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O Barão de Lavos/Capítulo II

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II

Quando entrou em casa, na salêta habitual dos serões, o barão proferiu, no tom frio e breve de quem se desobriga d’um dever banal: — Bôa noite, vivi; — enquanto deixava caír machinalmente um beijo nos crespos riçados sobre a testa pequenina da baroneza, que lia com interesse Madame Bovary. Depois, logo a seguir, afundou-se pesadamente na maciêsa d’um fauteuil.

— Bôa noite... Então que tal? — retorquiu a baroneza, erguendo indolente os olhos do livro e sorrindo para o marido com uma indifferença amavel.

— Uma semsaboria... Tão cedo não volto lá. Bem fizéste tu em preferir áquella palhaçada tão vista o conchego da tua casinha e a companhia leal dos teus livros.

— Ah! e então que livro, este!.... — exclamou a baroneza n’um profundo accento admirativo, retomando com delicia a leitura interrompida.

— Gostas?

— Nunca li nada que me tocasse tanto! — E innovelou-se toda na cabeceira da chaise-longue, uma das pernas dobrada, colhida graciosamente sôb o tronco, n’um gesto friorento de avesita; as mãos sobre o regaço, preguiçosas, deixando os dedos jogar com os anneis distrahidamente; e as pupillas traçando n’um vaivem rapido o parallelismo das linhas que iam devorando no livro, poisado sobre uma mesinha baixa de xarão.

— Sabes tu quem eu vi?... — tornou o barão, querendo armar conversa. — Os Paradellas.

Porém a baroneza, cortando logo:

— Sim, sim, mas deixa-me ler.

O gaz estava apagado. Apenas allumiava a salêta um alto candieiro de bomba, de bronze esmaltado, estylo byzantino, com o globo fôsco vestido por um pára-luz tenuissimo de papel japão. Estava sobre a mesinha, junto ao livro, vertendo em torno um cóne muito restricto de luz. O maior do aposento, — aquarellas, chinezices, faianças ornando as paredes; photografias, revistas illustradas, albuns, quinquilharias galantes abarbando os consólos, as estantes polidas a negro, o contador embrechado; moveis esparsos n’uma desordem estudada, o piano, flôres, porcelanas caras, — mergulhava tudo discretamente na penumbra, tinha os contornos adormecidos n’um claro-escuro de pacificação e castidade. Só áquelle cantinho môrno e preferido, entre o biombo e a parede, na incidencia proxima do candieiro, realçavam, n’uma claridade repoisada e honesta de interior de Gerard Dov ou de Van Eyck, um trecho da alcatifa, curvo como um crescente, o espelhamento opalino d’um velho prato suspenso da parede, um ou outro avoejo exotico de laca e oiro no verniz da mesinha axaroada, e a viva mancha adoravel da cabecita pequena e redonda da baroneza.

Era um d’estes typos de mulher delicados, miuditos, frageis, picantes á força de subtilisação e de nervos, que appetece á gente ao mesmo tempo contrariar e amar servilmente, acariciar e destruir. Uma figurinha de Saxe, luminosa e frivola. Os olhos, grandes, entre o cinzento e o verde, um tudo-nada metallicos, tinham uma translucidez enxuta e saudavel, que raro, n’um tremulo conchegar das palpebras, humedecia um spasmo breve de volupia; o nariz, imperceptivel, fino, erguia-se na base em arrebite, n’um leve geito provocante, entre malicioso e altivo; na testa, desanuviada, lisa, pequenina, não havia noticia da passagem d’um pensamento grave, d’um minuto reflexivo, d’uma justa noção do Dever; e pela curva da face, d’uma alvura crassa de leite, subia de cada lado, do mento ás fontes, a sinuosidade azul d’uma veia tenuissima.

Um conjuncto fascinante de mocidade e graça, de petulancia e mimo.

O barão, fatigado, arreliado, quente, o coração palpitando forte, e o cerebro e as mãos a arder, saboreava um allivio e uma doçura immensa na tranquillidade muda do recinto. Mal apaziguado ainda das tumultuarias emoções da noite, o remanso dormente da sua casinha embalava-lhe a carne estimulada n’uma acalmação voluptuosa e emolliente de banho a 33 graus. Mas não era bastante; se os sentidos se lhe normalisavam, a alma continuava estrebuxando n’uma exaltação dolorida. Aquelle silencio exasperava-o. Queria um derivativo psychico , o balsamo d’um commercio espiritual, sincero, intimo, todo affabilidade e abandono.

