O Bobo/IX
O banquete que pôs termo ao memorável dia do ajuntamento solene dos barões e senhores de Portugal prolongou-se até alta noite. D. Teresa tinha aí aparecido rodeada de todo o esplendor real. Num estrado sobranceiro ao pavimento da sala, e debaixo de dossel formado das telas mais ricas saídas dos teares de Jaén e da Valência, a bela infanta viera presidir ao banquete dos seus ricos-homens. Assentada em uma cadeira, à qual o espaldar primorosamente lavrado de bestiães e arabescos e os braços e supedâneo dourados davam o aspecto de um trono, a rainha de Portugal, da mesa que tinha ante si e em que particularmente era servida, enviava ora a um, ora a outro cavaleiro notável por sua linhagem, influência ou renome, alguma das iguarias mais delicadas, que rapidamente faziam suceder umas às outras os peritos cozinheiros do paço de Guimarães, quase todos mouros, ou servos ou libertos. Estas provas de distinção eram sempre acompanhadas de graciosas mensagens, que lisonjeavam o amor-próprio dos nobres senhores. Escusado talvez fora dizer que semelhante distinção a mereciam só aqueles que no conselho, por seu voto ou opiniões, se haviam mostrado firmes na causa da mãe contra o filho. Para aqueles que, como Gonçalo Mendes, se tinham mostrado parciais do infante, apenas lançava a rainha um olhar rápido, em que se misturava a cólera e ao mesmo tempo o desprezo, como se previsse já a hora do triunfo e, por consequência, do castigo. D. Teresa, que desde a partida de seu filho se mostrara triste, abatida e irresoluta, parecia nesta noite reassumir toda a sua antiga energia. No seu rosto, banhado de uma alegria algum tanto forçada, conhecia-se-lhe o desejo de que lhe cressem o ânimo tranquilo ao aproximar da procela. Dir-se-ia, até, que intentava fazer sobressair a sua formosura, que os anos, os cuidados do governo e os trabalhos das longas guerras que sustentara contra D. Urraca, e depois contra o imperador, tinham assaz desbotado, mas que ainda faziam realçar os ricos trajos que naquele dia vestira. Eram estes um epitógio de grisisco orlado de peles mosqueadas, e apertado com um cordão entrançado de prata e seda de várias cores; uma coifa ou rede, adornada de pedras preciosas que lhe retinha as longas tranças; um colar de ouro, o qual lhe caía sobre a camisa de ranzal alvíssimo, que em pregas miúdas lhe vinha fechar na garganta; e um amplo manto de ciclatão vermelho, que pendente dos ombros lhe rojava pelo chão. Com este vestuário, e no porte e meneios altivos, a rainha trazia de certo modo à lembrança a nobre e majestosa figura de seu pai, o grande Afonso VI.
A causa desta repentina mudança estava nas novas que haviam chegado poucas horas antes. A audácia do infante, a licença desenfreada com que os seus homens de armas assolavam as vilas e honras do infantático, isto é, do que constituía propriamente o apanágio de D. Teresa, as violências que praticavam contra os vilões e homens de criação desses mesmos testamentos ou herdades, o furor com que derribavam os seus castros ou lugares fortificados, e sobretudo a intenção com que, segundo afirmavam os espias, o moço príncipe se acercava dos muros de Guimarães, e que eram nada menos do que lançar em prisão perpétua Fernando Peres e a própria mãe, tinham finalmente sufocado no coração desta a voz do amor materno.
Quando o conde de Trava, obedecendo às ordens que lhe transmitira o capelão-mor, se apresentou perante ela, os olhos de D. Teresa faiscavam de cólera e de indignação. Debalde Fernando Peres lhe ponderou os inconvenientes de arriscar a sua fortuna e, o que mais era, a liberdade ou a vida em uma batalha campal: a violência do carácter varonil da rainha que triunfara, ao menos momentaneamente, do mais profundo afecto, o amor maternal, não podia ceder às considerações da prudência. Declarou que a sua resolução inabalável era ir ao encontro dos rebeldes com os cavaleiros, besteiros e peões, pela maior parte estrangeiros [1], que de contínuo chegavam a Guimarães atraídos pelos grossos censos ou soldos que lhes oferecia o conde. Os instintos guerreiros de D. Teresa, que os anos e os reveses haviam amortecido, despertavam de novo vigorosos na hora em que era necessário encarar face a face os perigos que até este momento ainda pareciam remotos.
