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O Badejo/II

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CENA I

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AMBROSINA (Entrando.)
— Valha-me a Virgem Maria!
Que grande aborrecimento!
Vim descansar um momento!
De tanta sensaboria
Horrorizada fugi!
Que só de negócios trate
O tal Senhor César Santos!
Cacete conheço uns quantos,
Porém daquele quilate
Confesso que nunca os vi!
E o Benjamin? Que fofice!
Que tipo insignificante!
Não abre a boca o pedante,
Que não diga uma tolice,
Ou que não fale de si,
Das visitas que recebe,
Ou do extrato que o perfuma,
Ou dos charutos que fuma,
Ou dos licores que bebe!
Quantas asneiras ouvi!

CENA II

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AMBROSINA, LUCAS

LUCAS — Vamos! Então? Que me dizes
De um e de outro namorado?

AMBROSINA — Cada qual mais enjoado!

LUCAS — Pobres moços!... infelizes! ...
Pois nenhum deles te agrada?

AMBROSINA — Não.

LUCAS — És muito rigorosa!

AMBROSINA — Seria bem desditosa
Com quaisquer deles casada.

LUCAS — Também vais logo aos extremos!
Pelas impressões primeiras
Incompletas e ligeiras,
Jamais levar nos deixemos...
Gente nova, estranha gente
Não há, que nos apareça,
E aos nossos olhos pareça
Aquilo que é realmente;
Pois nesta coisa medonha,
Que se chama sociedade,
Ninguém sai da intimidade
Sem que uma máscara ponha.
Não julguemos à ligeira;
Toda a gente se mascara:
Uns cobrem parte da cara
E os outros a cara inteira.
Quem se revela maluco
Tem muitas vezes juízo,
E nos parece ter siso
Um velho crânio sem suco.
Finge de franco o sovina,
Faz-se virtude a mazela...
Julgas Penélope aquela?
Repara que é Messalina!

AMBROSINA — Naquele maldito almoço
Muito a custo me contive...
Se o mundo enganado vive,
Não vivo eu!

LUCAS — Ouve...

AMBROSINA — Não ouço!
Defendê-los tu! Que idéia!
És cacete por teu turno!
Toma hoje mesmo o noturno
E volta pra a Paulicéia!

LUCAS — Não vive o mundo enganado,
Não toma a nuvem por Juno:
Diz que o gatuno é gatuno,
Diz que é malvado o malvado,
E, sem que o disfarce o iluda,
Quando o seu chapéu lhes tira,
Cumprimenta uma mentira,
Uma máscara saúda;
Mas não se trata do mundo
E sim do juízo que fazes
Sobre dois pobres rapazes
Que não conheces a fundo.
Durante esse almoço triste,
Que te não deixou saudades,
Não lhes viste as qualidades,
Mais que os achaques não viste...
Quem sabe se os namorados
Produzirão outro efeito
Quando, com arte e com jeito,
Os vejas desmascarados?

AMBROSINA — Com ou sem máscara, dize,
Aquele Manel de Soisa
Me falará noutra coisa
Que não seja o câmbio e a crise?

LUCAS — Vejam que grande desgraça!
Mas esse assunto varia,
Porque, enfim, lá vem um dia
Sobe o câmbio e a crise passa!

AMBROSINA — E o outro?... aquele janota,
De trinta milhões herdeiro,
Vidrinho de água de cheiro,
Fátuo, ridículo, idiota?
De uma penhora estou livre,
Se com tal tipo me caso!

LUCAS — Menina, não faças caso:
Tudo aquilo é savoir-vivre.

AMBROSINA — Muito agradecida, Lucas:
Falo-te de coisas sérias,
E com insulsas pilhérias
A quanto eu digo retrucas!
Vou no meu quarto fechar-me!
E que ninguém me apareça!
Estou com dor de cabeça:
Escusam de ir lá chamar-me!
(Sai arrebatadamente.)

CENA III

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LUCAS (Só.)

