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O Barão de Lavos/Capítulo III

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No dia seguinte, ao almoço, um constrangimento acre molestava os dois esposos, instintivamente. O que quer que era de vagamente arreliador pairava. Uma turbação rebarbativa de desgosto, de mal-estar, de disputa suspensa ensombrava aquela atmosfera conjugal, na aparência tão calma. Cada um dos dois tinha o pensamento posto num desejo antípoda do seu comensal; e daí cada um sentir que a tormenta se encastelava rápida e que, inevitavelmente, uma faísca de ódio havia de chispar ao encontro desses dois antagonismos.

Ambos, contudo, se empenhavam, mais por um sentimento de decoro doméstico, do que por uma razão egoísta de prudência, em retardar quanto possível a deflagração iminente.

A baronesa, com o corpinho roliço e fresco regamboleando num roupão de caxemira cor de grão, enfeitado a renda creme, e a grossa trança castanha presa, em torso negligente, à nuca por um grande prego de níquel, transversal, ora olhava as unhas, ora dava pequeninas ordens ao criado de mesa, ora derivava o olhar num passeio alheado pela sala, toda no cuidado de evitar os olhos do barão. Este, para evitar os olhos da baronesa, achara recurso mais cómodo: ia lendo o Diário de Notícias, posto ao alto contra o centro de mesa — quatro grifos rompantes de prata suportando uma túlipa de baccarat, muito elançada, em facetas de cujo bordo biselado em ponta se debruçavam, num parapeito fofo de violetas, as primeiras rosas da estação, colhidas no jardim.

O barão estava de fraque, vestido para sair. Mais de uma vez tentara travar conversa, sempre sem resultado. Primeiro, leves perguntas banais.

— Mandaste ao encadernador?
— Mandei — respondeu ela, distraída.
— O correio não traria nada hoje?
— Pergunta ao João.

Daí a pouco: — Sempre os Paradelas ontem...

Nada!

Após novo intervalo:

— Não estou hoje nada bem... Tive palpitações toda a noite. E este meu estômago...

A baronesa limitou-se a sublinhar com um risinho incrédulo. Por fim, quando tomava o café, o barão assentou no jornal a ponta da faca, mantida entre o dedo maior e o indicador da mão direita, e exclamou muito familiar, a querer entrar com sol no diálogo:

— É boa esta!... Sempre impagável de tolice este jornal. Queres ouvir?... — E leu alto, com um bom sorriso conciliador, mas sem fitar a esposa: — Diz hoje o luminária das Cartas do Estrangeiro que visitou em França o Panthéon, «edifício destinado a Santa Genoveva, patrona de Paris»!... e mais abaixo, falando do nosso ministro ali: «é um dos mais esclarecidos e honrados representantes que temos no estrangeiro, e cuja espécie fora bem útil reproduzir para honra do País...» E boa, não é? — comentou, rindo.

Porém, malévola, a baronesa:

— Que sensaboria!
— Achas?
— Decerto — confirmou ela num revirar de olhos azedo.
— Nem sei para que te incomodas a ler-me isso... — E logo, na previsão do que ia passar-se, para o criado: — Vá almoçar.
— Cuidei que te interessasse... — aventurou o marido.
— Supões-me mais idiota do que sou.
— O filha, não é isso! — afagou o barão com a mais afetuosa bonomia. — Que te interessasse como episódio cómico, simplesmente, como assunto para um bocado de troça, para brincar, para rir.
— Bem! não faltava mais nada. Agora chamas-me criança! — explodiu ela com vivacidade, enquanto arrastava para longe, num sacão de arremesso, a chávena de cujo chá bebia os últimos goles.

Desta vez o barão, posto em prova, afastou da mesa o tronco, alto e direito, e cravou na mulher um severo olhar de reprimenda. Mas ela, de cotovelo fincado sobre a toalha, franzir desdenhoso nos lábios, a mão cocegando a ponta da barba num jeitinho impertinente e raivoso, pôs-se a fitar com altiva insolência uma das rosetas do teto e a fustigar o parquet num bater de pé provocante. Uma trepidação elástica e felina corria-lhe o colo, os seios e a face rija e redonda, em cujas vénulas engrossadas se via a fremer e a subir um sangue roxo, irritado.

De repente, abate sobre o marido as pupilas, crispantes de desafio:

— Preciso sair hoje... Não me acompanhas?
— Logo vi!... ou eu não tivesse que fazer!... — respondeu com ímpeto o barão.
— Que marido tão condescendente, tão amável que eu tenho, Santo Deus!... Nem de encomenda! — E depois de uma pausa, numa irritação crescente: — Para que me foi tirar a casa dos meus pais?... Se me não amava, para que me privou do carinho dos meus? Para que me foi arrancar ao coração da minha gente, a minha verdadeira e única família, que nunca me contrariaram... sempre prontos a adivinhar-me as vontades, sempre felizes por me fazerem a vida cor-de-rosa?... Casou por conveniência, bem sei... para me tiranizar absurdamente! — E com lágrimas na voz: — O senhor não procurou em mim uma doce e digna companheira, mas uma estúpida e dócil governanta! Não me quis para lhe alegrar a existência e entreter a alma, mas para lhe determinar o jantar e pregar os botões das ceroulas... Bonita vida!
— Elvira, não me impacientes! Não me estragues o almoço... Precisas de sair?... Manda recado a tua mãe ou a tua irmã.
— Não são minhas criadas!
— Nem eu!