Assim, esta noite passava bem diferente daquela em que no meio de alegre sarau só a bela infanta, mau grado seu, se mostrara triste e aborrecida. Aqui eram os cavaleiros que pareciam inquietos e desconversáveis: os dois bandos bem sabiam que não tardava o dia em que se encontrassem novamente, não na mesa do banquete, mas no campo das lides, onde o escorrer do sangue nos ferros substituiria o escumar do vinho nas taças de prata. Para eles esta festa brilhante correspondia à ceia do algoz e do sentenciado debaixo das abóbadas de um cárcere na véspera do suplício. Qual era o saião? - qual a vítima? Eis o que ninguém sabia.
Mas talvez nenhum gesto dava mostras, não de melancolia mas de inquietação, como o do conde de Trava. De instante a instante ele volvia os olhos para o portal da sala de armas, como se esperasse alguém; e de feito um lugar à sua esquerda ficara vazio na esplêndida mesa ao começar do banquete. Era o do novo alferes-mor. Este, desde que se apartara do conde, ninguém mais o tinha visto.
Muito havia já que era noite, e as taças, que os escanções, correndo por detrás das longas fileiras de cavaleiros com os pichéis nas mãos, enchiam de novo apenas, eram esgotadas, começavam a fazer seu ofício: as frontes iam-se pouco a pouco desenrugando e soltando-se as línguas. Nos banquetes daquela idade rude e feroz às vezes o sangue corria como pospasto, e quase sempre a conclusão do festim era uma orgia infernal em que o convívio se tornava em cena abjecta de embriaguez. Não era raro em semelhantes ocasiões ver os paços dos nobres, e ainda dos reis, convertidos numa cousa hedionda e duvidosa entre a taberna e o prostíbulo, em que os filhos dos bem-nascidos mostravam que a distância moral, que eles supunham separá-los da mais vil gentalha, na realidade não existia. Se, porém, os longos e sanguinolentos homizios entre linhagem e linhagem se originavam facilmente das festas mais pacíficas, em meio das taças cheias pela mão de cordial hospitalidade, muito mais de recear era alguma rixa funesta entre homens que guardavam no coração, uns contra os outros, os mais profundos ódios humanos, os ódios dos bandos civis.
Estas considerações que haviam ocorrido ao conde ao perceber a conversação, no princípio lânguida, ir-se tornando viva e veemente; considerações em que não reparara a tempo, atento ao sistema que adoptara de esconder os seus receios e o perigo da sua situação com as aparências de tranquilidade, eram agora para ele motivo de sérios temores. A tardança, porém, do alferes-mor o inquietava ainda mais. A rainha não devia dar o sinal para acabar o festim sem que ele soubesse com certeza se tudo estava disposto para impedir a saída de Guimarães àqueles que a tentassem. As masmorras do castelo deviam povoar-se nessa noite de todos os ricos-homens da corte com quem o infante contava; mas a segurança deste golpe, que iria transtornar as esperanças do moço príncipe, dependia inteiramente da rigorosa execução daquilo que tinha ordenado a Garcia Bermudes.
Este entrou enfim na sala; mas em vez de se dirigir ao lugar que parecia haver-lhe sido guardado, rodeando a multidão de pajens enfileirados em pé atrás de seus senhores e passando por entre o tropel dos sergentes, escanções, uchões, e outros ovençais, que atendiam ao serviço do esplêndido banquete, buscou aproximar-se do conde, mas de modo tal e colocando-se em sítio onde dele fosse visto, sem que os cavaleiros, nos quais as amplas libações do pospasto começavam a produzir ruidosa alegria, o pudessem observar. Dali esperou que Fernando Peres se apercebesse da sua chegada.
Como ele viera, não da sala de armas, porém da galeria contígua, que comunicava exteriormente com ambos os aposentos seguindo todos os ângulos e sinuosidades daquela face do edifício, correu algum tempo antes que o conde reparasse no cavaleiro; tanto mais que a sua atenção era distraída pelo que se passava no topo da mesa fronteiro a ele.