LUCAS (Só.) — Tem razão, coitadinha! Eu, no seu caso,
Também arranjaria uma enxaqueca...
Qualquer dos dois galãs é o mais ridículo.
César Santos é todo positivo:
Outro assunto não tem para a palestra
Senão coisas da praça. As raparigas
Antipatizam necessariamente
Com tais assuntos, e falar-lhes nisso
É o mesmo que se a gente as obrigasse
A ler nas folhas tão somente a parte
Comercial. E o Benjamin? Que parvo!
Um fenômeno quase! O próprio Édson,
A matutar, duvido que inventasse
Tão engenhosa máquina de asneiras!
Entretanto — quem sabe? — os dois rapazes
São talvez excelentes criaturas...
É o que preciso averiguar quanto antes;
Mas para isso necessário fora
Que eu conseguisse conversar com ambos,
Cada um de per si...
(Vendo entrar César Santos.)
Oh, que pechincha!...
O César Santos!... Vou puxar por ele...
Também eu ponho agora a minha máscara.

CENA IV

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LUCAS, CÉSAR SANTOS

CÉSAR — Onde é que se meteu dona Ambrosina?
Vim procurá-la.

LUCAS — Foi para o seu quarto,
Queixando-se de dores de cabeça.

CÉSAR — Está naturalmente aborrecida
Por ter ouvido tantas baboseiras
Do Benjamin Ferraz. Que grande tipo!
Lá o deixei a falar do seu cavalo
Que, a dar-lhe ouvidos, é o melhor do mundo!

LUCAS — Não; ela não se queixa das toleimas
Do Benjamin Ferraz; pelo contrário...
Acha-lhe certa originalidade.
Queixa-se do senhor.

CÉSAR — De mim?

LUCAS — Por certo,
Pois o senhor não vê que a moça é fútil,
E só gosta de ouvir futilidades?
Falta de educação... Oh! eu conheço-a
Desde pequena, e sei dos seus defeitos.
O senhor só conversa em coisas sérias...

CÉSAR — Não há nada mais sério que o comércio.

LUCAS — Pois sim! Vão lá dizer-lho! Não crê nisso!

CÉSAR — Falta-lhe então critério?

LUCAS — Do comércio
Ela só toma a sério os armarinhos
Da Rua do Ouvidor.

CÉSAR — No entanto, julgo
Que o velho Ramos, ferragista honrado,
Foi no comércio que ajuntou dinheiro,
E do comércio vive, e vive a filha...

LUCAS — Ela quer lá saber dessas bobagens!

CÉSAR — Bobagens?

LUCAS — Esse é o termo que ela emprega.
Falem-lhe em bailes, falem-lhe em teatros!
Bem se lhe dá que o câmbio esteja frouxo,
Ou que encontre na praça tomadores,
Ou que pela manhã subindo a sete,
Baixe de tarde a seis e sete oitavos!

CÉSAR — Tenho pena, confesso: gosto dela,
E dói-me vê-la assim tão leviana.

LUCAS — Gosta dela?

CÉSAR — Decerto; e pretendia
Pedi-la em casamento ao pai.

LUCAS — Deveras?
Que me diz? Nesse caso fiz asneira!
Se de tais intenções eu suspeitasse,
Não me exprimira assim a seu respeito!
Pobre Ambrosina! E ela, com certeza,
Gosta igualmente do senhor! ... Que diabo!...
Hei de sempre mostrar-me um criançola!
Tem graça agora se, por minha causa,
Perde Ambrosina um casamento destes!
Senhor, não faça caso do que eu disse!
Ela não gosta do comércio? Embora!
Peça a menina, case-se com ela!
O comércio virá depois... Que bruto
E que indiscreto fui!

CÉSAR — Sossegue, Lucas:
Se ela não me aceitar para marido,
Eu não me atiro ao mar por causa disso.

LUCAS — Ah! bom! já vejo que não gosta dela...

CÉSAR — Gosto... gosto... é bonita... é bem bonita...
Veste-se muito bem... toca piano...

LUCAS — E bandolim também, que é moda agora.

CÉSAR — Se é fútil, não faz mal; bem sei que as moças
São, pouco mais ou menos, todas fúteis!
Sim... depois de casada... em vindo os filhos.
Há de neles pensar, no seu futuro,
E todo o dia, quando eu volte à casa,
Perguntará decerto pelo câmbio.

