O Barão de Lavos/Capítulo IV

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Quando os barões de Lavos entraram na sala dos seus amigos Paradelas — Rua de S. Filipe Nery —, um silêncio de troça reprimida imobilizava os íntimos daquela noite em volta a uma pequena mesa, em que o coronel Militão se sentara a escrever. Apenas pressentiu a sua querida amiga, D. Leonor correu a abraçá-la, toda efusiva e alegre.

— Chegas na melhor ocasião! — segredou-lhe logo que trocaram o último beijo. — O coronel está-me escrevendo uma poesia no álbum.
— Oh! Que bom! — comentou D. Elvira, com uma faúla escarninha a camalear-lhe o âmbar dos olhos translúcidos.
— Para estros como aquele é que os álbuns foram inventados — disse o barão, irónico. — Está bem.
— Anda ver — disse D. Leonor para a amiga, impaciente; e conduziu-a, num enlace afetuoso de cintura, para junto do grupo que rodeava o coronel.


Todos se voltaram, a cumprimentar os recém-vindos; só o coronel se não mexeu. Com o cotovelo esquerdo firmado sobre a mesa e a mão rodilhando a pêra luzidia e negra numa abstração romântica de poeta que arma o laço a um verso rebelde; os olhos piscos e erguidos num gesto pedante de preciosa elaboração interior; e a mão direita, de pena enclavinhada, imóvel, implorando que alguma coisa descesse para ser escrita, o bom do velho, cheio de si, numa auréola de glória, sorridente, realizava um destes tipos imensamente patuscos de cretinos que se julgam génios, e de cuja desopilativa assistência anda a sociedade tão rica, para bem de quantos não podem ir a Arcachon ou a Vidago desengrossar humores...

Tinha mais de 60 anos; bastava a confirmá-lo a patente que alcançara no exército. No descalabro marcial do rosto, caparrosado e flácido, papejando engelhado e mole aos lados das maxilas, negrejava, num destaque ridículo de fazer dó, a juventude artificial das sobrancelhas ramalhudas e do espesso bigode, lustroso, erguido caracolado nas pontas por escamas de cera.

O cabelo, raro, mas povoando-lhe ainda toda a cabeça, igualmente lustroso, cor de crina, formava ao alto da testa uma poupa galinácea e empastava-se depois sobre o crânio numa aderência lambida e crassa de pomadas, afastado por uma grande risca que seguia do temporal esquerdo, alinhada como um pelotão, irrepreensível, larga, a perder-se, transposta a nuca, na fímbria do colarinho.

— Como estás, minha filha? — disse para D. Elvira a mãe, escoldrinhando com olho amoroso a baronesa.
— Bem, e a mamã? — respondeu a baronesita, chamando à expressão a mais branca e mimada alegria.
— Quis vir pela tua casa; mas tua irmã — não imaginas! —, hoje não acabava de se vestir!... Cada vez mais toleta... Tu em solteira não eras assim.
— Credo! Também a mamã agora deu em embirrar comigo! — acudiu, a fazer beicinho, a Julita, pequenina e redonda como Elvira, mas trigueira, inflamada, forte. E logo, ao ouvido da irmã: — E que o Frederico tinha-me ido falar hoje — sabes? —, e custava-me despedi-lo.

Estavam mais naquela sala fresca e simples — de papel dourado, alcatifa em cornucópias, mobília trivial de mogno, piano vertical, lustre de pingentes, damasco vermelho no sofá, nos fauteuils e nos reposteiros; a Sra. Reodades, viúva de um desembargador, biliosa e hidrópica, de bigode, uma grande verruga a um lado com um pincel de cabelo; uma filha desta grave matrona, que vinha a ser a jovem e escanifrada D. Aurélia, uma das meninas mais prendadas do sítio, pois bordava a froco, pintava pratos, cantava por casas particulares e versejava no Almanaque de Lembranças', um estudantinho da Politécnica, abrejeirado, caspento e verde, com olheiras; a Sra. D. Plácida do Rio, espadanando em sedas berrantes, viúva inconsolável de um banqueiro honrado; um soberbo e simpático homem, o Sr. Alípio Vieira, de ombros largos, moreno, insinuante, ser misterioso e açucarado, sem modo de vida certo, sem domicílio conhecido, abotoado sempre numa impecável correção de diplomata, e que as más línguas diziam viver de complacências junto da inconsolável D. Plácida; Henrique Paradela; Inácio Miguéis; o barão de Lavos; e a filhita mais velha dos donos da casa, de 6 anos apenas, mas já cordata, ponderada, séria, compondo gestos, medindo palavras, observando as toilettes, toda a viveza e turbulência mortas nesta precocidade pretensiosa e doentia que forma a base da educação das crianças de Lisboa.

Como o coronel não desatasse do improviso, D. Leonor e D. Elvira acercaram-se dele, troçando:

— O coronel, falta-lhe hoje a veia, que vergonha!
— Pronto, pronto! — explodiu ele, numa radiação de triunfo.

Escreveu a correr um último verso, ergueu-se, encavalou a luneta na base do nariz, chegou da luz o álbum, afastado a todo o comprimento dos braços, tossicou, e leu alto esta quadra:


Com a noite o Amor vem e cresce
E as almas junta e inebria,
Depois, tímido, se esvanece
Quando assoma a luz do dia.


Um coro de gargalhadas acolheu a parturição grotesca daquele avariado cérebro.

— Bravo, coronel, muito bem!
— É madrigalesca, maganão! E maliciosa, vamos lá!...
— Sabe a pouco, é o defeito que tem. — Parece-me que o terceiro verso está errado — criticou a meia voz para a mãe a linear D. Aurélia, cuja boca enorme, sem mucosa labial, fendida em costura, parecia estirada ao peso do corpo, como um rasgão de farrapo espetado ao alto de um pau nas searas, para espantalho. E a mãe apoiou: — E um idiota! —, enquanto o bom do homem, derretido e grato, de gravata encarnada, sobrecasaca preta, a calça de pano fino, larga e embalonada, caindo em refego sobre as esporas, e qualquer coisa de couraçado e cingido como um espartilho a definir-lhe o abdómen e a quebrar-lhe a cinta sobre os quadris, balbuciava numa opressão de modéstia, as brotoejas rosáceas da testa roxas da comoção:
— Ó minhas senhoras, confundem-me!... Eu não sou poeta... Apenas um simples jeitoso.