E ergueu-se pálido, fulo, assentou com força o guardanapo sobre a mesa, foi tomar o sobretudo e o chapéu ao cabide do corredor, e saiu.

Hílares do baralho da contenda, os canários do lindo viveiro dourado tinham rompido numa chilreada escarninha.

A baronesa, depois de imobilizada uns segundos num espasmo de cólera impotente, ergueu-se também de repente e foi sepultar-se na chaise-longue do seu cantinho predileto, humilhada, fria na epiderme, a chorar, a tremer. No primeiro momento nem deu bem conta dos sentimentos que a poleavam. A pobre criatura sentia só — com que violência! — que a saída grosseira e brusca do barão lhe caíra na alma com todo o peso de uma afronta, provocando uma dor vagamente cava, indefinível, como o bater de uma lápide fechando um túmulo.

Ele desfeiteara-a, insultara-a, atirara-a à margem como uma ponta de charuto — eis o que era evidente, o que era essencial, o que a dilacerava... porque motivo?... Não lhe importava, não o sabia; nem, mesmo que o quisesse, conseguiria talvez tentar sabê-lo. De ordinário incapaz de passear muito tempo a atenção sobre um mesmo assunto, a baronesa comprazia-se em acendrar até ao último exagero as consequências de uma emoção. Sobrava-lhe em coração o que lhe faltava em inteligência. Vinha-lhe de sentir muito e pensar pouco o seu adorável feitio de leviandade. Assim, toca a malucar: — O marido repelira-a, desprezara-a... que lhe importava o mais?...

— E a torturada e voluntariosa burguesita contorcia-se na vergonha da afronta evidente. Aquela alvura leitosa de cútis, que a extrema regularidade da sua vida tingia habitualmente de cor-derosa, vincara-se, empanara-se, contraíra-se no engelhamento lívido de um pergaminho velho. As lágrimas gemiam gota a gota, como de um filtro, de cada aproximação das longas pestanas, que palhetazinhas de ouro incrustavam, microscópicas. E as mãos enrodilhavam e retesavam nervosamente o pequenino lenço de esguião e rendas, preso por uma das pontas entre os dentes raivosos.

Desprezada, humilhada! — ela, cuja suprema ambição, cujo mais almo prazer, cujo mais fervoroso anseio era amar, adorar, dedicar-se, para ser por igual amada, adorada e servida num exclusivismo sagrado e ardente de mutuação perfeita... — Que alma ingénua! Como esta certeza fulminante vergastava cruel o seu modo feminino de sentir as coisas!

Esquecia-lhe mesmo entrar em linha de conta, na liquidação do ultraje, com o ativo não pequeno das suas provocações. Não considerava que o barão, conciliador, paciente, afável, se empenhara bastante em conjurar a borrasca, pelo seu caprichozinho azedo armada, e resolvida em próprio prejuízo. — Insultada, humilhada! — não queria saber de mais.

Na sua frente, sobre a mesma mesinha baixa de charão, ficara aberto, da véspera, o romance lido com tanto ardor. A baronesa deu de acaso com os olhos nele; e então, confusamente, numa teimosia obscura de confronto, por um destes desvios absurdos, mas triviais, nos espíritos pouco reflexivos, começou a achar analogias entre a sua ridícula cena com o marido e aquele episódio sangrante de adultério... Aí havia por força uma tragédia latente. Iam no prólogo. Vinha encastelando-se a borrasca. Impossível harmonizarem-se... jogavam falso. — E um tirano. Não me compreende...

— Se ele já me não ama!? — pensou a meia voz, aterrada, num rodilhão de ciúme, enquanto os olhos se lhe secavam, muito abertos, a boca se lhe descerrava num pânico, e as mãos lhe caíam sobre o regaço, com o lenço esfrangalhado entre os dedos finos.

Mas foi o sonho de um instante... Breve, uma confiança grande no marido, uma confiança ainda maior na própria juventude, acordaram-lhe um rebate de honra íntimo, chamaram-na à realidade. Clareou então um bom sorriso altivo no marfim do rosto macerado, e aos olhos, vivos como um chilreio de aves, afluíram de novo as lágrimas, agora pulverizadas, cristalinas, doces como um aguaceiro peneirado de sol, na Primavera.

Entrou neste momento a curiosa da Doroleia — de saia de alpaca preta com folho na barra, véstia de briche, cabeçãozinho de renda, cuia enorme de retrós assentando nas costas, e toda impante de curiosidade velhaca no olho pequenino e redondo, na boca rasgada de orelha a orelha, no queixo em arpéu, no nariz esborrachado — a perguntar:

— A senhora baronesa chamou?
— Eu não, mulher — respondeu a baronesa, contrariada e enxugando a furto os olhos, secamente. — Até me pôs medo!
— Queira desculpar, pareceu-me... — arriscou, toda untuosa, a matreira, baixando o olhar e correndo os dedos da mão direita pela orla do avental, num afago de disfarce, enquanto debruçava o raio visual das pálpebras, a apreender, a saborear o escândalo.