LUCAS — Sabe que mais? Aqui ninguém nos ouve.
Confesse que se casa co’Ambrosina
Como se casaria... ande, confesse!...
Com qualquer outra moça tão bonita,
Que fosse filha de outro velho Ramos.
(César sorri.)
Este sorriso não me engana: é certo!
(Contendo a indignação.)
Faz você muito bem! (Consinta, amigo,
Que o trate por você...) Todas as moças
São parecidas umas com as outras
Quando se vestem bem, tocam piano
E bandolim. É próprio de pascácios
Preferir esta àquela, desde que haja
Beleza... e dote. Nós, os do comércio,
Mesmo tratando de formar família,
Não nos devemos esquecer que somos
Antes de tudo negociantes...

CÉSAR — Toca!
Tu és da minha escola! Tu consentes
Que eu te trate por tu?

LUCAS — Pois não!! consinto!

CÉSAR — O casamento é uma sociedade;
Toda a mulher é sócia do marido:
Usa e assina o seu nome, e tem metade
De quanto lhe pertence.
Isso é conforme.

LUCAS — De direito é conforme, mas de fato
Tudo o que é dele é dela, e vice-versa.
Logo, é justo — não é? — que a nossa noiva
Nos traga um capital igual ao nosso.

CÉSAR — Tu tens vinte e dois anos?

LUCAS — E três meses.

CÉSAR — Falas que nem um velho! Não conheço
Quem tão bem raciocine nessa idade!
Se assim pensassem todos, não veríamos
Tantas desgraças que provêm — pudera! —
Da pobreza dos cônjuges!

LUCAS — Em França
Rapariga não há, bonita embora,
Que sem ter dote casamento arranje.
Aquilo é que é país!

CÉSAR — E no comércio
A francesa é caixeira do marido.

LUCAS — Tinha eu então razão quando dizia
Que a ti tanto te faz uma como outra...

CÉSAR — Tinhas toda a razão. A ti, to digo,
Pois vejo que não és nenhum poeta,
Nem nenhum visionário impertinente,
Que viva numa nuvem cor de rosa.
És de Dona Ambrosina irmão colaço:
Peço-te, pois, que essa impressão destruas
Que nela produzi; dize-lhe Lucas,
Que tenho aspirações, que tenho sonhos,
Eu sou muito capaz de fazer versos.
Numa página até do livro-caixa!

LUCAS — Vai tranqüilo.
(À parte.) Caiu como um patinho,
E por um triz não lhe esmurrei as ventas!

CENA V

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LUCAS, CÉSAR SANTOS, JOÃO RAMOS, BENJAMIN FERRAZ, DONA ANGÉLICA

RAMOS — Então? Que é isso? Desertaram ambos?

ANGÉLICA — Ambrosina onde está, que não a vejo?

LUCAS — Para o seu quarto foi co’ uma enxaqueca.

ANGÉLICA — Qual! minha filha nunca teve disso!

LUCAS — Nesse caso, fez hoje a sua estréia.
ANGÉLICA — Valha-me o bom Jesus! vou ter com ela!

LUCAS — Um vidro tenho aqui de sais ingleses...

(Angélica sai sem lhe dar ouvidos.)

RAMOS — Deixe. Não será nada. A senhorita
Bebeu Bucelas e bebeu Colares:
Não estando acostumada a tais misturas,
Sentiu-se incomodada.

CÉSAR — Não; não creia:
Muito pouco bebeu durante o almoço.
(Senta-se a examinar um álbum de fotografias.)

BENJAMIN — Diz muito bem. Nos cálices apenas
Os lábios virginais umedecia.

RAMOS — Gosta de ver retratos, senhor César?

CÉSAR — É divertido.

(Ramos senta-se ao lado de César, e vai lhe mostrando os retratos.)
RAMOS — Aqui me tem, no tempo
Em que eu tinha, talvez, a sua idade.

(Lucas aproxima-se de Benjamin, que está sentado no sofá.)