Entrava ao tempo, dandinante, viçoso e fresco, todo numa preocupação barulhenta de ser notado, o formoso Xavier da Câmara, pastinhas à petitcrevet, monóculo, polainas, e uma enorme gardénia, que parecia talhada em jaspe, brilhando na botoeira do fraque verde, muito curto, de botões de madrepérola. Era a figura dominante do sport lisboeta, o estalão da moda para os marialvas, o galanteador mais afortunado dos salões.

— Que belo ar de festa aqui vai hoje! — exclamou logo; depois, cumprimentando a dona da casa: — Felicito-a, minha senhora... Pelo que vejo, trata-se de coroar de louros o nosso coronel... Pois vem-me tout à souhait a oportunidade; há muito que eu ardo no empenho de lhe fazer também un petit bout de apoteose. — E sacudindo muito a mão do coronel, com o pé esquerdo leve e o corpo todo cambando à direita, num exagero pretensioso: — Parabéns, coronel, muitos parabéns!

Entretanto a baronesa, levemente afogueada, levava-lhe obsequiosamente o álbum aberto e convidava:

— Pois não é bonito?... Leia.

Ao que Xavier, depois de ler, deixando cair o monóculo e alongando a boca, sibilino:

— Com franqueza, minha senhora, é uma sensaboria doublée de uma tolice... Nem admira. Daquele bestunto não pode sair coisa de jeito... — E concluiu baixo: — Nem mesmo que fosse inspirado por Vosselência!

E logo, rodando para junto do marido:

— Diga-me, barão, as lições de esgrima têm continuado?
— Ainda anteontem. Mas — coisa esquisita! — a cada assalto sinto sempre uma vaga impressão de dor no baixo-ventre, como se o caso fosse a valer.
— Ah! Não se admire. Dá-se isso com quase toda a gente... Comigo não! Porém sucedia a La Boessière; e Henri Quatre queixava-se sempre do mesmo, ao ter que entrar em batalha.
— Olha lá, ó Xavier — interveio aqui Henrique Paradela —, tu que entendes de armas... Comprei ontem uns floretes que me parecem magníficos. Quero que me digas que tais os achas.

E o Xavier, com um ar superior:

— Laissez-moi voir ça.
— Vou-tos buscar — anuiu Henrique. — As senhoras dão licença... não têm medo. — Daí a momentos, entrava com um belo par de lâminas, elásticas, lampejantes, frias. — O Imberton disse-me que eram uma especialidade.
— A quoi donc? — disse Xavier, com um desdém impertinente. Examinou vagaroso os floretes, tateando-lhes o grão, fletindo-os contra a alcatifa, ensaiando a cravação dos punhos, fazendo-os varejar o espaço em sacões rápidos, silvantes; e, ao cabo: — Com efeito... não são maus.

Então pousou-os sobre uma cadeira, e sentando-se como por acaso ao lado da baronesa:

— Bom de lei — sabem? — é aquele revólver Wamant em que outro dia lhes falei. Tirei-lhe hoje a prova real. Não deixa de ser interessante... Imaginem! — acrescentou com intimativa, de punhos sobre o joelho e braços em parêntesis, a prender a atenção. — Tinha ido à Cruz do Tabuado, ver uns cavalos novos que o Instituto adquiriu. O dia estava convidativo: fui a pé. Ao sair, vinha do Matadouro um sujeito com um grande bulldog ao lado... Sem mais nem mais, a fera avança para mim e fila-me!... Bem o chamava, bem berrava o dono!... O celerado não largava, sacudia-me com raiva as calças, até que as rasgou! Por fortuna escapou o mollet... Eu então, furioso, deito-lhe esta mão à coleira, saco do revólver, aponto-lho à cabeça, entre os olhos... bem berrava o dono!... e ferro-lhe quatro tiros simétricos... O molosso caiu.
— E o dono? — acudiram num coro interessado as senhoras.
— Já não berrava.
— Não exigiu uma indemnização?...
— Não perdeu a cabeça?
— Qual!... Chamou simplesmente um galego que lhe levasse o cadáver do animal... naturalmente para mandar embalsamar.
— Que imprudência! — repreendeu cordial D. Elvira, com um pique de calor na face e a anastomose das veiazitas a engrossar, muito azulada.


E o sonso do Alípio Vieira, que se escoara para um vão de janela com a inconsolável D. Plácida, comentou entre dentes:

— Cada vez mais «pãozinho»!

D. Leonor tinha-se aproximado do piano com D. Aurélia. A esquirolenta menina ia cantar. Compôs na estante a música, pigarrou, trocou duas palavras de combinação com D. Leonor, que era quem ia acompanhar, passou o lenço pela boca, e desfiou então chorosamente uma romanza sentimental, em que o histerismo plangente da amante abandonada lamuriava no rosário habitual de notas mugidas com ênfase, e vibrava nos trilos consagrados invariavelmente para o fecho das cadências. A transparente criatura gemia todo aquele idealismo obsceno compenetradamente, como se a heroína do caso fosse ela, cujos tristes 22 anos sangravam feridos de amaríssimas desilusões de amor. A sua voz aguda de soprano tinha acentos da mais pungente eloquência, e as notas saíam-lhe da laringe, que um excesso de salivação empenava, como que engrossadas de lágrimas, ásperas, molhadas.

A mãe, a Sra. Reodades, sentada mesmo ao lado do piano, bojuda e enorme, revia-se na filha e ia marcando o compasso com a cabeça, enquanto uma deliciosa mímica de aplauso lhe dançava no rosto cor de cera derretida. Inácio Miguéis, em pé ao meio da casa, radioso, gordachudo, as mãos sustendo o abdómen, cerrava os olhos gulosamente numa beatitude alvar. O estudantinho da Politécnica, lascivo té ao casco, crivava a D. Julita com olhares suplicantes. Os outros ouviam numa complacência indiferente.