E como ela se fosse ficando:

— Vossemecê quer alguma coisa? — interrogou, passados minutos, a baronesa, agora nadando nesta voluptuosa lassidão que nos deixa o abalo de um perigo que passou.
— A senhora baronesa desculpará... mas... sim, a senhora bem sabe que eu que sou sua amiga e que não me sei calar. E vai por isso não me sofre o interior vê-la assim tristinha, e não lhe dizer cá o que eu entendo...
— Sim, sim, obrigada... Eu não estou triste... Nem alegre... Aborrecida!... Vocês querem ver sempre a gente de carinha na água. — E pegou no livro, como para ler.

A Doroteia porém não se deu por despedida. Continuando a escrutinar felinamente a baronesa, passou com a língua os lábios gretados e prosseguiu:

— Com um dia tão bonito... a senhora veja... Tudo por aí na paródia, a passear, a divertir-se, e a minha rica senhora aqui a ralar-se! — E, numa torpe bajulice: — Bem digo eu que não é como as mais!
— Lá vem vossemecê com a tolice do costume. Cale-se!
— O senhora, isto não é ser má-língua, é a pura da verdade... Tenho servido em Lisboa, antes desta, seis casas... tudo gente casada... que isto é, uns deles desconfio que não, porque nunca saíam de braço dado... Seis casas... Pois juro-lhe que em todas elas, quando os maridos saíam para a rua, cuida que as senhoras que se punham assim, metidas a um canto?... Tó rola!... Iam mas era para a janela, fazer frente a outros.
— Não diga isso, mulher! — reprimindo, súbito indignada, a baronesa, a cuja lisura de ânimo repugnava a calúnia. E quis ler; mas a maligna observação da criada interpôs-se... Na sua cabecita oca infiltrara rápido, como em areia, a babugem da alcoviteira. — Havia pois mulheres que... Ora! — E a inteireza da sua alma entrou em luta com a inconsistência do seu espírito. Bem fitavam os olhos a página; bem queria a vontade acorrentar o pensamento, que remoinhava, remoinhava' em crepitações de bandeirola ao vento da fantasia.

A Doroteia, observando sempre a ama, tomou um leque de penas de cima de um móvel e exclamou:

— Que ventarola tão bonita!
— Bonita — respondeu Elvira, muito breve, sem desfitar o livro, a afugentar.
— Minha senhora, deram-lha?
— Deram.

Parenteseou-se um silêncio. Fora, no largo, um malandro pregoava cautelas; da raiz do monte do Castelo vinha, amortecido na distância, um arranco de bigorna batida; longe a longe, uma carruagem passava. Passados minutos, soaram horas no escritório do barão. E logo a baronesa, que não conseguia ler e a quem o silêncio molestava:

— Olhe lá: que horas deram?
— Para não mentir à senhora — respondeu a criada salivando os beiços — direi que não botei sentido... Que eu, a bem dizer, não me entendo com os relógios de Lisboa. Têm dois ponteiros, não sei para quê... Lá na minha terra, o relógio da torre da igreja tem só um ponteiro, de lado a lado, e a gente governa-se com ele, e regula muito bem... Agora isto de dois é uma confusão...
— São precisos, já lhe tenho explicado: um marca as horas, e o outro os minutos.
— Não me entra cá... Endróminas... — E voltando à carga: — Mas que dia tão lindo!

Agora a baronesa, ainda ao seu pesar alheada da leitura, encarou numa pontinha de cólera a causa do seu desassossego e ordenou:

— Não tem que fazer lá dentro?... Não preciso de vossemecê aqui.

Um despeito rancoroso fuzilou nos olhos da megera, que resmoneou, humedecendo as ravinas dos lábios: — És como as mais!... — E saiu de olho de través e cabeça baixa, com a ponta da cuia, retesada do muito cabelo, erguida em curva sobre o ócciput, a modo de uma grande figa.

Apenas ela desapareceu, a cabecita redondinha e leve da baronesa largou a remoinhar com fúria. Ergueu um olhar interrogativo para o espaço — que dia formosíssimo!... Aquela hora o sol não entrava já no aposento, mas metalizava em lampejos de bronze as folhas negras da grande magnólia que do jardim subia, encostada a uma das sacadas, toda viçosa e nítida num azul claro e manso de lago adormecido. A baronesa, fascinada, atirou com o livro, aproximou-se da janela e olhou... A frente da casa, que deste lado virava ao sul, ficava o jardim, camarinhado de um verde tenro e diáfano, e depois, para lá do muro, estendia-se o Largo do Caldas, com o basalto ainda envernizado da névoa matutina, as trapeiras dos altos prédios espumantes de sol, e à direita, aberta no flanco onde um vidro de lampião centelhava, a Rua da Madalena, descendo ao rio em declive rápido, num alinhamento architectural pombalino. O ar estava lavado, clemente, doce, bondoso e humido como um sorriso. Na lisa fluidez do céu, onde raro vogavam os ultimos algodoamentos da chuva da noite, sentia-se correr, luminoso e breve como um bater de azas brancas, o arranque da Natureza que acordava. A mesma luz suavemente doirada, a mesma petulancia de seiva, a mesma communhão de vida acariciava os aspetos cambiantes da rua: a blusa d'um cocheiro que fumava a um portal, a canastra d'uma peixeira que, de rins quebrados e braços erguidos, falava para um 3.° andar, a chapa do bonnet d'um carteiro, o tejadilho d'um trem, os letreiros d'uma carroça, a barba d'um mendigo.