LUCAS (À parte.)
Vou penetrar nesta alma de ocioso.
(Alto, sentando-se ao lado dele.)
Quer saber o motivo da enxaqueca?
Qual mistura de vinhos; qual histórias!

RAMOS — Esta é minha mulher. Foi bem bonita.

CÉSAR — Ainda se parece.

BENJAMIN — Eu desconfio
Que indisposta ficou dona Ambrosina
Por tanto ouvir falar ao César Santos
Em transações da praça.

LUCAS — Pois engana-se.

RAMOS — Este é o meu sogro. Já lá está, coitado!

LUCAS — Foi o senhor a causa da enxaqueca.

BENJAMIN — Eu? Ora essa! Não compreendo, Explique-se!

RAMOS — A Ambrosina, quando era mais mocinha.

LUCAS — Ela, aqui para nós, é muito tola;
Não gosta de o ouvir falar; diz ela
Que o meu amigo só de si se ocupa.

BENJAMIN — Não costumo falar da vida alheia.

RAMOS — O falecido meu compadre Lopes,
Padrinho da pequena.

CÉSAR — Eu conheci-o.
Teve uma loja de calçado.

RAMOS — É isso.
Na Rua da Quitanda. Era bom homem.

LUCAS — Ela não aprecia o seu estilo...
É tão mal preparada! Só lhe agradam
Palavras corriqueiras... É bonita,
Elegante, não nego, mas — que pena! —
Falta-lhe o savoir-vivre. Uma burguesa!

RAMOS — Este é o Freitas Simões, que foi meu sócio.
Hoje é o senhor visconde d’Alcochete!

BENJAMIN — Pois tenho pena que ela me deteste:
Tencionava pedi-la em casamento.

LUCAS — Pedi-la em casamento? Oh, desastrado!
Meu Deus, fi-la bonita! Meu amigo,
Não faça caso do que eu disse! Pílulas!
Por minha causa perde a rapariga
Um casamento destes! Não! não! casem-se!
Virá depois o savoir-vivre! Diabo!...
Hei de ser sempre uma criança estúpida!...

RAMOS — O Gouveia da Rua do Mercado.

BENJAMIN — Não; eu não desanimo por tão pouco,
E lhe agradeço até, meu caro jovem,
Ter-me instruído sobre os gostos dela...

RAMOS — Conhece? É o Nazaré da Rua Sete,
Mas no tempo em que usava a barba toda.

BENJAMIN — Eu tratarei de transformar-me, creia;
Mas se inda assim nas suas boas graças
Não cair, paciência... Outra donzela
Talvez encontre menos exigente.
O que me agrada nela é a formosura
Com que a dotou a natureza pródiga;
Outra coisa não é, porque sou rico,
E ainda espero em Deus herdar bastante,

LUCAS — Em Deus? Sim, tem razão; é Deus quem
mata...

RAMOS — Este é o doutor Galvão, que é nosso médico.

BENJAMIN — De bom grado eu seria o seu marido,
Por ser senhora muito apresentável,
Que faria figura no grand monde
E enfeitaria bem um camarote
Do Lírico; entretanto, um sacrifício
Não quero que ela faça, está bem visto.

CÉSAR — Este conheço eu muito: é o João Moreira.

BENJAMIN — Modéstia à parte, a um homem desta estofa,
Que é moço, e não é feio, e tem saúde,
E é milionário ou quase milionário,
E viajou por toda a culta Europa,
E anda trajado no rigor da moda,
E faz figura em cima de um cavalo,
E fuma disto...

(Mostra o charuto que fuma, e faz menção de tirar outro da algibeira.)
Quer provar?

LUCAS — Não fumo.

BENJAMIN — A um homem desta estofa nunca faltam
Mulheres que o pretendam, que o disputem,
Que se agatanhem para conquistá-lo!
(Aproxima-se de Ramos e César, que têm acabado de per­correr o álbum.)

LUCAS (À parte.)
— O outro é tolo e malandro; este é só tolo...
É muito fácil vê-lo pelas costas.

CENA VI

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LUCAS, JOÃO RAMOS, CÉSAR SANTOS, BENJAMIN FERRAZ, DONA ANGÉLICA

RAMOS (A Angélica que entra.)
Então? Que é?...