Depois das palmas do estilo, no final do canto, dizia D. Elvira para o coronel, que ocupava agora junto dela a cadeira deixada por Xavier da Câmara:

— Ouviu, coronel?... Olhe que o meu álbum não é menos que o da Leonor. Quero também uns versos.
— O baronesa! Isso é uma honra com que não pode o meu estro balbuciante... — contrariou Militão inclinando-se, todo baboso.
— E um homem feliz este coronel! — disse D. Leonor, que veio sentar-se junto dos dois. — Ainda relativamente novo, numa posição tão bonita...
— Querido das damas... — atalhou D. Elvira. — Cheio de medalhas... ajudante-de-campo de El-Rei... com uns poucos de criados para o servirem de graça...
— O que nós chamamos «impedidos»?
— Não só esses, mas todo o regimento, não é assim?... São tudo seus criados... Oh! Deve ser um regalo! Mandar em centenas de homens, fazê-los mover todos a um tempo, como máquinas!... Eu, se fosse homem, não queria outra honra, não ambicionava melhor posição.
— Ora, minha senhora, presta lá para nada!... E maçador. Dão muito que fazer! são maus, manhosos. E depois, tudo caras barbadas — acrescentou, na intenção de ser amável. — Se os regimentos fossem de senhoras, isso é que era delicioso!... Olhe, sabe, D. Leonor?... Se eu comandasse um regimento de senhoras e Vosselência tivesse praça nele, nomeava-a logo... A minha «impedida»!

Novo coro de gargalhadas festejou este galanteio do coronel, enquanto Henrique Paradela, vexado da audácia, mordia o beiço para o lado, e D. Leonor corava té à raiz dos cabelos. Ela era uma destas mulheres acanhadas e discretas, de inteligência medíocre e alma equilibrada, a quem a menor notoriedade assusta e o anormal, o extravagante escandalizam; mulheres sem vaidade, sem ambições, sem desvarios, fadadas para vegetar apagadamente no segundo plano da Vida, e-cuja exclusiva preocupação, cujo ideal supremo se cifra no cumprimento estrito do Dever.

Para a desafrontar do embaraço evidente, D. Elvira segredou-lhe, acotovelando-a com disfarce, a derivar:

— Não vês?... Lá está a viúva ao canto, agarrada ao Vieira... Não sabes o que deles se diz?
— Sei, filha, sei, mas não acredito. E uma boa gente, deixa falar — respondeu com a mais generosa segurança D. Leonor. — Ela tem um viver irrepreensível, garanto-te; apenas faz o possível por mitigar um pouco as saudades do marido, a quem amava loucamente. Querias que a pobre senhora ficasse toda a vida encerrada no seu quarto, a chorar e a arrepelar-se?
— Pois sim, mas ele?... e então ele de que vive?
— É comissário de vinhos agora, e agente de consignações.
— Estás a brincar...
— Palavra! Tem até escritório na Rua dos Fanqueiros. Diz meu marido.

Do grupo de homens que rodeavam, junto à porta da saleta do fumo, o coronel, destacou muito exibitivo Xavier da Câmara, e, sentando-se novamente ao lado da baronesa:

— Não a vi no benefício da Rey Baila, minha senhora. Esteve doente?
— Não, felizmente... nem eu, nem ninguém dos meus; mas fazia anos meu pai. Fui passar o dia e a noite com ele, e cedi a frisa às Pachecos.
— Afinal não perdeu nada. A beneficiada sentia-se rouca, e o Junca também não estava nos seus dias. — E acrescentou, todo curvo para a baronesa, num mal reprimido suspiro: — O único que perdeu, fui eu...
— O senhor!? — estimulou a baronesita, com uma simulação coquette de espanto. — Eu sim, minha senhora... Tinha quase como certo ver Vosselência aquela noite, ali, branca e rosada na sua frisa, respondendo amável à minha saudação e dominando, como sempre, a sala, toda rendida ao prestígio da sua encantadora formosura!
— Lisonjeiro!... Se assim gosta de me ver, porque nos não visita? S. Cristóvão assim é longe?... Recebemos todas as tardes — bem sabe.
— Faz sua diferença. Isto de vermos a mulher que nos cativa, no recinto acanhado de uma sala, apertados no formulário da etiqueta, sob o olhar espertalhotão e malicioso das outras visitas, c’est un supplice na vrant, comprometedor, atroz! —E como D. Leonor se tivesse levantado, para ir pedir à Julita que tocasse o Noturno de Chopin: — Não assim na amplidão anónima de um teatro, onde cada um pode entregar-se sans contrainte, sem receio de comprometer nem de ser surpreendido, à contemplação muda e ardente do anjo que o fascina porque realiza o seu ideal sonhado e apetecido!


Assim, o patife prosseguiu colhendo na retórica do galanteio as flores mais inflamadas, cuja venenosa essência D. Elvira aspirava deliciadamente, com a face afogueada, os lábios trémulos e os olhos húmidos de comoção. O barão, de longe, no grupo dos homens, observava a cena, desconfiado, torvo. Gradualmente o ciúme regrou-lhe a testa, e os dedos longos e nodosos dobraram-se contra a palma da mão, numa fúria nervosa de bater.

A um claro da sua imprudência, a baronesa deu de olhos nele; então teve medo, e corrigiu logo a expressão e a atitude, abrindo ao mesmo tempo o leque e piparotando as pregas do vestido.

A Júlia veio ter com a irmã, a dizer-lhe:

— Vou tocar, e vai ser uma vergonha! Estou tão nervosa!... O mafarrico do Mendonça em toda a noite não tira os olhos de mim! — E logo o Câmara aproveitou para levantar-se e ir enfiar o braço no do barão, a explicar-lhe com a mais cínica naturalidade: —
Sua esposa esteve-se informando do benefício da Rey Baila. Como não foi... — O barão teve um rugido surdo de cólera e afastou do tronco o braço, de modo a fazer cair o de Xavier da Câmara. Este, porém, imperturbável: — Como não foi... — repetiu.
— E natural a curiosidade, e nem ela podia ter escolhido mais condescendente informador... — conseguiu dizer o barão, num tom frio de ironia. A baronesa espiava-os, branca de susto.
— Obrigado, barão!... Mas não esteve grande coisa aquilo. Que o diga aqui o Alípio, que ficou mesmo ao meu lado.
— O quê? — perguntou o melífluo personagem, que em atenção às conveniências tinha deixado a viúva.
— S. Carlos, na terça-feira.
— Ah!... iludiu a expectativa. Nenhum dos cantores estava em voz, a não ser o Mongini. Os coros desafinados. E então a comparsaria muito fora da ordem.
— É verdade, é verdade!
— Lembras-te, no 2.° acto, aquelas três coristas que entraram antes de tempo, a saracotearem-se, todas pândegas, como se viessem fazendo uma grande figura?
— Tal qual!... Eu até disse para o Pego, o meu grande companheiro de boémia: olha, lá vêm a «marquesa de Almada, a condessa dos Camarões e a Pavoa»!