Era aí que o Lidador se vira obrigado a ir assentar-se quando voltara com Fr. Hilarião de falar ao homem do zorame: os outros lugares estavam já povoados de cavaleiros, e por um acaso bem desagradável ele se achara ao lado de Veremudo Peres, de quem no conselho recebera injúrias que retribuíra com mão larga. Assim durante muito tempo conservou-se em silêncio; mas o respeitável exemplo de Fr. Hilarião, que vivia numa horrorosa incerteza sobre as verdadeiras dimensões da hémina [2], incerteza que se convertia em confusão completa ante as copas de prata de um jantar opíparo, o haviam incitado a imitar o santo monge; e quando o banquete começou a aproximar-se do seu termo, Gonçalo Mendes, com aquela filosofia e equanimidade, que inspira às vezes o sumo da vide, parecia arrostar alegremente com o olhar malévolo da rainha e com as demonstrações de favor que dava aos senhores seus parciais, favores que antes eram uma injúria para aqueles que se mostravam favoráveis às pretensões do infante, que uma recompensa da fidelidade a ela. O licor de Baco, como diria um poeta da Arcádia, fizera, porém, mais do que isso: fizera soltar a língua do Lidador, e, sem saber como, ele se achou envolvido numa disputa com Veremudo Peres, a qual chamara a atenção não só dos cavaleiros que se achavam mais próximos, mas até do conde de Trava e de D. Teresa.
Foi por tal motivo que ninguém reparou na entrada do alferes-mor. O gesto carregado deste exprimia uma tristeza profunda, e o seu olhar incerto dava indícios de que lhe revoavam na alma graves cuidados. Quais estes eram sabe-os já o leitor. Garcia Bermudes, antes de correr as torres, adarves e barbacãs, e de ter disposto tudo para que nenhum dos cavaleiros que deviam assistir ao banquete pudesse afastar-se do castelo e do burgo, viera ter com Dulce no lugar aprazado. A declaração que ela lhe fizera de que amava Egas Moniz tinha apagado no seu coração o último raio de luz. Esse momento fora terrível, mas ao menos o seu amor desprezado podia converter-se em ódio, e a sua desesperação em sede de vingança. Entre ele e Dulce não estava a indiferença, estava outro amor - um rival, um cavaleiro da linhagem de Riba de Douro! As suas paixões convertiam-se todas numa só o ódio; e por esta como que lhe resfolgava o espírito. Era esperança tenebrosa e sanguinolenta a que lhe sorria, mas, enfim, era uma esperança!
Fernando Peres tentava escutar o que se dizia na outra extremidade da mesa, quando sentiu puxarem-lhe pela orla do brial. Voltou-se: era Tructesindo. O esperto pajem tinha notado quão frequentes vezes seu tio lançara os olhos inquietos para a porta: isto lhe provara que esperava alguém, e a falta do alferes-mor que esse alguém era ele. Atento então a ver se o descobria no meio dos sergentes que entravam e saíam da sala vira-o chegar. O modo por que se postara atrás dos escudeiros confirmou-lhe as suspeitas. Hesitou algum tempo, mas finalmente resolveu-se a sair da fileira dos pajens e a chegar-se ao conde.
— Meu senhor e tio - disse o rapaz em voz baixa -, vede Garcia Bermudes que despreza o seu lugar de cavaleiro.
E acrescentou: - Não o faria eu, se como ele calçasse acicates dourados.
— Por essa nova que me deste os mereces, meu sobrinho - respondeu Fernando Peres no mesmo tom. - Tê-los-ás mais cedo do que o esperas, se bem desempenhares o que te vou ordenar.
Fitara os olhos no alferes-mor: o sinal que este lhe fez desoprimiu o coração do conde.
— Tructesindo - disse ele ao pajem -, aproxima-te da rainha o mais que puderes, e dize a qualquer dos seus donzéis de modo que ela te ouça: é tempo de acabar o festim.
Daí a pouco, o mordomo da cúria descendo do estrado, onde estava em pé a pouca distância de D. Teresa, acercou-se do topo da mesa dos cavaleiros, e parando junto de Fernando Peres:
— Senhor conde de Portugal e Coimbra - disse -, nobres ricos-homens destes senhorios, infanções de além-Douro e aquém-Minho, cavaleiros, prestameiros e alcaides, a mui excelente rainha dos Portugueses vos roga espereis o romper da alvorada para voltardes a vossos castelos e solares. Os chefes de linhagem [3], que possuem paços ou bairros coutados e honrados no burgo de Guimarães, não recusarão guarda por uma noite aos de seu sangue; os outros serão albergados neste mesmo castelo. São as ordens que recebi de minha graciosíssima senhora.