Um rejuvenescimento brincava na aragem. Via-se o beijo da Primavera no brilho estimulado das coisas. — Oh! fazia bem quem se chegava á janella em dias como este... A vida era deliciosa... Embriagava como as plantas dos tropicos... A questão estava em saber colher-lhe a flôr a tempo! — E a baronesita, perturbada, alucinada um tantinho, vencida d'um deliquio molle, com um desmaio de volupia a molhar-lhe as palpebras amortecidas, phantasiou que via tambem, subindo e crescendo para ella na sombra da rua, um belo Rodolpho de jaquetão de velludo preto, bota de vitella té ao joelho e calção de malha branca, montado n'um soberbo cavallo negro e trazendo outro pela mão, em que ella ia montar, egualmente negro, com um sellim de pelle de gamo, e na testeira graciosamente postos dois topes cor-de-rosa.

Entretanto, o barão tinha entrado no Gremio e sentára-se a lêr jornaes; mas, no grau de excitação em que se achava, nem conseguia prender-lhe o espírito o canalhismo picante da literatura francesa de bulevar, tão sua predileta. Percorria num ar vago as colunas, sem lhes apreender o sentido, perro no atrito de uma apatia mental pesada, imbecilizante. O jornal tremia-lhe na mão sem firmeza, e as pernas cruzavam-se, descruzavam-se, erguiam-se em ângulo muito agudo, com a rótula à altura do estômago, alongavam-se direitas num arrastamento do calcâneo ao longo do tapete, a dar o síndroma de uma impaciência fatal, irreprimível. Consultou o relógio: — uma hora. Tinha marcado o encontro para as duas... — Ainda uma hora, que inferno!...

Saiu; e vagaroso, negligente, a iludir o tempo, olhando o céu, parando às montras, tomou Chiado acima, Rua Larga de S. Roque, e à Travessa da Queimada. Depois, ao cruzar com a Rua da Atalaia, deu dois passos nesta e subiu, à esquerda, pela Travessa dos Inglesinhos, até à Rua da Rosa, pela qual enfiou a ângulo reto, sobre a direita, entrando, por fim, sorrateiro, quase a meio da rua, numa casinha pequena, de três janelas de frente, branca, dois andares e platibanda. Prédio banal e anónimo, porém denotando a benfeitoria de uma restauração recente, na balaustrada, nos caixilhos grandes das vidraças, nas padieiras levemente ogivadas, nas varandas de ferro fundido; e pavoneando-se portanto num legítimo orgulho de destaque, entre a pelintra sucessão de casebres daquela rua estrangulada e imunda.

Na loja acomodava-se um cafarnaum poeirento de bric-à-brac mesquinho; o primeiro andar, com as tabuinhas verdes sanefando em toldo para fora de duas das sacadas, e umas toalhitas brancas, postas na outra a enxugar, tinha a impudência clássica do bordel tolerado e regulamentado na lei; o segundo andar, todo corrido de uma varanda, andava por conta do barão.

Tinha à frente dois aposentos. Uma saleta esguia, nua de mobília: e uma pequena sala, com duas portas sobre a sacada, de stores brancos descidos; esteira; um toucador-cómoda de espelho, com bacia e jarro, escovas, pentes, sabonetes; canapé e cadeiras italianas; divã de base de mogno e repes verde; uma mesinha de pé-de-galo; na escaiola cinzenta da parede duas «anatomias», a óleo, de adolescentes, colhidas em baixo no bric-à-brac, sobre uma mísula floreteada um frasco com água fénica; e — detalhe curioso —, a um canto, contra a luz, um estrado de pinho com um bastidor cinzento ao alto. Abria-se nesta sala um arremedo de alcova, que mais parecia um armário, escaiolada a cor-de-rosa e mal comportando uma cama larga de mogno, à francesa, irrepreensivelmente feita, convidativa, luzente. Um corredor conduzia à sala de jantar, do outro lado, sem um único móvel, toda alagartada em paisagens de um grotesco inverosímil, e com duas janelas dominando um trecho do Bairro de Jesus e apanhando ainda ao longe a curva elegante do zimbório da Estrela, sobre um anfiteatro loução de casaria. A par ficava a cozinha, com a chaminé virgem de fumo, e com porta para uma outra alcova, onde havia uma tina, um lavatório de ferro, um bidé e uma esponja num prego.

Um ar bafiento e frio ensopava todo este interior mercenário, em cujo arranjo não palpitava a menor emoção da vida de família. Faltava o fogo e o pão, as duas primeiras condições na existência de um lar. Nada havia de quente, de irregular, de buliçoso; nada surpreendido num gesto de afago, nada marcando a evolução de um afeto, nada acusando esta honesta desordem que é o selo confiante da intimidade, nada amotinado nestas adoráveis confusões de coisas que as criancitas levantam, como um rufio de asa na pelugem de um ninho. Antes tudo ordenado, espanado, a postos, na cumplicidade passiva do prazer às horas; tudo pronto a garantir nos gozos de um sibarita a segurança do mistério.

