O Anjo Rafael/XII

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Quando o coronel entrou no quarto do major achou-o muito aflito. Passeava de um lado para outro, agitado, proferindo palavras incoerentes, com o olhar desvairado.

— Que tens, Tomás?

— Ainda bem que vieste, disse o velho; sinto-me mal; veio aqui há pouco um anjo buscar-me; disse-me que eu estava fazendo falta no céu. Creio que me vou embora desta vez.

— Deixa-te disso, respondeu o coronel; foi caçoada do anjo; descansa, tranqüiliza-te.

O coronel conseguiu fazer com que o major se deitasse. Apalpou-lhe o pulso, e sentiu-lhe febre. Entendeu que era conveniente mandar buscar um médico, e deu ordem ao criado nesse sentido.

Acalmou-se a febre do major, que conseguiu dormir um pouco; o coronel mandou preparar uma cama no mesmo quarto, e depois de ir dar parte ao doutor do que acontecera, voltou para o quarto do major.

No dia seguinte o doente levantou-se melhor; o médico, tendo chegado sobre a madrugada, não chegou a aplicar-lhe nenhum remédio, mas lá ficou para o caso de ser preciso.

Quanto a Celestina, nada soube do que havia acontecido; e acordou alegre e viva como nunca.

Mas sobre a tarde voltou a febre ao major, e desta vez de um modo violento. Dentro de pouco tempo declarou-se a proximidade da morte.

O coronel e o doutor tiveram cuidado de afastar Celestina, que não sabia o que era morrer, e podia sofrer com a vista do pai moribundo.

O major, cercado pelos dois amigos, pedia-lhes com instância que lhe fossem buscar a filha; mas eles não consentiram nisso. Então, o pobre velho instou com o doutor que não deixasse de casar com ela, e ao mesmo tempo repetiu a declaração de que lhe deixava uma fortuna. Enfim sucumbiu.

Ficou assentado entre o coronel e o doutor que a morte do major seria participada à filha depois de feito o enterro, e que este teria lugar com a maior discrição possível. Assim se fez.

A ausência do major ao almoço e ao jantar do dia seguinte foi explicada a Celestina como proveniente de uma conferência em que ele estava com pessoas de sua amizade.

De maneira que, ao passo que do outro lado da casa se achava o cadáver do pai, a filha ria e conversava à mesa como nos seus melhores dias.

Mas feito o enterro era preciso dizê-lo à filha.

— Celestina, disse-lhe o coronel, tu vais casar brevemente com o dr. Antero.

— Mas quando?

— Daqui a dias.

— Dizem-me isso há que tempo!

— Pois agora é de uma vez. Teu pai...

— Que tem?

— Teu pai não volta por enquanto.

— Não volta? disse a moça. Pois onde foi ele?

— Teu pai foi para o céu.

A moça ficou pálida ouvindo a notícia; não lhe ligava nenhuma idéia fúnebre; mas o coração adivinhava que por trás daquela notícia havia uma catástrofe.

O coronel procurou distraí-la.

Mas a moça, vertendo duas lágrimas, duas só, mas que valiam por cem, disse com profunda amargura:

— Papai foi para o céu e não se despediu de mim!

Depois recolheu-se ao quarto até o dia seguinte.

O coronel e o doutor passaram a noite juntos.

Declarou o doutor que a fortuna do major estava por trás de uma estante, na biblioteca, e que ele sabia o meio de abri-la. Assentaram os dois no meio de apressar o casamento de Celestina sem prejuízo dos atos da justiça.

Cumpria, porém, antes de tudo, arrancar a moça daquela casa; o coronel indicou a casa de uma parenta sua, para onde a levariam no dia seguinte. Assentados estes pormenores, o coronel perguntou ao doutor:

— Ora, diga-me; não crê agora que haja uma providência?

— Sempre acreditei.

— Não minta; se acreditasse não teria recorrido ao suicídio.

— Tem razão, coronel; dir-lhe-ei até: eu era um pouco de lodo, hoje sinto-me pérola.

— Compreendeu-me bem; eu não queria aludir à fortuna que veio encontrar aqui, mas a essa reforma de si mesmo, a essa renovação moral, que obteve com este ar e na contemplação daquela formosa Celestina.

— Diz bem, coronel. Quanto à fortuna, estou pronto a...

— A quê? a fortuna é de Celestina; não deve desfazer-se dela.

— Mas podem supor que o casamento...

— Deixe supor, meu amigo. Que lhe importa ao senhor que suponham? Não tem a sua consciência, que lhe não argüe coisa nenhuma?

— É verdade; mas a opinião...

— A opinião, meu caro, não é mais do que uma opinião; não é a verdade. Acerta às vezes; outras calunia, e quer a desgraça que mais vezes calunie do que acerte.

O coronel em matéria de opinião pública era um perfeito ateu; negava-lhe a autoridade e a supremacia. Umas das suas máximas era esta: "A opinião pública é um muro em branco: aceita tudo quanto lhe escrevem em cima, quer venha da mão de um garoto, quer da de um homem de bem".

Foi difícil ao doutor e ao coronel convencer a Celestina de que deveria sair daquela casa; mas enfim alcançaram levá-la para a cidade de noite. A parenta do coronel, prevenida a tempo, recebeu-a em casa.

Arranjadas as coisas de justiça, tratou-se de realizar o casamento.

Antes porém de chegar a esse ponto tão almejado pelos dois noivos, foi preciso habituar Celestina à vida nova que começava a viver e que ela não conhecia. Educada entre as paredes de uma casa isolada, longe de todo o rumor, e sob direção de um homem enfermo da razão, Celestina entrou num mundo que jamais sonhara, nem dele tinha notícia.

Tudo para ela era objeto de curiosidade e espanto. Cada dia trazia-lhe uma emoção nova.

Admirava a todos que, apesar da singular educação que tivera, soubesse tocar tão bem; ela tivera com efeito um mestre chamado pelo major, que desejava, dizia ele, mostrar que um anjo, e principalmente o anjo Rafael, sabia fazer as coisas como os homens. Quanto à leitura e escritura, foi ele mesmo quem lhe ensinou.