Ninguém respondeu; porque D. Teresa ergueu-se imediatamente e, fazendo uma leve cortesia aos cavaleiros que se tinham posto em pé, saiu do aposento.
Este acontecimento preveniu talvez algum caso funesto entre o Lidador e Fernando Peres. A sua disputa política tinha chegado a tal ponto que debalde havia tentado pôr-lhe termo o mui pacífico abade beneditino. A confusão, porém, que produziu na sala tanto a oferta da rainha como a sua repentina partida separou os dois contendores, a quem a cólera ia brevemente fazer esquecer o lugar onde se achavam.
Os senhores e cavaleiros apenas a rainha partira se haviam espalhado pela sala do banquete e pela sala de armas. O sino de recolher ainda tardaria a soar na torre alvarrã do castelo, e a maior parte deles saiu pouco a pouco do paço e desapareceu pelas ruas torcidas do burgo, onde nas pousadas dos de sua ou de alheia linhagem foram no meio do jogo e da embriaguez concluir o festim subitamente interrompido. Eram os costumes do tempo.
O conde de Trava ficara. Quando viu quase ermo o aposento, dirigiu-se para Garcia Bermudes, que entregue a distracção melancólica se encostara à balaustrada que dividia em parte o estrado da rainha do resto da sala. Chegando junto dele, o conde, pondo-lhe a mão sobre o ombro, perguntou em voz baixa:
— Estão de feito tomadas todas as portas do burgo? Não poderá sair cavaleiro algum?
— Nenhum - respondeu o alferes-mor. - Os roldas e sobrerroldas giram nas quadrelas das barbacãs: vinte besteiros de pé, lançados entre estas e as barreiras e junto das pontes levadiças da cárcova, vigiam exteriormente: um troço de corredores almogaures corre no campo em volta do castelo e do burgo. Ardiloso e valente precisa de ser o que tentar evadir-se.
— Excelente! - replicou o conde sorrindo com a ideia de reter em lugar seguro uma parte dos seus inimigos. - Agora - prosseguiu ele - dize-me ainda: o nobre alferes-mor, que enquanto nós folgávamos nas delícias de um banquete velava por nós lá fora como leal cavaleiro, não viu luzir no céu, por entre as trevas da noite, a sua estrela feliz?
— A minha estrela é maldita - respondeu o cavaleiro com aspecto carregado. - Não há para mim luzir no céu a esperança! Felicidade? Não é no mundo que eu a hei-de encontrar!
— Quem sabe? - tornou o conde, em cujas faces passara fugitivo sorriso, e, voltando-se para Tructesindo, que se conservava a alguma distância com os olhos no chão, continuou: - Vem cá, meu gentil pajem, hoje será uma noite aziaga para traidores, porque será a da justiça, mas de justiça recta e imparcial: a recompensa corresponderá aos méritos. Repete o que de relance me disseste ao começar do banquete: busquemos achar o fio desta teia infernal.
Então o pajem narrou o que percebera da conversação entre Gonçalo Mendes, o homem do zorame e o abade do Mosteiro de D. Muma. A sua narração era incompleta, mas ouvira o nome de Egas Moniz, e que este viera do campo do infante. Quem duvidaria já de que existisse uma vasta conjuração dentro do próprio recinto de Guimarães? Que outros motivos trariam ali um dos mais ilustres cavaleiros da linhagem do implacável e manhoso aio de Afonso Henriques? Estas reflexões ocorriam de tropel ao conde escutando a narração do seu pajem.
Quando este chegou a proferir o nome de Egas, um grito fugiu dos lábios do alferes-mor. Fernando Peres alçando os olhos encontrou os dele, que pareciam faiscar. Era a cólera, o ciúme, a sede da vingança? Era talvez tudo. O conde interpretou este grito e este olhar pelos próprios pensamentos.
— Tens razão, Garcia - disse ele. - Indignas-te de ver que homens, cheios de benefícios e honras pela rainha de Portugal, venham nos seus paços dela urdir o trama dos seus pérfidos desígnios. Mas estão em meu poder, e nada há aí que os salve. Possa eu encontrar ainda em Guimarães o audaz cavaleiro que ousou entrar na caverna do tigre! O algoz e o cepo selarão com sangue a fiel amizade dos infames. Egas, não te esconderá teu disfarce! Gonçalo Mendes, não te valerá nem a espada nem o orgulho de rico-homem! Monge hipócrita, não te salvará tua mortalha de homem vivo. Roma o que pede é ouro, quando defende o seu rebanho de garnachas e cogulas, e a tua cabeça não a cedera eu agora a troco de mil áureos mouriscos.