Assim que entrou, o barão fechou cuidadosamente a porta por dentro e fez num exame rápido uma inspeção à casa. Tudo em ordem... A água corria no contador, havia roupa lavada nas gavetas... bem! Não poderia tardar. E deixou-se cair no canapé, alquebrado, numa languidez pungente de ansiedade, a cabeça contra a parede, os olhos cerrados, as mãos cruzadas sobre o ventre, e as pernas estendidas com os pés de calcanhar sobre a esteira, firmes ao alto. Era a sua posição habitual em situações análogas. Lá estava a confirmá-lo, manchando a parede, uma gorduragem negra mesmo no ponto em que ele agora encostava a cabeça. Era assim, nesta impassibilidade ostensiva, que o pobre doente devorava os minutos de inquietação expectante, enquanto lhe devorava os nervos um trabalho de extermínio.

Mesmo esta posição inerte e na aparência tranquila era filha espontânea do seu ânimo hipócrita, era a que mais convinha ao seu jeito habitual de disfarçar. E que a sala em volta se apropriara à hipocrisia do dono, via-se na ordenação pautada, quase severa, do seu arranjo.

O sol, que luzia de chapa nos prédios fronteiros, coava pela trama dos stores corridos uma luz uniforme, pacífica, suave, de atelier ou de templo, mascarando, por uma anomalia picante, com a sua meia-tinta parada e discreta aquela estância cachoante de paixão. Por forma que esse corpo humano, ali mineralizado, imóvel, devastado interiormente por uma turbamulta de desejos, dava a aparência calma e solene de uma estátua ou de um deus.

Tinha 32 anos o barão, e contudo dir-se-ia ao vê-lo que orçava já pelos quarenta. A sua finíssima pele, que fora tão alva, lanugenta e macia, perdera toda a mimosa frescura da adolescência. Endurecera, espessara, asperizara-se, granulara em concreções de tofus, orografara-se em vermelhidões de urticária, deixara roer toda a suavidade feminil da sua cor dos 15 anos pela erupção pintalgada e luzente da dermatose que lhe envenenava o sangue. Via-se a magreza estirando e cavando em volta dos malares salientes a face desfibrinada. Os olhos, grandes e negros, conservavam a mesma cintilação ardente; mas uma leve tinta cor-de-rosa lhe debruava as pálpebras, em cujo ângulo exterior uma purulência branca se pusera a ressumar, teimosa; e a descamação farelenta da pityriasis polvilhava-lhe abundante o bigode e as sobrancelhas. Uma calvície prematura começava a despovoar-lhe a frente e os lados da cabeça, rasgando uma testa larga, dominadora, inteligente, que seria formosíssima se não aparecesse mordida amiúde por vários botões acnosos, fugazes e incertos mas persistentes, picados ao centro em pustulazinhas duras, brancas e brilhantes como lâminas de arsénico. De cada lado do mento, escoltando a pêra, erguia-se um grosso afloramento irregular de placas avermelhadas, papulosas, estaladas, secas, largando um desagregado contínuo de películas pulverulentas. E uma oleosidade sebácea e lustrosa porejava constante da base do nariz e das glândulas temporais subcutâneas, dando a este pobre rosto, bariolado de herpetismo, o aspeto repugnante e mole de um morango sorvo.

Num sobressalto repentino, o barão estremeceu e endireitou-se, despertado pela instintiva noção do tempo, que é peculiar aos linfáticos. Olhou o relógio: — duas horas precisas. Ergueu-se num prurido de impaciência. Começou medindo a casa em passos largos, a todo o comprimento. Ia de uma das portas da sacada, pelo corredor adiante, a direito, até ao extremo da sala de jantar, e voltava ao ponto de partida. Depois que fez três vezes este passeio, afastou o store ligeiramente com a mão, a interrogar a rua... Cintilavam os olhos, e sob a língua crescia-lhe um excreto guloso de saliva. — Mas que arrelia! Nem uma nesga se via de calçada!.. — O pavimento da varanda projetava-se sobre o primeiro andar vizinho. Continuou então o passeio, e a cada três voltas, invariavelmente, volvia a arredar o store, para ver... na casa da frente as volutas de uma parreira e a ginástica adunca de um papagaio.

De vez em quando, parava a colar o ouvido contra a porta da escada. Meia hora passou assim... — Se o cachorro faltava!? — Ao pensar isto, interrompeu brusco o passeio e uma onda lhe tumultuou no cérebro, congestivamente. — Era o mais certo... — comentou descoroçoado, raivoso; e recomeçou a passear, com o mar nos ouvidos, vermelho, tonto, agitando os braços num vaivém de cólera.

Nisto, um espatinar surdo de pés descalços vinha crescendo na escada, vagarosamente. Duas pancaditas tremidas na porta... Era o rapaz!

