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O Anjo Rafael/VI

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A noite foi má para o dr. Antero; acabara de assistir a cenas tão estranhas, ouvira palavras tão misteriosas, que o pobre moço perguntou a si mesmo se não era vítima de um sonho.

Infelizmente não era.

Aonde iria dar aquilo tudo? Qual o resultado da cena da tarde? O rapaz temia, mas já não ousava pensar na fuga; a idéia da moça começava a ser um vínculo.

Dormiu tarde e mal; foram-lhe agitados os sonhos.

No dia seguinte levantou-se cedo, e recebeu do criado as folhas do dia. Enquanto não vinha a hora do almoço, quis ler as notícias do mundo, do qual parecia estar separado por um abismo.

Ora, eis aqui o que encontrou no Jornal do Commercio:

Suicídio. — Anteontem, à noite, o dr. Antero da Silva, depois de dizer ao seu criado que saísse e só voltasse de madrugada, encerrou-se no quarto da casa que ocupava à rua da Misericórdia, e escreveu a carta que os leitores encontrarão adiante.

Como se vê dessa carta, o dr. Antero da Silva declarava a sua intenção de matar-se; mas a singularidade do caso é que, voltando o criado para casa de madrugada, encontrou a carta, mas não encontrou o amo.

O criado deu imediatamente parte à polícia, que empregou todas as diligências a ver se obtinha notícia do jovem doutor.

Com efeito, depois de bem combinadas providências, encontrou-se na praia de Santa Luzia um cadáver que se reconheceu ser o do infeliz moço. Parece que, apesar da declaração de que empregaria a pistola, o desgraçado procurou outro meio menos violento de morte.

Supõe-se que uma paixão amorosa o levou a cometer este ato; outros querem que fosse por fugir aos credores. A carta entretanto reza de outros motivos. Ei-la.

Aqui seguia a carta que vimos no primeiro capítulo.

A leitura da notícia produziu no dr. Antero uma impressão singular; estaria ele morto deveras? Teria já saído do mundo da realidade para o mundo dos eternos sonhos? Era tão extravagante tudo o que lhe acontecia desde a antevéspera, que o pobre rapaz sentiu por um instante vacilar-lhe a razão.

Mas pouco a pouco voltou à realidade das coisas; interrogou a si e a tudo o que o rodeava; releu atentamente a notícia; a identidade reconhecida pela polícia, que ao princípio o impressionara, fê-lo sorrir depois; e não menos o fez sorrir um dos motivos que se dava ao suicídio, o motivo da paixão amorosa.

Quando o criado voltou, pediu-lhe o doutor notícia circunstanciada do major e de sua filha. A moça estava boa; quanto ao major, disse o criado que lhe ouvira de noite alguns soluços, e que de manhã se levantara abatido.

— Admira-me isto, acrescentou o criado, porque não sei que tivesse motivo para chorar, e além disso o amo é um velho alegre.

O doutor não respondeu; sem saber por que, atribuía-se a causa daqueles soluços do velho; foi a ocasião do seu primeiro remorso.

O criado disse-lhe que o almoço o esperava; o doutor dirigiu-se para a sala de jantar onde achou o major realmente um pouco abatido. Foi direito a ele.

O velho não se mostrou ressentido; falou-lhe com a mesma bondade da véspera. Pouco depois chegou Celestina, bela, descuidosa, inocente como da primeira vez; beijou a testa do pai, apertou a mão ao doutor e sentou-se no seu lugar. O almoço correu sem incidente; a conversa nada teve de notável. O major propôs que na tarde desse dia Celestina executasse ao piano alguma composição bonita, para que o doutor pudesse apreciar os seus talentos.

Entretanto a moça quis mostrar ao rapaz as suas flores, e o pai deu-lhe licença para isso; a um olhar do velho a criada de Celestina acompanhou os dois futuros noivos.

As flores de Celestina estavam todas em meia dúzia de vasos, postos sobre uma janela do seu gabinete de leitura e trabalho. Chamava ela aquilo o seu jardim. Bem pequeno era ele, e pouco tempo exigia para o exame; ainda assim, o doutor tratou de prolongá-lo o mais que pôde.

— Que me diz a estas violetas? perguntou a moça.

— São lindíssimas! respondeu o doutor.

Celestina arranjou as folhas com sua mãozinha delicada; o doutor adiantou a sua mão para tocar nas folhas também; os dedos de ambos se encontraram; a moça estremeceu, e baixou os olhos; um leve rubor coloriu-lhe as faces.

O rapaz receou que daquele involuntário encontro pudesse nascer algum motivo de remorso para ele, e tratou de retirar-se. A moça despediu-se, dizendo:

— Até logo, sim?

— Até logo.

O doutor saiu do gabinete de Celestina, e já entrava a pensar como daria com o caminho para o seu quarto, quando encontrou à porta o criado, que se preparou para acompanhá-lo.

— Tu pareces a minha sombra, disse-lhe o doutor sorrindo.

— Sou apenas um criado do senhor.

Entrando no quarto ia o rapaz cheio de vivas impressões; a pouco e pouco sentia-se transformado pela moça; até os receios se lhe dissipavam; parecia-lhe que ao pé dela não devia recear coisa nenhuma.

Os jornais estavam ainda em cima da mesa; perguntou ao criado se seu amo costumava a lê-los. O criado respondeu que não, que ninguém os lia em casa, e tinham sido assinados só por causa dele.

— Só por minha causa?

— Só.