Por isso aventurou para a baroneza, n’uma supplica impertinente:

— Então, não me dizes nada?... Deixa agora o livro.

Ao que ella, contrariada, sem desfitar da leitura:

— Ora, muito obrigada. Não andáste por lá bem sem mim até agora?... Pois deixa-me lêr.

E a bocca vincava-se-lhe aos cantos, muito acre, e as veiasitas da face córavam-se-lhe de rôxo, ligeiramente ingrossadas.

Portanto, o silencio pesou novamente, esmagador, absoluto, na quietação implacavel da salêta. Ao seu cantinho predilecto, innovelada sobre a chaise-longue, a baroneza não despegava de lêr. Guardava-a do ar da porta proxima que, do lado da cabeceira, dava para o quarto de toilette, um alto biombo de preço, com os seus cinco pannos, de setim preto, sóbriamente bordados de aves pernaltas, gramineas capillares e florinhas tenues, em matizes d’um realce maravilhoso, em desenhos da mais solta e delicada phantasia. Do lado da cauda, a chaise-longue entestava com uma parede toda lisa, no sentido do comprimento da casa, tendo um grande espelho doirado ao centro; distribuidos em volta, na mais harmoniosa das desordens, quadros, suspensões, bugigangas, velhas porcelanas; encostadas, duas estantes com livros; e, em angulo contra o extremo opposto, um piano de cauda sobre um estrado. Era uma parede interior.

Seguia-se-lhe outra mais pequena, adornada tambem de quadros e com uma porta fronteira á do quarto de toilette, dando para o gabinete de trabalho do barão. Esta porta era flanqueada por duas grandes columnas torcidas de pau preto, farfalhudas de parras, de cachos, de anjos em regueifas, com dois vasos de Perusia no alto, desgastados, sem brilho, granulosos, d’um estylo purissimo e d’uma lendaria antiguidade; e ás duas porções lateraes da parede dois magnificos consolos encostavam, abarbados de coisinhas preciosas, — pagodes de marfim filigranado, retratos queridos em molduras de pellucia, miniaturas de esmalte, bronzes, conchas, laccas, cinzeiros de malachite.

Depois, parella á parede lisa interior, havia a exterior correspondente, com duas amplas saccadas dando sobre o jardim. No intervallo d’estas, resaltava um contador india embrechado, de pernas obliquas, lineares, singelissimas, todo atropellado na severa amarellidão da sua téca por correrias de monstrosinhos de ébano, ventrudos, rabiosos, a cauda em ponta de dardo, a lingua a sahir n’um jacto da guela a escancaras, e o olho de marfim, branco e redondo. Para cima, vestia a parede um espelho esguio, de moldura de ébano, biselado.

Aos dois cantos, para lá das saccadas, a folhagem glabra e tenra de dois philodendrons naturaes espadanava, em leques luxuriantes, de grossos vasos de faiança do Rato, postos sobre velhos tamboretes persas, de cedro e madreperola. Nos reposteiros, feitos de bourrette espessa côr de madeira e oiro, sinuosava tambem um desenho persa complicado. Sobre os vãos das saccadas, a temperar a luz externa, desciam muito sobrepostas, orlando a bourrette interior, cortinas finissimas de tulle créme com applicações a branco. Junto da porta do toilette, um pouco á frente, um cavallête vieux chéne sustinha, meio afôfada nas prégas d’uma colcha secular da India, uma tela, assignada Lupi, com o retrato em busto da baroneza. E por baixo do grande espelho doirado espreguiçava-se um largo sophá de pellucia de linho azul escuro, esquadrado em volta por uma tira de sêda côr de oiro velho, e tendo a um lado, erguida nas mãos sobre a espalda cylindrica, uma figura minuscula de mandarim, escarolada e risonha, posta graciosamente a espreitar.

Meia duzia de moveis mais, arrastando ao acaso na alcatifa, cujo tom sanguineo dava um destaque vivo de petulancia á côr tranquilla do recinto. No papel cinzento-adamascado das paredes alizavam-se lampejos de aço, esbatidamente. Do tecto branco de estuque um lustre pendia, de bronze. Saboreava-se a quintessencia do conforto e do agasalho n’aquelle ninho mimado de elegancia. E todavia o barão estava mal, sentia frio. Era tão flagrante, tão profunda a discordancia entre a brutalidade animal dos seus instinctos e a dôce quietação, o familiar abandono, a feminina graça de tudo quanto o rodeiava, que, agora, dissipada a primeira grata impressão da entrada, aquella pacificação hostilisava-o, dando-lhe toda branca, em cheio, nas turbulencias sinistras da sua alma doente, e fazia-o soffrer.