Então, ao tê-lo ali bem vivo e bem completo, o barão sentiu-se iluminar todo numa exultação imensa, ao passo que o amolecia uma frescura de alívio; como se os seus nervos tivessem amansado de repente e lhe normalizasse agora o temperamento uma tonalidade tranquila. Estava alegre, mas senhor de si, calmo; parecia indiferente. E todavia a excitação não amainara; acendera-se mais, pelo contrário. Mas a certeza, a evidência na posse do prazer próximo operara o derramamento da sua ideopatia luxuriosa num doce equilíbrio de distribuição por todo o corpo, dando uma impressão serena e mansa de conjunto. Disse-lhe, pois, naturalmente:

— Já cuidava que não vinhas.

E como o efebo se amarfanhasse tímido junto da porta, cosido à ombreira, o boné de alpaca torturado entre as mãos: — Está à tua vontade... — acrescentou.

O rapaz, perturbado por esta insistência de atenção na sua pessoa, espirou um monossílabo intraduzível. O barão estudava-o, media-o de longe, com entusiasmos de artista.

— Olha para mim — pediu-lhe.

O rapaz mal ergueu os olhos, coçando a cabeça, sorrindo contrafeito; e relanceou-os logo obliquamente, numa visagem desconfiada, a todo o comprimento do corredor ao lado. A isto, o barão aproximou-se, e familiarmente, descansando-lhe o braço sobre o ombro, fê-lo correr a casa toda, a mostrar-lhe que não havia lá mais ninguém.

— Estás agora descansado?
— Estou, sim, meu senhor.
— Bem! — E tomando-lhe a mão, carinhosamente: — Anda cá... — Levou-o para junto do canapé, sentou-se e meteu-o entre os joelhos, pondose a contemplar, a beber amorosamente, numa expansão febril de concupiscência, aquele maltrapilho adventício das ruas, que permanecia de pé, vagamente assustado, aturdido, estúpido, mas ainda assim com um leve traço de malícia a apontar-lhe no rosto lascarino.

Vestia um pedaço de jaqueta de casimira castanha, pendendo das costuras em farrapos, encodeada, lustrosa, ignóbil; e um colete larguíssimo de lã, que fora azul-claro e agora era cinzento-sujo, sem botões, sobreposto na cinta, paradoxalmente engelhado e preso por uma correia de fivela, que servia também para segurar as calças, de cotim em xadrez miudinho, talhadas «à faia», afuniladas, cerces, a trama esfiada e lassa mantendo-se num prodígio de resistência, num joelho um rasgão fechado por um alfinete, e incrustações altas de lama nas aberturas farpadas.

O barão, vestido no Catarro, perfumado, correto, limpo, saboreava um requinte supremo de luxúria naquele abandalhar-se ao contacto da ínfima porcaria. Sofria o aviltamento da sua diátese aberrativa. Com os longos dedos trémulos afagava e corria demoradamente aquele sórdido personagem, cuja refratária imundície largava a mesma aspereza crassa que nos deixa na mão o correr do pêlo a um cão vadio. Por fim, foi ao trapo engordurado e negro que o rapaz trazia a fazer de camisa, e quis despregar o alfinete que lho cingia ao pescoço. Mas logo o efebo, acudindo também com a mão e corando:

— Deixe estar...
— Tolo! — insistiu a meia voz o barão, teimando. E abriu-lhe a camisa, que deixou ver um colo alvo, carnudo, cheio, de gordos peitorais amplos, saltantes, e de uma bela cor veludosa e macia, como de fruto que amadura.

O barão inflamou-se. Um calor de brasa mal apagada subia-lhe aos olhos, mordia-lhe sob a epiderme, latejava-lhe nas pontas dos dedos, tumultuariamente... Colheu, espremeu com fúria um dos refegos desse peito apolíneo, e cravou-lhe um beijo sôfrego, ardente, bárbaro, um destes beijos decisivos, formais, que despertam um amor incondicional ou uma inimizade eterna, beijo em que ele estilara toda a ânsia da sua alma, e que era a síntese das suas turbulências fatais de sodomita.

Aquela carne oleosa e suja, para quem a água fora sempre um mito, deu-lhe uma gustação salgada, que o estonteou. — Despe-te lá! — ordenou, largando o efebo e erguendo-se num ímpeto irresistível. O rapaz, sinceramente envergonhado, recusava-se; mas o barão, imperioso, breve, todo vibrante na tirania de um destes desejos cegos que levam às maiores audácias, insistiu. Ele mesmo lhe desafivelou a correia, para o obrigar. Então o rapaz, vergando segunda vez ao império daquela tenacidade de aço, obedeceu; e aborrecido, resignado, confuso por aquele vexame de exibição da sua miséria repelente, começou despindo os andrajos, que cada empuxão mais dilacerava, e atirando-os uns após outros, amarfanhados em rodilha, para trás do bastidor.

Quando o viu nu inteiramente, disse-lhe o barão:

— Põe-te em cima daquele estrado... Anda! — O rapaz subiu, sem perceber nada, começando a desconfiar que caíra nas mãos de um doido. — Põe-te direito... Assim... As pernas bem unidas... Dobra um pouco a perna direita... joelho para dentro. — Numa passividade idiota, o rapaz obedecia.
— Agora está bem!... Perfeito.