Assim a profunda indignação, que o conde acreditara ler no gesto do alferes-mor, saía como uma torrente do seu próprio coração.
Depois reflectiu um momento, e reassumiu outra vez o seu aspecto habitual de serenidade. Não fora para vibrar vãs palavras de ameaça que se aproximara de Garcia Bermudes. Após breve pausa prosseguiu gravemente e em voz assaz alta para ser ouvido no outro extremo, onde ainda restava um pequeno grupo de cavaleiros:
— Senhor alferes-mor, esperai aqui as ordens da nossa mui excelente rainha, que tem de comunicar-vos importantes negócios. Eu voltarei a chamar-vos, quando assim lhe aprouver.
Proferidas estas palavras saiu da sala, e encaminhou-se para os aposentos interiores pela mesma porta por onde a rainha saíra.
Apenas Fernando Peres desapareceu, Garcia Bermudes travou do braço de Tructesindo, e em tom solene disse-lhe:
— Pela minha fé juro que o pajem Tructesindo amanhã cingirá sobre o brial a espada de cavaleiro se cumprir o que lhe vou dizer, e se jurar também guardar sobre isso perpétuo silêncio.
— Juro, juro! - interrompeu o donzel. - Dizei depressa o que pretendeis. Seja o que for, e venham as esporas douradas. Era a ideia fixa do diabólico pajem.
Garcia Bermudes arrancou violentamente uma bolsa de couro dourado que, segundo a moda do tempo, lhe pendia do cinto: abriu-a; tirou de dentro um pequeno pergaminho, e entregando ao donzel uma e outra cousa continuou:
— Vai, e busca encontrar o incógnito que ontem falava a sós com Gonçalo Mendes e Fr. Hilarião. Afirmas que lhe viste o rosto: o seu nome já o sabes. Faze vigiar o mosteiro e a pousada do senhor da Maia: não poupes nem diligências nem almorabitinos, que essa bolsa vai bem recheada. Se o descobrires entrega-lhe este pergaminho: que o mostre aos vigias e roldas, e eles o deixarão sair da cerca do burgo, o que sem isso lhe fora impossível. Em recompensa disto, dize-lhe que Garcia Bermudes exige que amanhã, duas horas antes do sol-posto, esteja com suas armas e a cavalo no souto que se dilata além do vau do Madroa; e que se não o fizer é desleal e covarde.
— A cousa é dificultosa - replicou o malicioso donzel. - E se hoje não o descobrir?
— Demónio! - respondeu o alferes-mor batendo o pé no chão de impaciência. - Procura-o toda a noite, toda a manhã, todo o dia! É preciso que o encontres, se queres a nobre dignidade de cavaleiro. Entendes? Sem isso, enquanto Garcia Bermudes for alferes-mor, conta que não a obterás.
Não havia remédio: Tructesindo agarrou na bolsa e no pergaminho. Depois atravessou vagarosamente a sala, levantando a touca pelo lado de trás com o índex e coçando o toutiço. Ele tinha razão: a empresa era dificultosa.
Garcia Bermudes caiu então no seu habitual cismar. "Ao menos - pensava o cavaleiro nunca ela dirá que a minha vingança foi vil e desleal."
Daí a pouco uma voz que soava da porta dos aposentos interiores veio despertá-lo dos seus devaneios. Era o conde que com aspecto risonho dizia:
— A mui excelente rainha ordena venha imediatamente perante ela o nobre alferes da hoste de Portugal.
Notas
[editar]- ↑ A denominação d’extrangeiros dada aos soldados da rainha e do conde de Trava parece na verdade impropria, sendo elles pela maior parte gallegos, leoneses, etc. Todavia a historia dos godos os designa já pelo nome de alienigenae. Veja-se o que dissémos nos ultimos paragraphos do cap. III.
- ↑ A émina era uma certa medida pela qual se devia regular a ração de vinho que tocava diariamente a cada monge segundo a regra de S. Bento. Sobre a capacidade d’esta medida houve grandissimas questões que, como é de suppôr, nunca os benedictinos puderam bem resolver.
- ↑ A principal pessoa de qualquer parentella. É provavelmente esta a unica significação portuguesa da palavra chefe.