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O Bobo/I

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A morte de Afonso VI, rei de Leão e Castela, quase no fim da primeira década do século XII, deu origem a acontecimentos ainda mais graves do que os por ele previstos no momento em que ia trocar o brial de cavaleiro e o ceptro de rei pela mortalha com que o desceram ao sepulcro no Mosteiro de Sahagún. A índole inquieta dos barões leoneses, galegos e castelhanos facilmente achou pretextos para dar largas às suas ambições e mútuas malquerenças na violenta situação política em que o falecido rei deixara o país. Costumado a considerar a audácia, o valor militar e a paixão da guerra como o principal dote de um príncipe, e privado do único filho varão que tivera, o infante D. Sancho, morto em tenros anos na batalha de Ucles, Afonso VI alongara os olhos pelas províncias do império, buscando um homem temido nos combates e assaz enérgico para que a fronte lhe não vergasse sob o peso da férrea coroa da Espanha cristã. Era mister escolher marido para D. Urraca, sua filha mais velha, viúva de Raimundo, conde de Galiza; porque a ela pertencia o trono por um costume gradualmente introduzido, a despeito das leis góticas, que atribuíam aos grandes e até certo ponto ao alto clero a eleição dos reis. Entre os ricos homens mais ilustres dos seus vastos estados, nenhum o velho rei achou digno de tão elevado consórcio. Afonso I de Aragão tinha, porém, todos os predicados que o altivo monarca reputava necessários no que devia ser o principal defensor da Cruz. Por isso, sentindo avizinhar-se a morte, ordenou que D. Urraca apenas herdasse a coroa desse a este a mão de esposa.

Esperava por um lado que a energia e severidade do novo príncipe contivesse as perturbações intestinas, e por outro lado que, ilustre já nas armas, não deixaria folgar os ismaelitas com a notícia da morte daquele que por tantos anos lhes fora flagelo e destruição. Os acontecimentos posteriores provaram, todavia, mais uma vez, quanto podem falhar todas as previsões humanas.

A história do governo de D. Urraca, se tal nome se pode aplicar ao período do seu predomínio, nada mais foi do que um tecido de traições, de vinganças, de revoluções e lutas civis, de roubos e violências. A dissolução da rainha, a sombria ferocidade do marido, a cobiça e orgulho dos próceres do reino convertiam tudo num caos, e a guerra civil, deixando respirar os muçulmanos, rompia a cadeia de triunfos da sociedade cristã, à qual tanto trabalhara por dar unidade o hábil Afonso VI.

As províncias já então libertadas do jugo ismaelita não tinham ainda, digamos assim, senão os rudimentos de uma nacionalidade. Faltavam-lhes, ou eram débeis, grande parte dos vínculos morais e jurídicos que constituem uma nação, uma sociedade. A associação do rei aragonês no trono de Leão não repugnava aos barões leoneses por ele ser um estranho, mas porque a antigos súbditos do novo rei se entregavam de preferência as tenências e alcaidarias da monarquia. As resistências, porém, eram individuais, desconexas, e por isso sem resultados definitivos, efeito natural de instituições públicas viciosas ou incompletas. O conde ou rico homem de Oviedo ou de Leão, da Estremadura ou de Galiza, de Castela ou de Portugal referia sempre a si, às suas ambições, esperanças ou temores os resultados prováveis de qualquer sucesso político, e aferindo tudo por esse padrão procedia em conformidade com ele. Nem podia ser de outro modo. A ideia de nação e de pátria não existia para os homens de então do mesmo modo que existe para nós. O amor cioso da própria autonomia que deriva de uma concepção forte, clara, consciente, do ente colectivo, era apenas, se era, um sentimento frouxo e confuso para os homens dos séculos XI e XII. Nem nas crónicas, nem nas lendas, nem nos diplomas se encontra um vocábulo que represente o Espanhol, o indivíduo da raça godo-romana distinto do Sarraceno ou Mouro. Acha-se o Asturiano, o Cantabro, o Galiciano, o Portugalense, o Castelhano, isto é, o homem da província ou grande condado; e ainda o Toledano, o Barcelonês, o Compostelano, o Legionense, isto é, o homem de certa cidade. O que falta é a designação simples, precisa, do súbdito da coroa de Oviedo, Leão e Castela. E porque falta? É porque em rigor a entidade faltava socialmente. Havia-a, mas debaixo de outro aspecto: em relação ao grémio religioso. Essa sim; que aparece clara e distinta. A sociedade cristã era una, e preenchia até certo ponto o incompleto da sociedade temporal. Quando cumpria aplicar uma designação que representasse o habitante da parte da Península livre do jugo do islame, só uma havia: christianus. O epíteto que indicava a crença representava a nacionalidade. E assim cada catedral, cada paróquia, cada mosteiro, cada simples ascetério era um anel da cadeia moral que ligava o todo, na falta de um forte nexo político.