Ergueu-se de chofre e começou a passeiar. Então a baroneza, breve: — Tens ahi os jornaes p’ra lêr.

O barão, machinalmente, veio sentar-se de novo, junto da luz, no mesmo fateuil, e procurou lêr a Gazeta de Portugal, em que collaborava.

E assim, na mudez discreta da noite, na voluptuosa penumbra da salêta, aquelles dois esposos, na apparencia tão proximos, ambos novos, ambos amantados na caricia do mesmo ambiente perfumado e môrno, obstinavam-se longe, muito longe um do outro: elle galopando o destrambelhamento do seu vicio; ella deliciando a imaginação e envenenando os sentidos na tragedia dissolvente de Madame Bovary.



Era logico. Derivava naturalmente da indole, da educação, das condições de ligação dos dois esta situação mortificante.

O barão garfava por enxertia duplamente bastarda em duas das mais antigas e illustres familias de Portugal. Assinava — D. Sebastião Pires de Castro e Noronha. O dom trazia-lhe origem dos Castros, carugento appellido castelhano, évo de oito seculos, que passára ao nosso paiz, ainda méro feudo leonense, por occasião do casamento de D. Fernando, filho do rei de Portugal e Galliza, D. Garcia, com D. Maria Alvares, senhora da villa de Castro Xeris, e descendente de Laim Calvo, o afamado jurisconsulto. E’ de saber que este glorioso talo genealogico dos Castros, refolhou, em Hespanha, nos condes de Lemos; e, entre nós, nos condes de Basto, de Mesquitella, de Monsanto e de Rezende (primeiros almirantes-móres do reino), e nos senhores do Cadaval. Deu ainda tão preclara cêpa da nossa horta heraldica esse lendario grêlo da isenção e da honra, que foi o grande D. João de Castro. Mas a casa de Monsanto não era vergontea legitima: apurou-se isto da larga contenda batida por D. Alvaro Pires de Castro, senhor das Alcaçovas, contra seu tio, tambem D. Alvaro Pires de Castro, senhor de Arrayollos. Contestava aquelle a este o uso das armas direitas dos Castros, por ser uma degenerescencia bastarda no bracejamento fidalgo da familia. E o caso foi que, desde então, tanto os condes de Arrayollos, como os Castros de Fornellos e os de Melgaço, ambos seus descendentes, deixaram de usar o escudo primeiro da casa, — treze arruellas de azul em campo de oiro, — passando a ter por divisa apenas seis arruellas, e em campo de prata.

Escarolavam n’esse tempo do segredo tépido das alcôvas para a besbelhotice official dos symbolos brazonados as differenciações no estalão moral das grandes familias solarengas. Era o que podia haver de mais meticulosamente futil e de mais superfluamente ingenuo. Mas era claro, ao menos. Sabia a gente com quem tratava. Não se tinha inventado ainda a carta de conselho para galardoar alcoviteiros e nobilitar ladrões.

Em tempos de D. João III, ahi por 1541, preparava-se em Lisbôa, com destino á India, uma esquadrilha de cinco navios que devia comandar Martim Affonso de Sousa, o heroe de quem a tradição refere que recebêra de Gonçalo de Cordova a espada, de que nunca mais abriu mão. Fôra elle nomeiado successor de Estevão da Gama no governo dos nossos dominios asiaticos, e preparavase-lhe um luzidissimo cortejo de homens d’algo. Queria-se honrar dignamente o benemerito guerreiro, cujo nome já então doiravam sobejamente altos feitos commettidos no Brazil, no mar das Indias, na ilha de Repelim, em Ceylão, na costa do Malabar. Um dos Castros de Monsanto, então na côrte, homem de terras e de dinheiro, foi insinuado ao rei como devendo embarcar. O sombrio e fanatico monarcha não o via de feição. Surprehendêra-o uma vez, á missa, rindo. Pouco depois, como tivessem chegado a Portugal os quatro primeiros padres da Companhia de Jesus, o desastrado Castro permittiu-se pôr em duvida, na frente do rei e da nobreza, a austeridade e a pureza de intenções dos padres jesuitas. O soberano agastou-se. Para mais, tres d’esses jesuitas, — e um d’elles era S. Francisco Xavier, — embarcavam já com róta ao Oriente na esquadrilha de Martim Affonso, para missionar. — Que fôsse o Castro! Era quasi certo que ao cabo d’essa longa viagem na salutar companhia de tão santos varões, elle estaria convertido. — E o rei achou bom, indeclinavel que o zombeteiro aulico saísse de Lisbôa; não inquinásse elle da heresia a catholica subserviencia da côrte de sua magestade fidelissima. Grande obra de piedade, fazel-o embarcar. — Que fôsse!