E radiante por ter feito tanto a pêlo esta graciosa referência à trindade mais canalhamente em voga do mundanismo lisboeta, Xavier da Câmara deixou o barão com Alípio e aproximou-se de Inácio Miguéis, que sabia embirrava soberanamente com ele, para o arreliar. —

Meu caro Miguéis, então já sabe?... Vamos ter aumento de direitos sobre a importação das fazendas estrangeiras. E é muito bem entendido!
— Aumento!?... Oh! meu Deus! Onde irá isto parar? — exclamou num desabafo de pacóvia indignação o antigo negociante, que se tinha associado recentemente a duas das casas mais fortes de panos da Baixa. — Daqui a pouco, não há quem possa sustentar aberta uma loja de mercador!
— Quebram todos?... Muito bem feito! Não tenho pena nenhuma. — E, com um olho insidioso: — Eles sabem quebrar a tempo...

Logo o oleoso burguês, com a calva rubra, formalizado:

— Não calunie, Sr. Câmara, não calunie! Quem está de fora, fala bem... Creia que não há vida pior... Eu que o diga, que ainda hoje lhe sofro as consequências. — E curvava hipocritamente o cachaço e baixava as pálpebras, como para conter alguma lágrima de mártir, retardatária.
— Tenha paciência, meu caro, eu acho bem. — Inácio Miguéis aprumou-se e cravou no interlocutor uma olhada fula. O Câmara prosseguiu: — Pois não é assim?... Estamos a vestir caríssimo.
— Se carregarem nos direitos, mais caro havemos de vestir.
— Nada, não pode ser!
— Não pode ser?... Homessa! — insistiu com firmeza Inácio. — Encarece o que vier de fora, que há de ser menos, e encarecem os artigos nacionais, que hão de ter mais procura.

Xavier da Câmara conheceu que estava a pique de sustentar uma tolice, e então salvou-se explanando, num atabalhoamento palavroso de ignorante que se defende:

— É que os senhores negociantes, com o pretexto dos direitos, estão aí a impingir-nos fazendas nacionais como estrangeiras, por um dinheirão!... Mas isto acaba!... Desde que aumente na pauta a taxa da importação dos artigos de vestuário, por forma que venha a tornar-se insignificante a entrada deles nos nossos mercados, já a gente depois sabe que se há de vestir com panos da Covilhã e da Arrentela, e o comércio há de fornecê-los baratos e contentar-se com um lucro razoável, quer queira, quer não.
— E confirmou com ares de quem bebia do fino, sem se desconcertar: — O pensamento do Governo é este... é muito bom pensamento, e tem por si a opinião do País.

O tom superiormente convicto desta coarctada final ressoou fundo na córnea inteligência do velho traficante, que interrogou pálido, limpando o suor da calva:

— Mas então, sério, há ideia disso?
— Palavra! O briche nacional vai ser moda. A iniciativa parte da Família Real. A rainha já não usa rendas senão de Viana e de Peniche.
— Querem-nos levar a pele! — impou Inácio Miguéis, todo em suores frios, com a voz cava do desespero; enquanto o janota ia contar a Henrique Paradela, entre casquinadas de riso, os efeitos patogénicos da sua peta.
— Outra como esta, e o barão fica sem sogro.

Ao que Henrique Paradela, pousando-lhe a mão no ombro, protetor e doce:

— Deixa-o lá.

Entretanto, D. Aurélia, a pedido, cantarolava um tango, cuja melopeia quebrada e dolente, carpida na sua voz perra e molhada de escrofulosa, perdia toda a dengue voluptuosidade característica para se arrastar num queixume dorido e fúnebre de epicédio.

Alípio Vieira tinha-se sentado, e afagava entre os joelhos a gentilita filha dos Paradelas, que gostava imenso dele e viera encostar-se-lhe num abandono meigo, os longos anéis castanhos do cabelo a aflorar-lhe a gola da sobrecasaca, a mão esquerda apoiada sobre uma perna, e a direita bedelhando com a pequenina cabeça de biscuit engastada numa concha, que ele trazia a adornarlhe o plastrão cor de malva.

— Gostas deste alfinete?... Queres que to ofereça? — perguntou com acento mimado o Vieira, todo curvo para a criança, cujo cabelo tocou ao de leve com os lábios, sobre a testa.
— As senhoras não usam disto — retorquiu ela, grave, dando uma compostura pretensiosa ao corpo e retirando a mão.
— E então tu já és senhora, Ema?... — A pequena teve um sobrecenho de enfado. — Como vamos de lições?
— Ainda hoje tive ótimo! — acudiu logo, com orgulho. — Tenho sempre ótimo... E mais olhe que a madame não é para graças... Já ando em contas. — Ao participar este facto assinalável da sua vida, a encantadora Emazita curvou-se toda, de face ao alto e rins contra o braço do amigo, que encarou com orgulho. E demorou-se a fitá-lo, as mãos rodilhando agora na cadeia do relógio, o cabelo pendendo solto, quase a tocar na alcatifa, uma quebreira de ternura confiante a fosforar-lhe na pupila imaculada e na expressão ideal do rosto miudinho e fresco um sorriso sereno e cândido esvoaçando.

Neste alongamento do corpo, dobrado sobre o braço de Alípio Vieira, a barra do vestido subiu e deixou a descoberto uma ligeira porção de coxa, no prolongamento da perna, igualmente nua, muito alongada e fina. Então o olhar do barão, que estava sentado junto dos dois, sentiu-se imediatamente solicitado por uma força irresistível, fatal, involuntária, e logo desceu, cauteloso e vesgo, a comparar, a medir a relação de comprimento entre o tronco e os membros inferiores da pequenita, adoravelmente franzinos, mal escorçando-se ainda nesta indecisão de forma peculiar das idades em que a função dominante do organismo é crescer, e cuja nudez sagrada tinha a vestila a castidade absoluta da inocência.

