhor não gosta de mim; e se me perguntar por que a gente gosta dos outros, não sei.

O moço sorriu, pegou-lhe na mão, apertou-a entre as suas, e levou-a aos lábios. Desta vez, Celestina não gritou, nem resistiu; ficou a olhar embebida para ele, pendente dos seus olhos, pode-se dizer que pendente da sua alma.