Mas o pobre fidalgo era molle, doente, lymphatico, poltrão. Tinha um pavor invencivel ao mar. Andava, demais, perdidamente enamorado por D. Branca de Noronha, servilhêta, e, — dizia-se, — filha bastarda da casa dos Noronhas, — outra nobre familia antiquissima, prendendo nos reinos de Leão e de Castella, muito fundo, as raízes da sua estirpe. Correspondia-lhe por egual a formosa menina, — temperamento manso e sonhador, todo feito de passividade e modestia, reclamando a calentura constante d’uma forte protecção, affectuosa e discreta, que a involvesse n’uma calma tépida de estufa, para viver. Uma noite, ausentes os Noronhas em sarau do Paço, propôz-lhe o amante fugir. Acceitou. E, dias depois, a fronte de ordinario tôrva de D. João III caliginava-se, ao saber que o cortezão em desfavor, desprezando o mandado de embarque, se fôra alcandorar, com uma nobre virgem raptada, na penhascosa e abrupta solidão do seu castello de Monsanto.

Pensou em fazel-o render-se, mandando-o cercar. Difficil. Tinha o Castro leaes, valentes e numerosos servidores. Monsanto, — espessa corôa mural d’um alto mamelão lascado a pino, — era de natureza inexpugnavel. E depois, o rei na occasião preoccupava-se demasiado com a Reforma, contra a qual prorompêra, de collaboração com Carlos v, n’uma guerra implacavel, e com a deflagração sinistra dos autos de fé. Depressa esqueceu o rebelde, em cujos braços morria, após dois breves annos d’um fervoroso idyllio, a sua dedicada e dôce amante.

D’esta romanesca mancebia porejou um filho, que vinha a ser o sexto avô do nosso barão de Lavos.

O atavismo fez explodir n’este com rabida energia todos os vicios constitucionaes que bacillavam no sangue da sua raça, exaggerados n’uma confluencia de seis gerações, d’envolta com instinctos doidos de pederasta, inoculados e progressivamente aggravados na sociedade portugueza pelo modalismo ethnologico da sua formação. A inversão sexual do amor, o culto dos ephebos, a preferencia dada sobre a mulher aos bellos adolescentes, veio-nos com a colonisação grega e romana. Nos gregos a pederastia era uma paixão commum e de nenhuma forma desprezivel. Cantavam-n’a e celebravam-n’a publicamente. Essa obscena invenção de Ganymedes, principe troyano d’uma belleza maravilhosa, arrebatado e transportado ao Olympo pela aguia de Jupiter para substituir Hébé, a hetaïra divina, no serviço particular dos deuses, é um symbolo; dá o documento frisante de quanto era honrado o ephebismo na antiga Grecia. Este vicio era mesmo trivial em todo o Oriente. Na mythologia indiana ha um episodio analogo ao rapto d’aquelle favorito de Jupiter. Refere o Vaschkala, um dos upanischads do Rig Veda, que Indra em pessôa empolgou, com um gesto fulminante de ave de presa, o joven Medhatithi, transportando-o depois ás mais apartadas e mais sagradas culminancias atravéz dos mundos e dos céus.