— E quantas bonecas agora? — interrogou ele, chegando-se, com a vista hipnotizada sempre, contra sua vontade, sobre a carne froixa e nua da pequenita.
— Dei-as todas à mamã, a guardar... Agora aprendo inglês — respondeu ela, outra vez séria, endireitando-se e compondo o vestido, instintivamente molestada pela insistência de olhos do barão.

Mas nisto veio o chá, e a aparição dos bolos desconcertou-a, acendendo as sôfregas exigências do seu paladar cortante de criança. Com os olhos húmidos e a face longa de guloseima, ela correu breve para a mãe, apontando determinados pratos dos tabuleiros: — O mamã, dê-me daqueles, sim?... — E D. Leonor, colhendo-lhe as mãos: — Espere, menina... Que modos são esses?!... Se começa a portar-se mal, vai-se deitar.

Xavier da Câmara antecipou-se a servir a baronesa. E como apanhasse ao lado dela uma cadeira devoluta, ensaiou reatar aquele diálogo quente, minutos antes interrompido. Porém a baronesa suplicou um: — Por amor de Deus! Tenha juízo! — tão profundamente sensato e tão comovidamente cauto que o célebre sportman levantou-se e rodou largo, diferindo para melhor oportunidade a prossecução do bloqueio.

Ao mesmo tempo, o dono da casa servia D. Plácida e dizia-lhe:

— Quase estive hoje privado de passar mais esta bela noite na companhia de Vosselência e dos meus bons amigos.
— Sim?... Então?...
— Temos tido serões no Ministério... até às 11 horas. De modo que pedi dispensa.
— Andou muito bem. —
Oh! O Estado não periga só porque deixei de enfiar por umas horas a clássica manga de alpaca; e eu lucrei imenso na deixar por esta noite dobrada ao canto da gaveta. O meu egoísmo, preferindo ao bastardo mazorro dos ofícios a palavra cordial dos meus amigos, creio que é, a mais não poder ser, justificado.
— O nosso egoísmo é que nunca lhe perdoaria, se faltasse... — contrariou amável, erguendo o rosto para Henrique, a mirabolante viúva, em cujos óculos de ouro centelharam duas miniaturas muito nítidas do lustre da sala, acendidas pela mesma reverberação que incendiava numa fosforescência de alga as esmeraldas do grande pente de tartaruga, erguido como um diadema na soberba trança grisalha que num jeito ateniense lhe coroava a cabeça.

Dentro, na casa do fumo:

— Sinto-me bem esta noite, sim senhores! — comunicava o coronel aos homens, bebericando num copo de água chalada.
— Pudera! — acudiu Alípio. — Com uma ovação como a que teve!
— Não é isso! — contestou Militão com um desdém superior. — É que esta manhã tivemos um trabalhão no quartel com aquele caso, que veio nas folhas, de um cabo que me esmurrou um primeiro-sargento. Não leram?... O auto do corpo de delito não tinha esclarecido bem a causa do crime. Levámos hoje o dia numas esmiuçadelas complicadas que nem seiscentos diabos. Fui jantar com dores de cabeça. Mas, afinal, a coisa apurou-se. E foi o que eu supus desde o princípio... O mariola do sargento andava metido com uma amiga do cabo, e este, quando o soube...
— Ora! — interrompeu Xavier da Câmara — é o eterno cherchez la femme.
— Qual fama nem meia fama! — corrigiu irritado o coronel. — Não era só a fama... — e rematou a meia voz: — Punha-se nela!

Custou imenso a conter a hilaridade dos presentes. O barão ferrou nos lábios mordeduras de fazer sangue; Xavier da Câmara valeu-se do lenço, fingindo que expetorava; o Mendonça correu para o vão da janela, a chorar de riso; Alípio, que mastigava um cake, teve um espasmo violento de laringe, que lhe fez jorrar com estrondo o chá pelo nariz e pela boca, numa sufocação de um cómico irresistível. Só Inácio Miguéis, de dedos no ar empolgando uma fatia, permanecia imóvel, sem perceber.

Aquela esfuziada de troça, Henrique veio informar-se. E logo Alípio de novo coleou para cerca da viúva, a trocar com ela versinhos das pastilhas.

Depois que as últimas bandejas circularam sem que ninguém se utilizasse, o Mendonça, a pedido das senhoras, foi recitar. Em pé no topo da casa, mãos no espaldar da cadeira oficiosamente chegada por Henrique Paradela, passada a destra pela sua grenha de vate romântico ou de tenor de café-concerto, ele bramiu calorosamente, entre iracundo e apocalíptico, uma extensa homilia toda sangrante de apóstrofes em brasa ao prosaísmo do mundo, ao conflito dos interesses, à imoralidade «campeando infrene», ao domínio brutal da força, ao «culto abominante» do deus Milhão. Era de ver como de estrofe para estrofe cresciam, lategando o assunto, as sátiras juvenalescas e os sarcasmos voltairianos; como esfuziavam conceitos pícaros ao modo de Pope, Dryden, Alfieri; como estouravam as gargalhadas satânicas de Rabelais — o que tudo o inspirado jovem ia realçando a primor com repercussões cavas, tiradas ’do tórax a murro, com reviramentos trágicos dos olhos vingadores, e com choradinhos de efeito na voz lamuriante.

Depois, gradualmente, a poesia amansava e alisava-se, como um rio que passa de remoinhar num estrangulamento anfractuoso de rocha, a adormecer lânguido e fácil num leito amplo de areias. Então, mal corria no verso um como encrespamento de brisa, um suave frémito amoroso... De onde a onde, um cândido evolar de aspirações da mais pura transcendência, uma suplicação larga e veemente, erguida num fervor de prece para um alto ideal sonhado e inatingível, revelavam a alma do poeta, nobremente espantada, esmagada, agonizante no pandemónio do torvelinho humano; alanceada pelo contraste do facto com a ideia, da matéria com o espírito, da teoria com a realidade; sofrendo a fatal compressão de aniquilamento em que as transformações sociais espremem os fracos, os tímidos, os delicados. Ela pedia o exílio, a abstenção, o isolamento, para longe das batalhas épicas da vida, para um ermo onde pudesse finalmente alcançar, na sua expressão culminante, bem inteiro, bem completo e bem perfeito, esse divino, simples, imaculado gozo, que ele sentia intimamente, e que queria realizado a dois na grande pacificação dos campos, na tranquilidade obscura dos humildes, no esquecimento inefável de alguma casita modesta, perdida na solidão... E aqui os olhos do clamoroso vate iam cair suplicantes, num amortecimento langoroso, sobre os olhos da D. Julita, que se torcia na cadeira, desesperada.