ANGÉLICA — Não é nada. Aquilo passa.

RAMOS — Não quero que os amigos se retirem
Sem ver a nossa chácara. Proponho
Um pequeno passeio.

CÉSAR — É bem lembrado.

BENJAMIN — É conveniente um pouco de exercício
Depois do lauto almoço que tivemos,
E ao nosso anfitrião faz tanta honra.

RAMOS — Bondade sua, meu amigo. Angélica,
Vai buscar os chapéus destes senhores.

BENJAMIN (Indo buscar o seu chapéu.)
— Então? Não se incomode, Excelentíssima! CÉSAR (Idem.)
— Oh! pelo amor de Deus, minha senhora!

RAMOS — Vamos! Não vens, Angélica?

ANGÉLICA — Não. Fico
Fazendo companhia à nossa filha.

LUCAS — E eu faço companhia a dona Angélica.

RAMOS — Vamos então nós três. Eu vou mostrar-lhes
Uma nascente de água ali no morro...

(Saem César, Benjamin e Ramos, que continua a falar indistintamente, até que a voz se perca ao longe.)

CENA VI

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LUCAS, DONA ANGÉLICA, depois AMBROSINA

ANGÉLICA — Qual enxaqueca! qual nada!
Ambrosina, meu rapaz...

LUCAS — Santos não quer ser chamada,
Nem ser madame Ferraz.

ANGÉLICA — Sabias?

LUCAS — E uma enxaqueca
Astutamente arranjou,
Para livrar-se da seca
Que o papai lhe reservou.
O Ferraz alambicado
Debalde se encareceu,
E o César — pobre coitado! —
Chegou, viu, mas não venceu.

ANGÉLICA — Vês que menina exigente?

LUCAS — No seu direito ela está!
É bonita, inteligente,
E tem um dote... oh, lá lá!
Deixe! O que não se faz hoje
Fazer-se pode amanhã...
Sossegue, que não lhe foge
O seu príncipe Charmant.

ANGÉLICA — A galope os desenganos
À casa podem chegar...
Ela tem vinte e dois anos:
Não deve mais esperar.

LUCAS — Momento melhor aguarde;
Não é preciso correr.
Espere, que nunca é tarde
Para uma asneira fazer.
Gosto a senhora teria
Se Ambrosina de qualquer
Daqueles tipos um dia
— Franqueza! — fosse mulher?

ANGÉLICA — Tu não dizes o que sentes:
Dois tipos eles não são.

LUCAS — Deixe-se de panos quentes!
É cada qual mais tipão!

ANGÉLICA (Depois de certa hesitação.)
— Ah! se o meu genro escolhido
Fosse por mim, só por mim,
De minha filha o marido
Serias tu.

LUCAS — Eu?

ANGÉLICA — Tu, sim!

(Ambrosina aparece á porta e escuta o diálogo.)

Que outro genro achar podemos
Melhor do que tu?

LUCAS — Perdão.
Sobre outra coisa falemos.

ANGÉLICA — Não te agrada o assunto?

LUCAS — Não.
E mais na carta não deite...

ANGÉLICA — Ambrosina...

LUCAS — Tá tá tá!
Ela é minha irmã de leite...

ANGÉLICA — Impedimento não há.

LUCAS — Há, e um grande impedimento:
O impedimento moral:
Semelhante casamento
Seria tão desigual...

ANGÉLICA — Desigual por que motivo?

LUCAS — Não é preciso dizer.

ANGÉLICA — És quase um filho adotivo:
Deves ser franco!

LUCAS — Vou ser.
De uma... alugada era filho
Quando nesta casa entrei,
E seria um maltrapilho
Sem a proteção que achei.

ANGÉLICA — És tolo.

LUCAS — Se seu marido
Não me desse proteção,
Eu me teria perdido...

ANGÉLICA — Quem sabe? Talvez que não.

LUCAS — Não! Essa idéia me humilha!
Eu não pago tanto amor
Pretendendo a mão da filha
Do meu santo protetor!