Os romanos imitaram, e excedêram por conseguinte, os povos mais velhos do Oriente no gosto da pederastia. Ao tempo de Augusto, o amor de homem para homem era a mais banal das paixões. Muitas vezes, na risonha peninsula da Etruria e do Lacio, o véu da amizade encobria infamissimas torpêzas; pensava-se que a reciprocidade no gozo sensual era o melhor laço para o coração de dois amigos. Julgava-se a amizade dependente d’um appetite lascivo, conjugada com a ligação carnal. Os grandes modelos de dedicação fraterna que nos offerece a historia, — Castor e Pollux, Pirithoüs e Theseo, Pylades e Orestes, Alexandre e Ephestion, Harmodius e Aristogiton, os dois filhos de Adiatorix, os nossos dois Ximenes, Antinoüs e Adriano, Patroclo e Achilles, — não passam os mais d’elles de specimens aberrativos de mutuas complacencias libidinosas. De Roma é claro que a paixão dentro do mesmo sexo alastrou para as colonias. A contaminação era fatal. Soffreu-lhe os effeitos a peninsula hispanica, mórmente no sul e no oeste, aonde mais demorada e mais poderosa foi a influencia ethologica dos romanos. Depois vieram os barbaros do Norte inocular sangue novo no derrancamento crapuloso do imperio. A transfusão foi crudelissima. Operaram, destruindo. Mas por traz da arrogancia bestial da sua arremettida vinha apontando a generosa uncção d’um mundo novo. Aquella tréva apparente mascarava uma alvorada. Elles traziam da penumbra druídica das suas florestas os elementos sociaes que faltavam ao occidente gasto e decrepito: a liberdade pessoal, a sinceridade da crença, a disciplina, o valor, a ordem, a consagração da virtude, o respeito da familia, o amor pela mulher. A regeneração foi prodigiosa. Dos escombros da assolação ergueu-se, — pura, sadía, idealista, ingenua, — a sociedade medieval.

Comtudo, n’esta reparação salutar dos povos latinos o germen morbido resistira, latente. Mais tarde, a civilisação arabe pôl-o a claro; depois, o abuso do monachismo e das expedições nauticas longinquas favoreceram-lhe o desinvolvimento, agora peiorado do apeganho ruim da chronicidade.

Comprehende-se como centenas de homens validos, desviados da labuta habitual da vida e mantidos em contacto reciproco permanente; com a imaginação e a carne fallando alto, excitadamente, na estreita e forçada permanencia a bordo ou na eterna ociosidade da clausura; systematicamente afastados do commercio de qualquer ordem com a mulher, haviam de por força procurar illudir, em ascoentas aproximações d’uns com os outros, as inilludiveis exigencias dos seus instinctos. D’ahi a desvirtuação dos sexos; a obliteração das funcções genesicas; o amor saciado grotescamente, incompletamente; a luxuria olhada como um fim, como uma regalia sensorial da carne, em vêz de ser cultivada na compenetração do seu mistér sagrado, como um simples meio de perpetuar a especie.

Na ultima integração da sua physionomia social os conventos não foram mais do que isto, — uma criminosa burla ao dynamismo prolifico da natureza, uma cravagem de centeio mystica, um veto espiritual á maternidade. Eram casas toleradas de prostituição, defendidas pelo lemma hypocrita do voto. O mundo antigo era mais franco. Na Grecia os effeminados varriam galhardamente com as suas caudas de purpura as lageas das praças publicas, sôb a luz magnanima do sol; no mundo latino os tonsurados, do primeiro cardeal ao derradeiro famulo, erguiam furtivamente o burel ou a sêda na sombra cumplice dos claustros, e entregavam-se baixando os olhos contrictos ante as imagens do Deus vingador.

Com a diuturnidade da causa, o mal prosperou e enraizou-se, alargando sobre a geração de hoje um imperio feroz e dissolvente.




No barão de Lavos confluiam poderosamente as qualidades todas do pederasta. Quando tinha 10 annos, entrou para o collegio de Campolide. Seu pae, velho cortezão cheio de tédio e de dividas, viuvo, refarto de alçapremar traições n’um sorriso, de farricôcar o odio em graciosas mesuras, de espremer a bolsa em proveito de parentes e caloteiros, resolvêra sahir de Lisbôa, descançar, fugir aos prazêres, á intriga, ao mundo que conhecia de sobra. Foi-se para Lavos, onde possuia excellentes propriedades em salinas, campos e florestas, a refazer a fortuna e a endireitar a espinha. O filho, entregue á douta protecção dos jesuitas, no seu ponto de vista, ficava bem. Por occasião das férias, acolhia-o com alvoroço, retinha-o com amor, dava-se a estudar-lhe os progressos na educação. O rapaz era intelligente, amigo do estudo, — mesmo talentoso, — arriscavam-lhe confidencialmente, em breves periodos lardeados de reticencias, os astutos preceptores. — E dava-lhes cuidado, — acrescentavam receosos, — regurgitava de seiva, precisava ser dominado de principio, aliás corria o risco de se perder.