Desgrenhadamente lúgubre o final. Não esquecera o «mistério, o palor funéreo, o cemitério» e bastas rimas no género, que imprimiam àquela arenga arrepiante um ar plangente e fantástico de elegia.

A poesia, portanto, filiava-se por essência na pieguice então em voga do «teu amor e uma cabana». Mas era mais do que isso. Estilava um ceticismo torturado e lírico. Tinha de Melibeu e de Musset. Mesmo na primeira parte havia toda uma revolução de originalidades bravas, já «deboche» aparecia a rimar com «Rigolboche»; falava-se em Falstaff, em Luculo, em Moloch, em Sganarello; o sol era comparado a um «dobrão» e a lua a um «requeijão»; diziase muito acertadamente que o mundo agonizava entre o «bordel» e o «quartel»; gemiam-se trenos sobre o «calvário» do «proletário»; o céu era interpelado muito a sério sobre se o «ente imenso e necessário», que em nós habita, não passa de uma simples «argamassa de potassa e de calcário...» Para mais, tudo em alexandrinos!

Grande ovação no final. — Linda! linda! — conclamaram todas as damas, menos D. Júlia.

— Que final! Que elevação! Que sentimento! — sublinhava, de olhos em alvo, D. Aurélia.
— Quem é o autor? — perguntou a dona da casa. E, fitando muito o Mendonça, numa inquirição inteligente: —Aposto que adivinho...

Ao que o estudante respondeu, modesto, baixando a inspirada cara:

—Eu, sim, minha senhora.
— Oh! Isso tresdobra-lhe o merecimento!... Que bem! Que bem!
— Minha senhora, nem a poesia presta, nem eu sei recitar.
— Não diga isso... Quem, melhor do que o autor, pode dar expressão ao próprio pensamento?
— Decerto! — confirmou o coro feminino.
— Tem talento este rapaz — disse o barão para Henrique. E, batendo no ombro ao caspento vate: — Quer-me fazer favor desses versos para a Gazeta... Dão um belo folhetim.

Porém Inácio Miguéis, que vagamente percebera ser tudo aquilo um memorial amantético dirigido à filha mais nova, e que não engraçava com esta corja de poetas, resmoneou:

— «Me melem» se percebi palavra!

Pouco depois, o barão segredava a Henrique, num vão de janela:

— Ó homem, diz-me com franqueza: ainda acreditas nas virtudes da D. Plácida?!

?— Que pergunta!... Não vês que continuo a admiti-la na minha casa?

— Estás no teu direito... Mas olha que daquelas intimidades com o Alípio não se reza muito bem.
— Deixa falar... A minha mulher conhece-a por dentro e por fora. A morte do marido deixou-a inconsolável.
— Sempre ingénuo! Isto de «inconsolável» em matéria de viuvez é como o «irrevogável» em política... Tem uma sílaba a mais.

As senhoras agitavam-se de roda do coronel, pedindo-lhe que recitasse também; e ele a fazer-se rogado, com uns ares de isenção bonacheirona; e a D. Julita na brecha, afagando-lhe a barba com a ponta do leque. Afinal:

— Visto que tanto apertam... Sou um criado de Vosselências...
— Mas, na verdade, depois do Mendonçazinho... Enfim, depois da alvorada o sol-posto... Vamos lá!

E logo uma estralada de palmas:

— Bravo! Bravo! Viva o coronel!
— Que há de ser?... O Guerrilheiro!
— Nada! Nada!
— A Judia!
— E maçada!
— O Escravo!
— Uma coisa alegre, ora adeus!
— Coisa alegre?... Já sei!... Vão apanhar uma surpresa. Vou-lhes recitar Um toleirão!
— Isso, isso! Bravo! — aplaudiram à uma as senhoras. — Venha o toleirão!

Era uma poesia cómica recentíssima, que um ator eminente havia representado pela primeira vez, ainda de poucos dias, em D. Maria. O coronel tinha-se apressado a procurá-la e a estudá-la, no desempenho do seu papel de «petisco» dos salões. E já começava de dizê-la com intimativa, em pé a um ângulo da sala, os calcanhares marcialmente unidos, o peito bojando para a frente numa irrisão de elegância, a crista do cabelo tesa de fatuidade, e os olhinhos correndo maganamente, em piscações ambíguas, o círculo das senhoras, enquanto as brotoejas vermelhas da testa supuravam humores desvanecidos.

A poesia contava o caso de um bom homem, tolo e poltrão, casado com uma virago despótica e insuportável, que lhe infligia uma vida de negro, não o deixando sair sozinho, obrigandoo a varrer a casa, acender o lume, fazer a cozinha, lavar a louça, tomar o rol à lavadeira, engomar, pontear, ir à praça — tudo isto piorado com uma cegarrega de peguilhices sem fim:


Se me zango, porque zango,
Se chalaço, porque mango,
Se mexo, sou mexilhão,
Se falo, sou tagarela...


O pobre diabo lamuriava singelamente a sua desgraça, numa eloquência tosca e simples, a que o lamechismo do coronel dava um colorido de um cómico inexcedível. De vez em quando, como para explicar a sua sorte mofina, chorava o queixoso este estribilho:


Eu o que sou é toleirão!


que o coronel soltava num belo tom convicto, e que a sala toda acolhia a gargalhadas do mais trocista assentimento.

Vinha um trecho em que era posta a falar uma actrizita, impingindo ao Sr. Simplício um bilhete «para o seu benefício». Isto disse-o Militão no falsete mais esganiçadamente agudo que é possível alcançar-se na gama do grotesco. Também, aqui, a hilaridade das senhoras permitiu-se a mais ruidosa expansão.