E toca de ir sentar-se-lhe na frente, a distância, a cavalo numa cadeira, o queixo fincado nos braços assentes sobre o espaldar, concentrado numa alta contemplação de escultor estudando o modelo que vai reproduzir. A cada segundo de exame, o entusiasmo e o prazer cresciam. — Admirável! admirável!... — exclamou num flamejo de êxtase. — Finalmente!... Não te mexas! — Num relâmpago arrastou a mesinha de pé-de-galo para o meio da casa, trouxe papel e lápis de uma gaveta, e sentou-se a copiar a formosa figura que tinha diante de si.

O rapaz vestia, com efeito, uma plástica opulenta e firme de mármore antigo. Devia ter 16 anos, a julgar pela indecisão do buço e pelo frouxel topazino da sua virilidade, mal apontando ainda. A luz dava-lhe a três quartos, uniforme, pacífica, suave, destacando do bastidor o seu belo torso flexuoso e forte. Um cabelo curto, abundante, seco, todo revolto em crespos do estilo grego mais puro, coroava-lhe a cabeça, de uma oval harmoniosíssima, cujas faces pomejavam sangue, e cuja extensa e enérgica linha de sobrancelhas, cobrindo uns longos olhos rasgados em amêndoa, com o brilho do ónix na sombra dos grandes cílios, fartos e sedosos, mais idealmente fina tornava a terminação da barba, picada, como um fruto tocado de um pássaro, por uma covinha cor-de-rosa. A epiderme, áspera e trigueira das intempéries, passava cruamente, da gargalheira torrada e negra da base do pescoço, a amaciar sobre o tórax num branco lácteo, pastoso e cheio, que pelos antebraços descia adelgaçando e esbatendo-se té um azul tenro e diáfano de porcelana, cortado bruscamente nos pulsos por um outro círculo queimado. Depois, na região abdominal, a cor bistrava ao de leve, gradativamente; sobre as colunas das coxas altas e redondas reaparecia o branco luminoso e macio, mordido por um leve formigueiro de sangue; uma rugosidade escura enfarruscava os joelhos; daí para baixo, duas finas linhas lustrosas e brilhantes definiam a aresta das tíbias; e logo a pele tornava a asperizar-se e a queimar-se, numa abundância de cor nojosamente progressiva, feita de cieiro e de surro, terminando nuns pés enormes e sórdidos, negros de todas as escoriações e todas as imundícies.

— Não te mexas! — repetia o barão, todo na cópia, delirando. — Finalmente!

É que este rapaz viera trazer-lhe a particularidade anatómica que o barão procurava há muito, afincadamente, com a tenacidade mansa dos linfáticos: — um comprimento exagerado de fémur, uma distância relativamente grande entre a região púbica e o joelho. — Isto devia dar ao corpo um ar elançado e leve, um alongamento gracioso, um afinamento supremo de elegância, delicioso à retina de um artista. O barão morria por ver com os seus olhos, uma só vez que fosse, esta particularidade realizada. Em telas, gravuras, mármores, estava farto de a observar; mas queria encontrá-la no domínio da Natureza, flagrante, palpável, viva. Por isso havia anos que corria pertinazmente em cata do seu capricho. Dezenas de rapazes, de mulheres, de rapariguitas mesmo, tinham vindo àquela casa poisar perante a sua obstinação doentia. Perscrutinava ele na rua uma mulher fácil ou um garoto complacente que lhe parecesse deviam ter aquele desvio anatómico?... Não os largava enquanto não conseguisse, a impulso de astúcia e de dinheiro, conduzi-los à Rua da Rosa e analisar-lhes a nudez.

Mas a realização da sua fantasia era por extremo difícil neste nosso país de atarracados. Lá nas extensas regiões planas, por onde o corpo segue direito, e onde portanto a função locomotora se exercita desembaraçada e leve, numa mediocridade inalterável de esforço e numa igualdade sóbria de movimentos, que as leis do equilíbrio não obrigam geralmente a exceder, ser-lhe-ia fácil surpreender essa expansão vertical, tão idealmente apuradora da figura humana. Já não assim nas agruras das nossas terras montanhosas, em que o pé tem de ser garra, e em que a tirania dos bruscos e altos desníveis derreia a espinha e retesa os músculos em contrações violentas, tendo por consequência a espessidão e o encurtamento dos ossos em que se apoiam.

Também, de há muito que o barão porfiava no seu sonho, sempre sem resultado. A veemência deste desejo irrealizado enquistara mesmo numa fixidez sinistra de mania. Referia-lhe incondicionalmente as suas relações todas com o mundo exterior. Ao primeiro encarar com um desconhecido, o seu olhar baixava logo, numa avidez sombria, a medir-lhe as relações de comprimento entre o tronco e os membros inferiores. Quando vira na véspera o rapaz que lhe pedia a senha, relanceou-o logo... pareceu-lhe que ele devia corporizar excelentemente a sua ideia. Daí aquele fervoroso empenho em trazê-lo a este exame extravagante. E — finalmente! — acertara desta vez.