Tais eram os caracteres prominentes da vida externa da monarquia neogótica. A sua vida social interna, as relações públicas entre os indivíduos e entre estes e o Estado tinham sobretudo uma feição bem distinta. Era a larga distância que separava das classes altivas, dominadoras, que fruíam, as classes, em parte e até certo ponto servas, e em parte livres, que trabalhavam. A aristocracia compunha-se da nobreza de linhagem e da jerarquia sacerdotal, a espada e o livro, a força do coração e braço, e a superioridade relativa da inteligência. A democracia constituíam-na dois grupos notavelmente desiguais em número e em condição. Era um o dos burgueses proprietários com pleno domínio, moradores de certas povoações de vulto, comerciantes, fabricantes, artífices, isto é, os que depois se chamaram entre nós homens de rua, indivíduos mais abastados e mais insofridos, fazendo-se respeitar ou temer, numas partes pela força do nexo municipal, concessão do rei ou dos condes dos distritos em nome dele, noutras partes pelas irmandades (conjurationes, germanitates), associações ajuramentadas para resistirem aos prepotentes, e cujas origens obscuras talvez vão confundir-se com as origens não menos obscuras das beetrias. O outro grupo, incomparavelmente mais numeroso, constituíam-no os agricultores habitantes das paróquias rurais. Nessa época ainda eram raros os oásis da liberdade chamados "alfozes" ou termos dos concelhos. Dispersa, possuindo a terra por títulos de diversas espécies, todos mais ou menos opressivos e precários, na dependência do poderoso imunista, ou do inexorável agente do fisco, a população rural, ainda parcialmente adscrita à gleba, quase que às vezes se confundia com os sarracenos, mouros ou moçárabes, cativos nas frequentes correrias dos Leoneses, e cuja situação se assemelhava à dos escravos negros da América, ou a cousa ainda pior, dada a rudeza e ferocidade dos homens daquele tempo.

A burguesia (burgenses), embrião da moderna classe média, assaz forte para se defender ou, pelo menos, opor à opressão a vingança tumultuária, era impotente para exercer acção eficaz na sociedade geral. Veio isso mais tarde. Assim, o único poder que assegurava a unidade política era o poder do rei. A monarquia ovetense-leonesa fora como uma restauração da monarquia visigótica, entre todos os estados bárbaros a mais semelhante na índole e na acção ao cesarismo romano. Uma série de príncipes, senão distintos pelo génio, como Carlos Magno, todavia de valor e de energia não vulgares, tinha sabido manter a supremacia real, anulada gradualmente além dos Pirenéus pela sucessiva transformação das funções públicas em benefícios e dos benefícios em feudos. Entretanto à autoridade central faltava um arrimo sólido a que se encostasse; faltava-lhe uma classe média, numerosa, rica, inteligente, émula do clero pela sua cultura. Essa classe, como já advertimos, ainda simples embrião, só no século XIII começou a ser uma fraca entidade política, aliás rapidamente desenvolvida e avigorada. Desde aquela época é que a realeza aproveitou mais ou menos a sua aliança para domar as aristocracias secular e eclesiástica, como com o auxílio dela as monarquias de além dos Pirenéus conseguiram tirar ao feudalismo a preponderância, e quase inteiramente o carácter político.