Depois, no final, os aplausos estrepitaram furiosos, com uma grita inclemente de apupada. E as duas viúvas levaram o coronel em triunfo ao longo da sala toda, cada uma pelo seu braço,-enquanto D. Aurélia lhe fazia umbela sobre a crista com um livro de música aberto, D. Julita lhe dançava na frente abanando-o com o leque, e a pequenina Ema, perdida a seriedade, se lhe abraçava aos joelhos, repetindo: — Toleirão! Toleirão!

Radiante da ovação, tressuava o coronel.

Foi o sinal da retirada. Entabularam-se as despedidas; e, com intermináveis combinações das senhoras junto da porta da escada, os convidados foram saindo, vagarosamente.

Daí a minutos, no coupé cortando rápido o Largo do Rato, o barão dizia para a esposa, malicioso, afetando a maior naturalidade:

— Sempre o Câmara. Estava hoje muito ridículo!

E a baronesa, caindo na armadilha:

— Não achei.
— Oh! meu Deus! Ainda querias mais? — insistiu o marido no mesmo tom despreocupado. — Uma flor como a roda de um carro, o cabelo lambido de fazer nojo, as calças pelos joelhos, e então no palavreado uma mayonnaise de francesismo e de tolices, capaz de inutilizar pela náusea o espírito de melhor blindagem contra a asneira. Safa!
— Vocês não podem ver um homem que dê na vista, é o que é... Tudo que sair do trivial, do comezinho, do amanuense ou do caixeiro, aterra e consome de inveja os banalões como tu.
— O contrário das mulheres... — observou o barão, ainda fazendo de tranquilo, mas com um ligeiro pique de azedume a travar-lhe a cristalinidade da expressão.
— Está claro! — acudiu ela com vivacidade. Mas de repente, vexada de se surpreender, ao ouvir as próprias palavras, na defesa calorosa do dandinoso sportman, e percebendo o fim que visava o jogo do marido: — Muito te dá que fazer aquele Câmara!... Queres pegar porque conversei com ele, não é verdade?... Pois sê franco, homem! Ralha para aí!
— Ralhar, eu! Que ideia! — emendou manso o barão, progressivamente cáustico, numa bonomia desdenhosa. —Assim me supões tão ferozmente alarve?... Sei que para as senhoras o mais saboroso prazer é escutar amabilidades. Naturalíssimo... Roçagam-lhes a vaidade, que é a paixão dominante do sexo lindo. Chega a ser para vocês um divertimento inocente. E havia de eu censurar-te porque deste um pouco de atenção a um cavalheiro amável?... Pois não gostas também de amabilidades, tu?
— Pudera! Ando tão pouco acostumada a elas!... — remoqueou D. Elvira, agressiva, pondo no tom sacudido deste breve queixume um frio de amarga censura.
— Eu não sou positivamente um lamecha. Tem paciência.

E a questiúncula ameaçava crescer, cada vez mais irritante.

Neste momento o coupé, que atingira o fundo da Rua do Salitre, rodava pela frente do Circo, ruidosamente... Tudo apagado. Terminara o espetáculo. Na rua deserta apenas se movia uma patrulha da Municipal, deslize e muda como uma sombra, no seu duplo cone de oleado escorrendo o gás pacato dos lampiões. Ao aspeto do Circo, o barão reviveu num relance toda a cena da antevéspera com o efebo: — as tentativas pertinazes para lhe atrair a atenção; a sua inflamada e tortuosa eloquência em convencê-lo, à esquina do Passeio — aqui mesmo! —, e depois, no dia seguinte, Rua da Rosa, a impagável descoberta da sua linha anatómica, seguida de um minuto inolvidável de prazer... oh! o prazer mais rabidamente impetuoso e mais estonteadoramente cheio que, ao abalo da novidade e da surpresa, a sua natureza devassa de artrítico ainda até àquele dia tinha logrado sentir. Esta lembrança afogou-o numa undação celeste de volúpia, deu-lhe a leveza rútila do triunfo, ergueu-o numa acalmação dolente de felicidade que o levou para longe, para muito longe da deliciosa criatura, ali nervosa e quente ao lado dele, respirando o mesmo ar quase, dando-lhe contactos de carne polposa e fresca por cada solavanco do carro na calçada. E o Câmara esqueceu-lhe.

Porém a baronesa, em cuja alma inconsistente e mimalheira a reprimenda do marido desatara a fazer estragos, como um pingo de água numa pintura em cera, disse:

— Para que a gente se casa!... Nem ao menos somos senhoras de conversar com quem quisermos!

Arrancado brusco à sua evocação voluptuosa, o barão deu em replicar grosseiramente, na crua intenção de ofender:

— Olha, decerto!... Cabeças ventoinheiras como a tua melhor valia que não casassem. Ao menos, ficando solteiras, podiam tolejar à vontade sem se comprometerem mais do que a si mesmas.
— Assim me insultas?... E incrível isto! — murmurou a baronesa, mordendo os lábios, de raiva.
— Pois tu realmente estarás convencida de que te não excedeste, de que te não tens excedido já muita vez, nos teus segredinhos com o Câmara?... Quererás convencer-me de que não sabes que ele te faz a corte?
— E que tem que saiba?... Aceito-lha porventura?
— Pelo menos, não o ouves a sangue-frio. As palavras de um indiferente não nos chamam o sangue às faces, não nos encrespam os lábios, não nos ensopam a pupila num delíquio terno... Ah! Que eu hoje não estive longe de fazer um escândalo!... Chegar-me ao pé de vocês, arrancar-te dali para fora... e a ele, dar-lhe com uma luva, insultá-lo, cuspir-lhe na cara... eu sei!
— Que ganhavas com isso?... Desafiava-te... E a ele não lhe havia de dar grande cuidado. Joga bem todas as armas.

Faiscou um relâmpago no espírito do barão. Agora se revelara, neste dito inconsiderado, a perversão moral da esposa. A ideia do duelo preocupava-a... pela sorte do amante. — Jogava bem as armas, não tinha dúvida...

— Queriam mais sincera a impudência?... O desgosto, o ciúme, a ira, o tédio estrangularam-lhe a voz. Nada contestou.