Mais d’uma vêz, por noite alta, os prefeitos haviam surprehendido o menino fóra da cama, abancado á mesa, a face collada a uma luz asphyxiante de petroleo, todo n’uma febre de improviso, a fronte camarinhada, o olhar ardente, a mão galopando no papel, a fazer versos profanos. — Tinham-n’o castigado, — estivesse descançado.

A verdade é que D. Sebastião saíra uma ornisação privilegiada de artista. A uma retina infallivel no apanhar o lado bello das coisas juntava uma larga capacidade imaginativa, uma acuidade dilacerante do sentimento plastico e um poder vehemente de expressão. Com o penujar da adolescencia veio-lhe o impulso de verter nos companheiros as demasias da sua alma generosa e ávida. Amou alguns dos collegiaes que lhe orçavam pela edade. Foi excessivo. D’estas scenasinhas adoravelmente ridiculas, que são triviaes nos collegios, — trocas de soliloquios inflammados, cartas, exorações, amuos, rancores, ciumes, pugilatos, ensaios precipitados de copula no palmo quadrado das latrinas, — de tudo teve o futuro barão n’um grau exaggerado e quente, a que a sua compleição debil e requintada vestia o maximo colorido. Quando o seu desejo se concentrava, inconfessado, timido, na pessoa d’um collega a quem por qualquer circumstancia elle não podia ou não resolvia declarar-se, então o desgraçado soffria insomnias horrorosas, durante horas e horas de costas na cama, a narina afflante, a palpebra leve, os olhos arregalados para o tecto na escuridão cava da noite, os dentes rangendo rapido e o corpo todo vibrante no arripío d’uma crise nervosa fatal, obsessiva.

Quasi sempre uma evacuação seminal, provocada por elle proprio, ou, as mais das vêzes involuntaria, e determinada sem prazer, por uma irritação quasi dolorosa, punha termo, no quebramento cortado de sobresaltos da madrugada, a este estado cru de excitação. Depois, pelo dia adiante, era o mau humor, a mudêz, as olheiras lustradas de rôxo, um pouco de dyspnea, o refugio no isolamento, a repugnancia ao estudo, o adormecer nas aulas.

D’uma vêz, um collegial, que elle amava immenso, disse-lhe porfim que sim, que estava prompto a corresponder-lhe, mas por forma que ninguem soubesse, e então — que fôsse de noite ter com elle á cella. Combinado. O Sebastião deitou-se e esperou, todo a tremer, sem poder conciliar o somno, que o seu relogio marcasse as duas da manhã. Então levantou-se, abriu a porta da cella, aventurou um olhar de lynce a todo o comprimento do longo corredor deserto, e sahiu, cosido á parede, surrateiro, os pés tartameleando pêrros no tijolo... Quando, passada uma hora, regressava ao quarto, pilhou-o a lanterna do prefeito de ronda. Foi castigado. Nem por isso deixou de continuar.

Aos 16 annos, sahia do collegio para a vida exterior com as propensões viciosas peioradas. Alto, esgalgado, sêcco, — ardia-lhe na scintillação febril dos grandes olhos negros o furor perpetuo e insaciavel do Desconhecido; e a cada um d’estes incendios ferozes da pupilla correspondia instinctivamente um abrir das mãos descarnadas e um trémulo agitar dos dedos, nervoso, inflammado, adunco, uma como ancia de apalpar a Vida. Conformação feminina: — cabeça pequena, hombros estreitos e ladeiros, bacia ampla, rins muito elasticos, os pés metendo para dentro. O rosto, d’um alvo rosado lanugento e macio, tinha uma expressão menineira e ingenua, um ar tocante de fragilidade e doçura. Mas não inspirava sympathia; trahia-lhe a inconsistencia do caracter essa linha apagada, miuda das feições. O olhar era de ordinario baixo; não cruzava com firmeza; e sempre que sentia um outro olhar a interrogal-o fito, as palpebras desciam logo, a garantir-lhe a inviolabilidade do abysmo.

Quiz estudar mais. Continuou em Lisbôa, cursando a Polytechnica. No intervallo das aulas, ia pelas bibliothecas ou amarfanhava-se em casa, lendo tudo quanto podia apanhar. E á medida como se lhe desdobrava o espirito, roboravam-se-lhe as predilecções plasticas, a qualidade sensorial dominante. No modalismo da Natureza interessava-o principalmente o sensivel, o tangivel, a face pagã, material das coisas. Porisso, a despeito do seu fundo etiologico de pederasta, cultivava então com frequencia as mulheres. Mesmo entre uma mulher bonita e um ephebo attrahente, não hesitáva: preferia geralmente a mulher. Procurava sempre e acima de tudo a linha, a forma, a belleza emocional apparente, quer fôsse n’um seio virgem, quer n’um musculo bem fibrinado, quer n’um crystal perfeito, quer n’uma florinha delicada, n’um trecho vivo de paysagem, n’um encastelamento de nuvens fugidio.