ANGÉLICA — Adeus, minhas encomendas!
Não me entendeste, rapaz!
Eu não digo que pretendas,
Pois pretendido serás.

LUCAS — Se eu me casasse com ela,
Que diriam por aí?
O mundo é tão tagarela!

ANGÉLICA — Ora! que diriam?

LUCAS — Xi!
“O Lucas, aquele intruso
Noiva e dote abiscoitou!
De confiança um abuso
Friamente praticou!
Parecia não ter vícios,
Mas vede o pago que deu
A todos os benefícios
Que do velho recebeu!”
Já vê que esse casamento
De modo algum me convém,
E que todo o fundamento
Os meus escrúpulos têm.

ANGÉLICA — São tolos esses assomos
De dignidade.

LUCAS — Talvez.

ANGÉLICA — Nós aqui em casa não somos
Nenhuns fidalgos, bem vês.
Meu marido foi caixeiro
E hoje apenas é patrão,
E meu pai foi sapateiro,
Depois de ser remendão.
Somos, sim, família honesta
E temos alguns vinténs;
Mas, se a fidalguia é esta,
Filho, também tu a tens.
A razão por que não queres
Ser meu genro essa não é;
Mas — anda lá! — tu preferes
Mentir...

LUCAS — Mentir! eu?

ANGÉLICA — Olé!
Apesar de não ser fina,
Claramente vendo estou
Que não gostas de Ambrosina,
Já cá não está quem falou.
(Vai retirar-se, mas Lucas toma-lhe a passagem.)

LUCAS — Não gosto de Ambrosina? Engana-se!
[Ambrosina
É a flor que me perfuma, o Sol que me
[ilumina!
Supunha o meu afeto apenas fraternal,
Mas hoje, quando entrei, alegre e jovial,
E uma senhora achei na tímida criança
Que do passado meu era a melhor lembrança,
Deslumbrei-me, e senti que uma
[transformação.
Meu Deus! se me operava aqui no coração!
Não pode calcular como os dois namorados
Tão senhores de si, risonhos, confiados,
Me encheram de ciúme, e como revivi
Quando por serem tão ridículos, os vi
Perder terreno... Oh, não! não diga, por
[piedade.
Que eu não gosto daquela esplêndida beldade!
Eu amo-a loucamente, eu amo-a com fervor!
Amor não pode haver maior que o meu amor!
Mas peço-lhe por Deus que guarde este
[segredo
Que murmuro a tremer e balbucio a medo.
Não me devo casar com sua filha, pois
Que um abismo fatal existe entre nós dois!
Se o meu segredo for por mais alguém sabido,
Juro-lhe que disparo um revólver no ouvido!

AMBROSINA (Mostrando-se.)
— Vamos! Dispara! O teu revólver onde está?
Eu quero ver morrer um homem! Vamos lá!

LUCAS — Ambrosina!

AMBROSINA — Acho bom, porém, que, antes do tiro
Com que te vai matar, demos ambos um giro
Até a pretoria e até a igreja.

ANGÉLICA (A Lucas.)
— Aí tens:
És noivo; aceita os meus sinceros parabéns.

AMBROSINA — Mau! Feio! Escutei tudo ali daquela porta.
Se não dissesses “Amo”, eu cairia morta!
O que te sucedeu me sucedeu a mim:
Se tão cedo não vens, talvez que o Benjamin,
Ou o César — um dos dois — fosse o meu
[noivo agora.
Mas tu chegaste a tempo. Ao ver-te, sem
[demora
Me pareceu que Deus te conduzia aqui
Para arrancar-me ao outro e oferecer-me a ti.

ANGÉLICA (A Lucas.)
— Então? Que dizes tu?

LUCAS — Digo... Não digo nada!
Foi de tal modo pelo acaso combinada
Esta cena de amor que ninguém... sim,
[ninguém
Me poderá dizer: — “Tu não andaste bem”.
Estes castelos no ar é bom que os não
[façamos,
Todavia, sem ter ouvido o velho Ramos.
Não podemos saber como ele acolherá
Esta conspiração...

ANGÉLICA — Eu vou falar-lhe já.

LUCAS — Já? Isso não!