Já a carruagem costeava a Praça da Figueira, rolando sobre o basalto com uma sonoridade branda e macia de molas caras. Depois o rodar apagou-se no macadame da Rua da Madalena, e presto os dois esposos apeavam-se à porta do seu palacete no Largo de S. Cristóvão. Subiram silenciosos a escada, e silenciosos se dirigiram para os quartos interiores, ambos sob a vigilância do pequenino olho escoldrinhador da Doroteia, a adivinhar e a reconstituir a cena com delícia.


A baronesa, no quarto de toilette, começou-se a despir, atabalhoadamente, com estes gestos sacudidos e doidos em que nos faz cabriolar os músculos uma emoção violenta. Ao despentear-se, o jogo seco dos braços tirou das articulações uns estalinhos brancos; depois, as pulseiras caíram com ímpeto, num tilintar elástico, sobre o mármore do toucador; os colchetes, fivelas e alamares do vestido arranharam deploravelmente a laca bariolada e translúcida do guarda-vestidos magnífico de Boule: e ouviu-se o estoirar de fitas que não havia paciência de desatar, e o abrir de rasgões feitos por alfinetes que não houvera o cuidado de desprender.

O barão, esse refugiara-se, às escuras, na peça ao lado — a saleta de estar da baronesa —, e media o pavimento em longas e rápidas passadas, numa obstinação de exaspero, entre um amontoamento de sombras, a face mal iluminada apenas, a cada fumaça, pela brasa do charuto que os seus dentes torturavam. Aquela altercação vulgar com a esposa tinha-a a sua imaginação veemente avolumado numa gravíssima contenda. E para ele todas as atenuantes, era de supor. Queria-se mal a si mesmo da sua cobarde complacência, dava-se proporções de mártir, vagamente pensava em libertarse pela separação daquela tortura degradante e intolerável. Por boa meia hora continuou assim passeando, todo na galvanização de uma análise que a obscuridade exacerbava, topando frequente os móveis esparsos pela casa, de onde a onde uma contração do tórax soando num rugido cavo, e a ponta do charuto apagado a desfazer-se na trituração raivosa, toda salivada em bílis, das maxilas.


Quando entrou na alcova, a baronesa estava já deitada. Voltada à parede, enroscada, imóvel, o seu corpinho pequeno e redondo perdia-se na farta amplidão das coberturas; a sua faca fosadita e leve, toda afofada na alvura da travesseira, lembrava um bouquet de rosas num cartucho de velino rendilhado; e os fios mais claros do seu cabelo castanho tomavam na incidência discreta da luz vinosa da lâmpada uns laivos ténues de ametista.

Deitou-se também o barão, na sua cama, carregado, mudo, impando, ao voltar-se para a parede, uma funda expiração de raiva.

Procurou dormir... Impossível. Na luz crepuscular da alcova as pupilas teimavam em abrir-se, muito leves, erguidas pela mola de uma excitação mordente. Por mais esforços que fizesse em contrário, a cena com a esposa voltava a galopar-lhe no cérebro, arreliadora, estúpida... Nisto pareceu-lhe distinguir um ruído... Ouvido fora da roupa... Era a mulher que soluçava.

Ele então deu entre os lençóis um pequeno salto involuntário; e, subitamente compadecido, mas querendo fingir de forte:

— Estás a chorar?... Ainda em cima!... — E como ela, passivamente, continuasse no mesmo soluçar magoado: — E boa esta!... Porque choras, afinal?...
— Se te parece!... Ligada a um homem que me não estima, que me não faz companhia nenhuma, que só tem para mim palavras duras...

O barão voltou-se para a esposa e respondeu, com a voz quebrada por um enternecimento carinhoso:

— Tu és tola! Pois eu não sou teu amigo?
— Ao teu modo...
— O filha, que queres tu?... É o meu feitio. Já tinhas tempo de me conhecer... Sou mono, carrancudo, seco moral e fisicamente, é verdade; mas — acrescentou estendendo os braços para o leito ao lado, numa solicitação conciliadora — quero-te muito, Vivi!... Tu bem o sabes!
— Se assim te conheces tão bem, não devias estranhar que eu ouvisse com agrado as pessoas que são amáveis para comigo... Tu quase que não tens para mim uma palavra afetuosa!... Se os outros ma dirigem, gosto... não por quem mas diz, que tolice! Mas unicamente por elas... por essas palavras de um efeito tão docemente inefável, que para a vida da mulher são tanto ou mais precisas do que o pão.

O barão tinha-se levantado; e, todo curvo sobre o leito da esposa, vencido, humilde, murmurou — Tens razão, Elvira... Fui brutal... Perdoa-me! — passando esta última prece num beijo timorato e súplice aos lábios da baronesa. Ela porém repeliu: — Ora, deixa-me! — ainda enfadada do que ouvira, e já começando a gozar na submissão do marido a voluptuosidade da vingança.

Mas o barão sentia-se todo arrepelado de uma comoção complexa, estranha. A contrição, à dor, à piedade, naturalmente suscitada no seu ânimo bom e generoso pela aflição da baronesa, juntavam-se agora, num somatório absoluto de tirania, a hiperestesia da sua virilidade ao contacto daquela mulher jovem e formosa, e, mais que tudo, um desejo veemente de posse, acordado pelas pretensões audazes de Xavier da Câmara. — Aquela mulher adorável era dele, só dele e muito dele!... Como podia haver um idiota que pensasse na infâmia de...? — E veio-lhe o apetite cálido de firmar maritalmente os seus direitos, no mesmo instante, ali.

Por isso, novamente dobrado sobre a baronesa, afagou-a com um segundo beijo, desta vez demorado, caricioso, firme, seguido de outros, vertidos cantadamente na cabeça, nos olhos, na face, no colo... no pescoço, e cortados por um entaramelamento de balbuciações apaixonadas.

— Deixa-me, ouviste?... Já te disse... Não estou para graças... Maçador! — repelia ainda a baronesa, já sem azedume, sem energia, amolentada, morta, a vontade suspensa e os nervos formigantes ao contágio sensual do marido. E acrescentou, num tom de voz sumido mas ressonante, como se falasse de um ponto muito distante, à beira de um rio: — Peço-te, vai-te deitar.

E o barão deitou-se, mas ao lado dela, imperioso, trémulo... E após uma pequenina luta, os dois breve afogaram num íntimo amplexo — longo, suspirado, elétrico — as últimas asperezas da contenda.