Hoje é fácil iludirmo-nos, crendo ver nas revoluções e lutas do Ocidente da Península no decurso dos séculos VIII a XII a anarquia feudal, confundindo esta com a anarquia aristocrática. Não era a jerarquia constituindo uma espécie de famílias militares, de clãs ou tribos artificiais, cujos membros estavam ligados por mútuos direitos e deveres, determinados por um certo modo de fruição de domínio territorial, em que se achava incorporada a soberania com exclusão do poder público. Em vez disto, era o individualismo rebelando-se contra esse poder, contra a unidade, contra o direito. Quando as mãos que retinham o ceptro eram frouxas ou inabilmente violentas, as perturbações tornavam-se não só possíveis, mas, até, fáceis. A febre da anarquia podia ser ardente: o que não havia era a anarquia crónica, a anarquia organizada.

Eis as circunstâncias, que, ajudadas pelos desvarios da filha de Afonso VI, converteram o seu reinado num dos mais desastrosos períodos de desordens, de rebeliões e de guerras civis. A confusão vinha a ser tanto maior, por isso mesmo que faltava o nexo feudal. Eram tão ténues os laços entre o conde e o conde, o maiorino e o maiorino, o alcaide e o alcaide, o prestameiro e o prestameiro, o homem de mesnada e o homem de mesnada, e, depois, entre estas diversas categorias, que as parcialidades se compunham, dividiam ou transformavam sem custo, à mercê do primeiro ímpeto de paixão ou cálculo ambicioso. Deste estado tumultuário derivou a separação definitiva de Portugal, e a con solidação da autonomia portuguesa. Obra a princípio de ambição e orgulho, a desmembração dos dois condados do Porto e de Coimbra veio por milagres de prudência e de energia a constituir, não a nação mais forte, mas decerto a mais audaz da Europa nos fins do século XV. Dir-se-ia um povo predestinado. Quais seriam hoje de feito as relações do Oriente e do Novo Mundo com o Ocidente, se Portugal houvesse perecido no berço? Quem ousará afirmar que, sem Portugal, a civilização actual do género humano seria a mesma que é?

O conde Henrique pouco sobreviveu ao sogro: cinco anos escassos; mas durante esses cinco anos todos aqueles actos seus cuja memória chegou até nós indicam o exclusivo intuito de alimentar o incêndio das discórdias civis que devoravam a Espanha cristã. Nas lutas de D. Urraca, dos parciais de Afonso Raimundes e do rei de Aragão, qual foi o partido do conde? Todos sucessivamente; porque nenhum era o seu. O seu consistia em constituir um estado independente nos territórios que governava. E no meio dos tumultos e guerras em que ardia o reino, ele teria visto coroadas de bom sucesso as suas diligências, se a morte não viesse atalhar-lhe os desígnios junto dos muros de Astorga.

Mas a sua viúva, a bastarda de Afonso VI, era pela astúcia e ânimo viril digna con sorte do ousado e empreendedor borgonhês. A leoa defendeu o antro onde não se ouvia já o rugido do seu fero senhor, com a mesma energia e esforço de que ele lhe dera repetidos exemplos. Durante quinze anos lutou por conservar intacta a independência da terra que lhe chamava rainha, e quando o filho lhe arrancou das mãos a herança paterna, só havia um ano que a altiva dona curvara a cerviz ante a fortuna de seu sobrinho Afonso Raimundes, o jovem imperador de Leão e Castela. Era tarde. Portugal não devia tornar a ser uma província leonesa.