Quando contou 20 annos, rogou o pae que lhe permittisse fazer uma viagem ao extrangeiro. Concedido. E o rapaz partiu, trepido de enthusiasmo. De Madrid seguiu a Paris; depois visitou a Italia. N’esse afortunado passeio pelas civilisações irmãs da nossa, tudo quanto respeitava á Arte constituiu a melhor porção do seu estudo. O maior do tempo gastou-o no interior dos velhos monumentos, nos museus, nas collecções particulares, nos bazares exoticos, nas lojas de bric-à-brac. E ahi, na religiosa paz d’esses salões consagrados, que horas de sublimado goso, de contemplação ineffavel! Estatuas e quadros que figurassem a nu bellos corpos de adolescentes, estonteavam-n’o. Trouxe-o doente da mais cega paixão, dias seguidos, o celebre Antinoüs descoberto em Roma no seculo XVI, no bairro Esquilinio, que occupa hoje no belvedere do Vaticano um gabinete especial, e é das melhores obras da antiguidade que o tempo nos poupou. Maior que o natural, deslumbrante na lisa alvura do marmore, elle inclina a cabeça levemente e dealba no sorriso uma expressão graciosa e fina, que faz um contraste adoravel com a vigorosa envergadura do arcaboiço. Mixto inexprimivel de morbidezza e força, de energia e doçura, esta figura preciosissima realizava para Sebastião em extasi uma tão perfeita harmonia de conjuncto, que elle ficou-a tomando sempre por modelo das bôas proporções da figura humana.

Mas muitas outras estatuas do bello favorito de Adriano impressionaram fortemente o futuro barão de Lavos. Mesmo no Vaticano, mais duas ainda: uma figurando-o de deus egypcio, o olhar hirto e parado, a curva do lotus no sobrolho, o cabello todo em anneis collados ás fontes, parallelos; outra singelamente corôada de gramas e nas mãos as insignias agrarias de Vertumnio, fresca e robusta. Uma outra em Roma, no Capitolio, trazida da antiga villa de Adriano em Tivoli, representando o formoso escravo, que as águas do Nilo sepultaram, com o rosto repassado de melancolia, — como na antevisão do seu destino, — os olhos grandes e magistralmente desenhados, a cabeça tambem inclinada ligeiramente, e em torno da bocca e da face uma perfeição de contorno ideal esvoaçando... No Louvre, uma com os attributos de Hercules, da mais altiva elegancia; outra com os olhos de pedras finas e sobre as espaduas um manto de bronze, largamente pannejado; e uma terceira, seductora, com o largo chapeu, redondo e baixo, de Mercurio, meia tunica deixando descoberto um braço soberbamente modelado, a perna cingida por botinas de coiro, a côxa inteiramente nua, opulenta e suave.

Várias figurações de Ganimedes tocaram-no igualmente, a saber: a encantadora estátua em mármore de Carrara, do Vaticano, achada em Óstia em 1800; o famoso Rapto de Ganimedes, de Rubens, no museu real de Madrid; o fresco de Carrache, em Roma; em Florença, a tela de Gabbiani. O mesmo com o célebre Aquiles, em mármore, do museu do Louvre, soberbo estudo do nu pertencente à época chamada do estilo sublime, e que passa por cópia de um trabalho de Alcamenes, o discípulo predileto de Fídias. O mesmo com os Narcisos, os Batilos, os Hermes, os Adónis, os Evangelistas, as Madalenas, as Fornarinas, — com os motivos mais humanamente plásticos de todas as religiões e de todos os tempos.

De tudo isto comprou quanta reprodução lhe apareceu. Voltou com o gosto educado, apurado, sábio, e com a sede dos largos prazeres ignorados a chamejar-lhe cada vez mais mordente nos grandes olhos negros. A estupidez pacata do nosso meio exacerbava-o, estimulava-lhe a fantasia. O que a contingência externa lhe não dava, D. Sebastião arrancava-o encarniçadamente a um trabalho desfibrinante de evocação interior. Criava, sonhava, concebia caprichos inverosímeis, que ora conseguia realizar a muito custo, ora se limitava a saborear, mercê de um longo dispêndio imaginativo, na solidão da sua alcova.