ANGÉLICA — Por quê?

LUCAS — Convém primeiramente
Desiludi-lo de um e de outro pretendente.
Eu disso me encarrego. E só depois que os tais
Saírem... — sairão, e cá não voltam mais,
Prometo-lhes!... —

ANGÉLICA — Bem bom! bem bom!

AMBROSINA — Isso me alegra.

LUCAS — Só depois eu farei o meu pedido em regra.

AMBROSINA — E o tiro? Pum!

LUCAS — Dá-lo-ei, se à tua decisão
O velho opõe um veto...

AMBROSINA — Há de lhe dar sanção.

(Ouvem-se vozes.)

ANGÉLICA — Eles de volta aí vêm.

AMBROSINA (Beijando a mãe.)
— Mamãe, muito obrigada.

ANGÉLICA — Se soubessem os dois que a praça foi
[tomada...

CENA VIII

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LUCAS, DONA ANGÉLICA, AMBROSINA, JOÃO RAMOS, CÉSAR SANTOS, BENJAMIN FERRAZ

RAMOS — Que estopada lhes dei! Confessem ambos!

CÉSAR — Não diga tal! Foi um passeio esplêndido!

BENJAMIN — Tem uma bela chácara. Algum dia
Hei de mostrar-lhe a minha: um paraíso!

CÉSAR — Já ficou boa da enxaqueca?

AMBROSINA — O Lucas
Um remédio me deu de efeito pronto.

LUCAS (À parte.)
— Só me faltava ser antipirina...

CÉSAR (Com esforço.)
— Numa linda cabeça como a sua,
Onde brilham dois olhos tão formosos,
A enxaqueca devia ser vedada.

AMBROSINA (Rindo-se.)
— Que bela frase!

CÉSAR (À parte.)
— Decididamente
Falta-me o jeito para as coisas fúteis!

BENJAMIN — A enxaqueca, senhora, é mal terrível,
Porque desvia do trabalho o cérebro,
E o trabalho é a alavanca do progresso,
É o comércio, a lavoura, a indústria, é tudo!

AMBROSINA (Rindo-se.)
— Falou bonito!

BENJAMIN (À parte.)
— Decididamente
Não tenho queda para as coisas sérias!

RAMOS — Mas que remédio milagroso é esse?
Durante o almoço estavas macambúzia
Nem provaste do célebre badejo!
E agora tão risonha achar-te venho!
Verias tu, durante a nossa ausência,
Um passarinho verde?

AMBROSINA — Não vi nada;
Mas o fato é que estou muito contente.

RAMOS — Bom. Nesse caso, vais tocar um pouco
De bandolim. Desejo que os amigos
Antes de nos deixar te batam palmas.

AMBROSINA — Com mil vontades. Senhor César Santos?
Senhor Forjaz?...

BENJAMIN — Ferraz, Excelentíssima.

AMBROSINA — Peço toda a indulgência.

CÉSAR —Oh!

BENJAMIN — Ora essa!

ANGÉLICA — Na sala de jantar corre mais fresco
E o bandolim lá está.

RAMOS — Para lá vamos!
Entrem, senhores meus!

CÉSAR (Oferecendo o braço a Ambrosina.)
— Minha senhora?

BENJAMIN (Idem.)
— Minha senhora?

AMBROSINA (Entre os dois.)
— Dois? Pois bem! não quero
Que nenhum se desgoste por tão pouco,
E aceito o braço que ambos me oferecem.
(Sai pelo braço de ambos.)

ANGÉLICA — Malcriados! Esquecem-se da velha!

RAMOS (Oferecendo-lhe o braço.)
— Aqui tens, minha amiga.

ANGÉLICA — É pão com rosca.

RAMOS (A Lucas, passando com Angélica pelo braço.)
— Não vens?

LUCAS — Por ora não. Logo que possa
Safar-se, venha ter aqui comigo.
Preciso dar-lhe duas palavrinhas.

RAMOS — Quantas quiseres, Lucas. Até logo.
(Sai com Angélica.)

LUCAS (Só.) — Que dirás, minha mãe, quando souberes?


[(Cai o pano.)]