Saltar para o conteúdo

O Anjo Rafael/VII

Wikisource, a biblioteca livre

O jantar e a música reuniram os três convivas durante perto de quatro horas. O doutor estava no sétimo céu; já começava a enxergar a casa como sua; a vida que levava era para ele a melhor vida deste mundo.

— Um minuto mais tarde, pensava ele, e eu tinha perdido esta felicidade.

Com efeito, pela primeira vez o rapaz amava seriamente; Celestina aparecera-lhe como a personificação da ventura terrestre e das santas efusões do coração. Contemplava-a com respeito e ternura. Podia viver ali eternamente.

Entretanto a conversa sobre o casamento não se repetiu; o major esperava que o rapaz se declarasse, e o rapaz aguardava oportunidade para fazer a sua declaração ao major.

Quanto a Celestina, apesar de seu angélico estouvamento, evitava falar do assunto. Seria recomendação do pai? O doutor chegou a supô-lo; mas a idéia varreu-se-lhe do espírito ante a consideração de que era tudo tão franco naquela casa que uma recomendação desta ordem só podia ter por causa um grande acontecimento. O ósculo na mão da moça não lhe pareceu acontecimento de tanta magnitude.

Cinco dias depois da sua estada ali, o major disse-lhe ao almoço que desejava falar-lhe, e com efeito, apenas se acharam os dois a sós, o major tomou a palavra, e expressou-se nestes termos:

— Meu caro doutor, já deve ter percebido que eu não sou um homem vulgar; nem sou mesmo um homem. Gosto do senhor porque tem respeitado a minha origem celeste; se eu fugi ao mundo é porque ninguém me queria respeitar.

Conquanto já tivesse ouvido do major algumas palavras dúbias nesse sentido, o dr. Antero ficou assombrado com o pequeno discurso, e não achou resposta que lhe desse. Arregalou muito os olhos e abriu a boca; todo ele era um ponto de admiração e interrogação ao mesmo tempo.

— Eu sou, continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era fui tido em conta de impostor. Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero morrer.

O major dizia tudo com uma convicção e serenidade que, dado o caso de falar a um homem menos mundano, vê-lo-ia logo ali a seus pés. Mas o dr. Antero não viu na origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica. Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo.

— Fez bem, disse o moço, fez bem em fugir ao mundo. Que há aí no mundo que valha um sacrifício verdadeiramente grande? A humanidade já se não regenera; se Jesus aparecesse hoje é duvidoso que lhe deixassem fazer o discurso da montanha; matavam-no logo no primeiro dia.

Brilharam os olhos do major ouvindo as palavras do doutor; quando ele acabou, o velho saltou-lhe ao pescoço.

— Disse pérolas, exclamou o velho. Isso é que é ver as coisas. Bem vejo, sai a seu pai; jamais ouvi daquele amigo palavra que não fosse de veneração para mim. Tem o mesmo sangue nas veias.

O dr. Antero correspondeu como pôde à efusão do anjo Rafael, por cujos olhos saiam chispas de fogo.

— Ora, pois, continuou o velho sentando-se outra vez, é isso mesmo o que eu desejava encontrar; um rapaz de bom caráter, que pudesse fazer de minha filha aquilo que ela merece, e não duvidasse da minha natureza nem da minha missão. Diga-me, gosta de minha filha?

— Muito! respondeu o rapaz; é um anjo...

— Pudera! atalhou o major. Que queria então que ela fosse? Há de casar com ela, não?

— Sem dúvida.

— Bom, disse o major olhando para o doutor com um olhar cheio de tão paternal ternura, que o moço sentiu-se comovido.

Nesse momento, a criada de Celestina atravessou a sala, e passando por trás da cadeira do major abanou a cabeça com ar de compaixão; o doutor apanhou o gesto que a criada fizera só para si.

— O casamento há de ser breve, continuou o major quando os dois se acharam sós, e, como lhe disse, dou-lhe uma riqueza. Quero que acredite; vou mostrar-lhe.

O dr. Antero recusou ir ver a riqueza, mas pede a verdade que se diga que a recusa era simples formalidade. A atmosfera angélica da casa já o tinha melhorado em parte, mas havia nele ainda uma parte do homem, e do homem que passara metade da vida em dissipações de espírito e sentimento.

Como o velho insistisse, o doutor declarou-se pronto a acompanhá-lo. Passaram dali a um gabinete onde o major tinha a biblioteca; o major fechou a porta com a chave; depois disse ao doutor que tocasse uma mola que desaparecia no lombo de um livro fingido, no meio de uma estante.

O doutor obedeceu.

Toda aquela fileira de livros era simulada; ao toque do dedo do doutor abriu-se uma portinha que dava para um vão escuro onde se achavam cinco ou seis caixinhas de ferro.

— Nessas caixas, disse o major, tenho eu cem contos de réis: são seus.

Os olhos do dr. Antero faiscaram; via diante de si uma fortuna, e só dependia dele possuí-la.

O velho mandou que fechasse outra vez o esconderijo, processo que lhe ensinou também.

— Fique sabendo, acrescentou o major, que é o primeiro a quem mostro isto. Mas é natural; já o considero como filho.

Com efeito, foram para a sala da sesta, aonde Celestina foi ter pouco depois; a vista da moça produziu no rapaz a boa impressão de fazer-lhe esquecer as caixas de ferro e mais os cem contos.

Ali mesmo se marcou o dia do casamento, que devia ser um mês depois.

O doutor estava disposto a tudo de tão boa vontade, que a reclusão forçada terminou logo; o major permitiu-lhe sair; mas o doutor declarou que não sairia dali senão depois de casado.

— Depois será mais difícil, disse o velho major.

— Pois bem, não sairei.

A intenção do rapaz era sair depois de casado, e para isso inventaria algum meio; por enquanto, não queria comprometer a sua felicidade.

Celestina estava contentíssima com o casamento; era uma diversão na monotonia de sua vida.

Separaram-se depois do jantar, e já então o doutor não encontrou o criado para o conduzir ao quarto; tinha a liberdade de ir aonde quisesse. O doutor foi direito ao quarto.

A sua situação tomava um novo aspecto; não se tratava de um crime nem de uma emboscada; tratava-se de um monomaníaco. Ora, por felicidade do moço, esse monomaníaco exigia dele exatamente aquilo que ele estava disposto a fazer; tudo bem considerado, entrava-lhe pela porta uma felicidade inesperada, que nem era lícito sonhar quando se está à beira do túmulo.

No meio de belos sonhos o rapaz adormeceu.