O Anjo Rafael/XI
Na noite seguinte, o dr. Antero passeava no jardim, justamente por baixo da janela de Celestina. A moça não sabia que ele se achava ali, nem o rapaz quis por modo nenhum chamar a atenção dela. Contentava-se em olhar de longe, vendo de quando em quando desenhar-se na parede a sombra daquele delicado corpo.
Havia lua e o céu estava sereno. O doutor, que até ali não conhecia nem apreciava os mistérios da noite, aprazia-se agora em conversar com o silêncio, a sombra e a solidão.
Quando se achava mais embebido com os olhos na janela, sentiu que alguém lhe batia no ombro.
Estremeceu, e voltou-se rapidamente.
Era o coronel.
— Olá, meu caro doutor, disse o coronel, faz um idílio antes do casamento?
— Estou tomando fresco, respondeu o doutor; a noite está magnífica e lá dentro está calor.
— Isto é verdade; eu também vim tomar fresco. Passeamos, se lhe não interrompo as reflexões.
— Pelo contrário, e eu até estimo...
— Ter-me encontrado?
— Justo.
— Pois então melhor.
O rumor das palavras trocadas pelos dois foi ouvido no quarto de Celestina. A moça chegou à janela e procurou ver se descobria de quem eram as vozes.
— Lá está ela, disse o coronel. Olhe!
Os dois homens aproximaram-se, e o coronel disse para Celestina:
— Somos nós, Celestina; eu e o teu noivo.
— Ah! que andam fazendo?
— Bem vês; tomando fresco.
Houve um silêncio.
— Não me diz nada, doutor? perguntou a moça.
— Contemplo-a.
— Faz bem, respondeu ela; mas como o ar pode fazer-me mal, boa noite.
— Boa noite!
Celestina entrou, e pouco depois fechou-se a janela.
Quanto aos dois homens, dirigiram-se para um banco de pau que ficava na outra extremidade do jardim.
— Diz então que estimava encontrar-me?
— É verdade, coronel; peço-lhe uma informação.
— E eu vou dar-lhe.
— Sabe o que é?
— Adivinho.
— Tanto melhor; evita-me um discurso.
— Quer saber quem é a mãe de Celestina?
— Em primeiro lugar.
— Pois que mais?
— Quero saber depois qual a razão desta loucura do major.
— Não sabe nada?
— Nada. Eu estou aqui em conseqüência de uma aventura singularíssima que lhe vou narrar.
O doutor repetiu ao coronel a história da carta e do recado que o chamara ali, sem ocultar que o convite do major chegara justamente na ocasião em que ele se achava disposto a romper com a vida.
O coronel ouviu atentamente a narração do moço; ouviu também a confissão de que a entrada naquela casa fizera do doutor um bom homem, quando não passava de um homem inútil e mau.
— Confissão por confissão, disse o doutor; venha a sua.
O coronel tomou a palavra.
— Fui amigo de seu pai e do major; seu pai morreu há muito; ficamos eu e o major como dois sobreviventes dos três irmãos Horácios, nome que nos davam os homens do nosso tempo. O major era casado, eu solteiro. Um dia, por motivos que não vêm ao caso, o major suspeitou que sua mulher lhe era infiel, e expulsou-a de casa. Eu também acreditei na infidelidade de Fernanda, e aprovei, em parte, o ato do major. Digo-lhe em parte, porque a pobre mulher no dia seguinte não tinha de comer; e foi de minha mão que recebeu alguma coisa. Protestou ela por sua inocência com as lágrimas nos olhos; eu não acreditei nas lágrimas nem nos protestos. O major ficou louco, e veio para esta casa com a filha, e nunca mais saiu. Acontecimentos imprevistos me obrigaram a ir pouco depois para o Norte, onde estive até há pouco. E não teria voltado se...
O coronel estacou.
— Que é? perguntou-lhe o doutor.
— Não vê um vulto ali?
— Aonde?
— Ali.
Com efeito encaminhava-se um vulto para os dois interlocutores; a alguns passos reconheceram ser o criado José.
— Sr. Coronel, disse o criado, ando à sua procura.
— Por quê?
— O amo quer falar-lhe.
— Bem; lá vou.
O criado retirou-se, e o coronel continuou:
— Não teria voltado se não adquirisse a certeza de que as suspeitas do major eram todas infundadas.
— Como?
— Fui encontrar, depois de tantos anos, na província em que me achava, a esposa do major servindo de criada em uma casa. Tinha tido uma vida exemplar; as informações que obtive confirmavam as asseverações dela. As suspeitas fundavam-se numa carta achada em poder dela. Ora, essa carta comprometia uma mulher, mas não era Fernanda; era outra, cujo testemunho ouvi no ato de morrer. Compreendi que era talvez o meio de chamar o major à razão vir contar-lhe isso tudo. Vim, com efeito, e expus-lhe o que sabia.
— E ele?
— Não acredita; e quando parece ir-se convencendo das minhas asseverações, volta-lhe a idéia de que ele não é casado, porque os anjos não casam; enfim, o mais que o senhor sabe.
— Então está perdido?
— Creio que sim.
— Nesse caso cumpre salvar-lhe a filha.
— Por quê?
— Porque o major educou Celestina na mais absoluta reclusão possível, e desde pequena incutiu-lhe a idéia de que anda possuído, de maneira que eu tenho medo de que a pobre moça sofra igualmente.
— Descanse; o casamento será feito quanto antes; e o senhor a levará daqui; em último caso, se não pudermos convencê-lo, sairão sem que ele o saiba.
Levantaram-se os dois, e ao chegarem perto da casa, saiu-lhes ao encontro o criado, trazendo um novo recado do major.
— Parece-me que está doente, acrescentou o criado.
— Doente?
O coronel apressou-se a ir ter com o amigo, enquanto o doutor foi para o quarto esperar notícias dele.