Em 1860 morreu-lhe o pai. Ele era filho único e único representante daquele ramo da família. Tomou conta da casa, — uns quatro contos de renda, se tanto, — e continuou desperdiçando loucamente a juventude em aventuras galantes, em pândegas, em devassidões imprevistas. Para mais, um desvio fisiológico, — uma diátese úrica que lhe espessava e abastardava o sangue, — dava-lhe uma facilidade simpática de adaptação a todas as vis aberrações da carne.

Um dia começou com ele a saciedade, o tédio. Acalmou, viu claro. Conheceu que, a continuar assim, ia entranhar-se, dissolver-se irremissivelmente na treva das ínfimas degradações, como um caminhante que deixa a estrada rútila de sol, lisa e direita, para entrar num emaranhamento negro de floresta. Teve medo. Lembrou-lhe então casar... Sorriu à ideia. Seria uma emoção nova; seria principalmente, com a sua imposição de deveres sacrossantos, um freio, uma norma séria e digna de viver. O casamento pois fascinou-o, como variante e como corretivo.

Ora, entre as famílias das suas relações, frequentava particularmente o barão a casa do Sr. Inácio Miguéis, antigo negociante de panos, vivendo anchamente do passivo de uma falência fraudulenta. Ele, a mulher e duas filhas casadoiras. Destas a mais velha, Elvira, não deixava de agradar ao barão. Irrequieta, nervosa, branca, pequenina, ressumava de todo o seu ser miudinho e frágil uma complexidade picante de mistério. Era o Desconhecido; era um problema vivo, — e delicioso problema! — a decifrar. Fez-lhe o barão a corte.

A rapariga no fundo não passava de uma burguesita imensamente leviana e sofrivelmente ignorante, extremosa mas fútil, não tendo da moral a compreensão mais estrita, e cultivando assiduamente por igual na janela do seu quarto os namoros e os amores-perfeitos. O natural era excelente, liso na intenção, apontando ao bem, simples, claro. Formada numa educação menos absurda que a lisboeta, podia ter dado uma mulher exemplar. Nem sensual, nem desequilibrada. Alma grande e inteligência estreita. O que queria era que a amassem, era ter que amar; porém na acanhada circuição do seu espírito este desejo não violava os limites postos ao amor legítimo pela religião e a lei. Assim, ela não namorava por vício, mas por cálculo, na ânsia de realizar perante Deus e os homens a sua inclinação natural. E no namorado não via nunca o macho, não apetecia o homem; delineava, futurava o marido. Casar era o seu sonho doirado; casar com um fidalgo, — a sua primeira aspiração de burguesa.

— Se este barão me quisesse!... Isso sim! Lembrava-se lá!... — Bem lhe tinha ela já feito a diligência. — Mas qual!

Por isso também, quando percebeu que o barão a requestava, ia estalando de alegria, coitadita. Foi naquela casa uma alegria doida... Breve, casaram, em S. Cristóvão, perto do palacete do barão.

Julgaram-se felizes nos primeiros tempos; mas, a pouco trecho, o encanto da novidade tinha quebrado, a etiologia moral do barão seguia fatal na sua escala deprimente. Veio-lhe a fome irresistível dos hábitos antigos. Recaiu neles, agora com todas as precauções tortuosas que o novo estado exigia. A mulher, à força de a ver sempre, ia-a esquecendo. O problema esperava a solução, — que lhe importava a ele! — Assim, o afastamento, a indiferença, o desgosto iam cavando entre os dois, cada vez mais largo e mais fundo... Não tinham filhos: — uma orquite dupla anulara no barão, quando solteiro, a faculdade de procriar. E agora, ao cabo apenas de três anos de vida em comum, ele, sentado ali junto da sua pequenina e apetitosa esposa, tinha frio, torcia-se, olhava confrangidamente, num misto de humilhação e de respeito, aquela cabecita luminosa e redonda, enquanto lhe dançava na imaginação o efebo que deixara há pouco no Passeio.

Deu uma hora no gabinete ao lado.

Ele então, erguendo-se:

— Vou-me deitar.

E a baronesa, toda de alma na leitura:

— Vai indo, que eu já vou.

O barão saiu pela porta do toilette, num bocejo arrastado, enquanto ela, depois de uma leve expiração de alívio, continuava interessadamente a ler.