Se D. Teresa se mostrara na viuvez digna politicamente do marido, o filho era digno de ambos. O tempo provou que os excedia em perseverança e audácia. Anatureza dera-lhe as formas atléticas e o valor indomável de um desses heróis dos antigos romances de cavalaria, cujos dotes extraordinários os trovadores exageravam mais ou menos nas lendas e poemas, mas que eram copiados da existência real. Tal fora o Cid. Os amores adúlteros de D. Teresa com o conde de Trava, Fernando Peres, fizeram com que cedo se manifestassem as aspirações do moço Afonso Henriques. Os barões da província que tendia a constituir-se em novo estado achavam naturalmente nele o centro da resistência à preponderância de um homem que deviam considerar como intruso, e a quem a cegueira da infanta-rainha cedia o poder que dantes tão energicamente exercera. À irritação e inveja que a elevação desse estranho devia despertar no coração de cada um deles, ajuntava-se decerto a consideração das conseqüências inevitáveis da ilimitada preponderância do conde. Fernando Peres pertencia a uma das mais poderosas famílias da Galiza e a mais adicta ao moço soberano de Leão e Castela. Seu pai fora o aio e tutor do príncipe quando as paixões sensuais de D. Urraca o cercavam de sérios perigos. Nada mais natural do que resultar daquela preponderância a ruína da nascente independência do novo Estado.

O que se passava em Portugal era em resumido teatro o que pouco antes se passara em Leão. Ali, os amores de D. Urraca com o conde Pedro de Lara tinham favorecido as ambiciosas pretensões de Afonso Raimundes, concitando contra elas os ódios dos barões leoneses e castelhanos. Aqui, os amores de D. Teresa acenderam ainda mais os ânimos e trouxeram uma revolução formal.

Se na batalha do campo de S. Mamede, em que Afonso Henriques arrancou definitivamente o poder das mãos de sua mãe, ou antes das do conde de Trava, a sorte das armas lhe houvera sido adversa, constituiríamos provavelmente hoje uma província de Espanha. Mas no progresso da civilização humana tínhamos uma missão que cumprir. Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse um povo, cheio de actividade e vigor, para cuja acção fosse insuficiente o âmbito da terra pátria, um povo de homens de imaginação ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das vagas ou correr por cima delas envoltos no temporal, e cujos destinos eram conquistar para o cristianismo e para a civilização três partes do mundo, devendo ter em recompensa unicamente a glória. E a glória dele é tanto maior quanto, encerrado na estreiteza de breves limites, sumido no meio dos grandes impérios da Terra, o seu nome retumbou por todo o globo.

Pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos dias de poderio e renome, que nos resta senão o passado? Lá temos os tesouros dos nossos afectos e contentamentos. Sejam as memórias da pátria, que tivemos, o anjo de Deus que nos revoque à energia social e aos santos afectos da nacionalidade. Que todos aqueles a quem o engenho e o estudo habilitam para os graves e profundos trabalhos da história se dediquem a ela. No meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio. Exercitem-no os que podem e sabem; porque não o fazer é um crime.

E a arte? Que a arte em todas as suas formas externas represente este nobre pensamento; que o drama, o poema, o romance sejam sempre um eco das eras poéticas da nossa terra. Que o povo encontre em tudo e por toda a parte o grande vulto dos seus antepassados. Ser-lhe-á amarga a comparação. Mas como ao inocentinho infante da Jerusalém Libertada, homens da arte, aspergi de suave licor a borda da taça onde está o remédio que pode salvá-lo.

Enquanto, porém, não chegam os dias, em que o puro e nobre engenho dos que então hão-de ser homens celebre exclusivamente as solenidades da arte no altar do amor pátrio, alevantemos uma das muitas pedras tombadas dos templos e dos palácios, para que os obreiros robustos que não tardam a surgir digam quando a virem: "as mãos que te puseram aí eram débeis, mas o coração que as guiava antevia já algum raio da luz que nos alumia".