Mas a cópia levava tempo. O rapaz impacientava-se. Não saía bem o desenho, embrulhavam-se os traços... A hiperestesia sensual, que cumulativamente com a obsessão artística trabalhava o barão, começara a preponderar. O apetite carnal cresceu, irreprimível. Num dado momento, parou a olhar o modelo, com a pupila empanada, o lápis caiu-lhe dos dedos trémulos, as maxilas oscilaram-lhe num jeito de carnívoro, e então foi tomar o efebo nos braços e refugiou-se com ele na penumbra da alcova...




Uma hora depois, o barão, vagaroso, lasso, neste abandono que nos adormenta os nervos que um largo dispêndio de gozo extenuou, dizia para o efebo, que acarreava o colete e as calças, atabalhoado:

— E gostas desse modo de vida?
— Não desgosto.
— Vender jornais e cautelas... Pobre rapaz!
— É reinadio — comentou o efebo num encolher de ombros despreocupado e alegre. — Farta-se a gente de berrar.
— A polícia conhece-te?
— Já fui preso uma vez... — respondeu baixando os olhos.
— Porquê?
— Não tinha feito mal nenhum!... Foi de uma vez que deitaram a rede à gatunagem.
— E então é bonito isso?
— Ora adeus!... Eu não tinha roubado nada a ninguém.
— Nunca tiveste fome?
— Às vezes tenho... mas tenho também a minha liberdade, que vale mais que pão! — afirmou convicto o garoto, num aprumo altivo.
— Mas eu já te disse... Continuas na tua liberdade e não tornas a ter fome, querendo ficar pela minha conta.
— O senhor está a gozar... — insinuou a meia voz o lascarino, abrindo a expressão num sorriso malicioso de suspeita.
— Ficas nesta casa e tens dez tostões por dia... Que mais queres?

E como a desconfiança acabasse de acentuar-se nas feições do rapaz:

— Desconfias?... É natural; não me conheces... Ora, já que sabes ler, lê lá. — E, tirando da carteira um bilhete-de-visita, o barão estendeu-o ao rapaz.

Sobre um — Barão de Lavos — descrito em cursivo largo e elegante, reluzia a miniatura de um símbolo heráldico, policromada em relevo com rara perfeição. Escudo bipartido. A metade da direita esquartelada, tendo no primeiro e último quartel as armas reais com um filete em contrabanda, e no segundo e terceiro, em campo de prata, um mantel sanguinho com um castelo de ouro, entre dois leões sanguinhos batalhantes; tudo cingido numa finíssima orla, composta de dezasseis peças, oito de ouro lisas e oito de azul, cada uma com a sua vieira de prata. — Era o escudo dos Noronhas, precioso tronco de que derivavam os condes de Valadares, Arcozelo e Paraty, e os marqueses de Angeja. — Na metade esquerda do escudo brilhavam as armas dos Castros — seis arruelas de azul, em duas palas, em campo de prata. Da coroa do timbre nascia, arrogante e minúsculo, um leão sanguinho.

O rapaz ficou deslumbrado. Evidentemente, estava tratando com um alto personagem! Fidalgo e rico, não havia dúvida. — Deixar de farófias... era aproveitar, antes que outro o fizesse. Baguinho e boa vida, vinha do céu! — E o malandrete, com o olhar hipnotizado na pinturilagem do escudo, baixou o pescoço em sinal de submissão.

O barão disse:

— Que dizes?
— Estou por o que o senhor quiser.

Então o barão, abocando um tubo acústico pendente ao lado da cama, chamou para baixo. Daí a minutos, entrava uma figura inexpressiva e reles de velha alcoviteira, corcunda e gotosa, os olhos sumidos na papujem flácida das pálpebras garatujadas de pés-de-galinha ao infinito, um sorriso perpétuo estereotipado nos lábios negros, as mãos cruzadas em aspa debaixo do avental. Era a mulher do dono do bric-à-brac da loja. Tinha ao seu cargo a conservação e arranjo da casa alugada pelo barão, que lhe disse, apenas ela entrou:

— Ouviu, Sra. Ana?... De hoje em diante este rapaz fica a morar nesta casa.
— Sim, senhor barão.
— A senhora cumpre as ordens dele como se fosse eu que lhas desse.
— Sim, senhor barão.

E logo este, colhendo o rapaz a um lado, a meia voz:

— Tomaste sentido?... E a tua criada... Podes combinar com ela para te fazer a comida. Toma lá, para os primeiros dias. — Meteu-lhe na mão duas moedas de ouro; depois concluiu: — E, primeiro que tudo, tens aí água, coco e sabão... lavado, muito bem lavado, hem!... amanhã iremos ao alfaiate. Até amanhã.

Quando passou pela frente da Sra. Ana, que lhe fora abrir a porta, recomendou ainda: — Sirva-mo e trate-mo bem, veja lá! — O menino fica ao meu cuidado; vá descansado, senhor barão. O pederasta desceu rápido a escada, leve desta alegria efémera que segue de perto a satisfação de um capricho. Mas em baixo, à porta, a luz forte do exterior cegou-o, acendeu-lhe num clarão doloroso a consciência... Então invadiu-o uma impressão de cobardia e de desgosto, caiu na fase do tédio, e foi seguindo pela rua estrangulada e suja, a que uma faixa límpida de azul fazia tampa, medroso e triste, quase arrependido, a malucar em mil preocupações funestas que o seu hipocondrismo desatara a sugerir-lhe.