O Cabeleira/XVIII

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XVIII


Chegou emfim o momento da extrema provação.

Ainda não tinha decorrido um mez, quando se ouviram os duros sons das crebras marteladas, que annunciavam à população do Recife o proximo e fatal fim dos delinquentes. Levantava-se a forca no Largo-das-cinco-pontas.

Pela segunda vez este instrumento de supplicio sobresaltou os animos e encheu de dor os corações na villa heroica.

Por grandes que sejam as offensas que a sociedade tenha recebido de um dos seus membros, a razão publica sente-se abatida diante da sua punição por meio da morte natural.

A memoria dos primeiros supplicios estava quasi de todo apagada do espirito do povo. Realizaram-se elles durante a administração do governador Henrique Luiz. Haviam decorrido da sua realização trinta e oito annos, tempo mais que bastante para que se oblitere da tela do pensamento a imagem de semelhantes representações.

Os pernambucanos lembravam-se porém ainda em 1776 do muito que custára a esse governador sentenciar á morte alguns criminosos.

Uma provisão régia de data de 20 de outubro de 1735 tinha creado em Pernambuco a junta-de-justiça-criminal, a mesma que em 1776 julgou o Cabelleira, seu pai e os demais réos que sabemos.

Havia-se reunido em conformidade da citada provisão na casa da camara aquella junta, composta do governador, dos ouvidores de Pernambuco e Parahyba, do juiz-de-fóra de Olinda, e de um dos ouvidores que tinham servido na primeira das sobreditas provincias. Apezar das razões mais de humanidade, do que de estado, expostas por Henrique Luiz, a maioria condemnára os criminosos a serem justiçados no patibulo. Henrique Luiz, o benemerito, o modelo dos governadores portuguezes, passára pelo desgosto de lavrar a sentença de morte que feriu primeiro a elle que aos condemnados.

No julgamento do Cabelleira e dos demais presos a inviolabilidade da pessoa humana fôra melhor comprehendida e respeitada pela junta, da qual só um membro opinára pela pena capital.

Assim, no espaço de trinta e oito annos o nivel da consciencia moral subira em tres dos membros dessa terrivel commissão; mas por desgraça baixára no mais importante delles. José Cesar, desprezando o voto dessa maioria, digna de figurar nos tribunaes modernos, sentenciára á pena ultima os infelizes com o apoio de um voto contra tres, excedendo assim as attribuições do governador a quem a citada provisão conferia unicamente, no caso de empate entre os quatro membros, o direito de desempatar. Por onde se vê que entre estes dous governadores, ambos bem intencionados, embora as suas intenções fossem contrarias entre si e em seus effeitos, não mediavam sómente trinta e oito annos, mas tambem a barreira que separa das trevas a luz, do poder arbitrario, que destróe, o sentimento liberal, que edifica.

Henrique Luiz, posto que mais afastado do que seu collega, representava o direito novo de que o mesmo Portugal do seculo XVIII trasladou em seu codigo, que o honra, uma parcella no seculo XIX com applauso de todas as nações cultas. Esta parcella é a que afirma e consagra a inviolabilidade da pessoa humana.

Si alguem houvesse dito então a José Cesar que sua patria em menos de um seculo riscaria de sua legislação a pena que elle impunha com tamanho arbitrio a tres desgraçados a quem faltava a instrucção mais elementar, teria ouvido o poderoso agente da realeza metropolitana classificar como uma utopia dos sonhadores do seculo XVIII esta brilhante conquista das nossas luzes. Os tempos vingam-se, e si a humanidade algumas vezes, como as aves, rasteja e se enloda nos charcos da terra, purifica-se, como ellas, nas chuvas celestes, e eleva-se a regiões serenissimas d’onde vê a grandeza do Omnipotente nos milhões de mundos que povoam a immensidade; a sua sabedoria na harmonia que os prende; a sua bondade no sem-numero de leis, assim physicas, como moraes, que protegem os corpos e dignificam os espiritos.

Na hora em que se construia o cadafalso, uma mulher que representava cincoenta, mas na realidade não tinha senão trinta e seis annos de idade, pedia por tudo quanto ha sagrado, a uma das sentinellas do palacio permissão para fallar ao governador.

Joanna havia chegado de Santo-Antão no dia anterior, e de noite soubera que o filho e o marido tinham sido condemnados á morte. Não lhe permittiram ver os entes que pertenciam mais a ella, representante do coração por dobrado direito, do que á justiça que nesse momento exprimia uma vontade poderosa e apaixonada.

Pela manhã Joanna corrêra ao palacio para cahir aos pés de José Cesar, e rogar-lhe que lhe deixasse ver o filho. A sentinella, em resposta, perguntára-lhe simplesmente:

— Quem é vossê para fallar ao sr. governador?

— Sou a mãi do Cabelleira. Será possivel que meu filho morra sem que eu o tenha visto antes?

— Ponha-se no Largo-das-cinco-pontas, que o verá subir á forca á volta de uma hora da tarde.

— Meu filho! gritára ella em soluços. Pois hei de ver meu filho morrer na forca!

Joanna cahira com a face sobre a lage do pavimento, carpindo como louca a sua desventura.

Tendo ouvido os ais, lamentos, exclamações e gritos daquella consternada mãi, mandára José Cesar inquirir a causa do alarido. Quando lhe disseram a desoladora verdade, ordenára que em continente a mãi infeliz fosse posta em custodia até que se cumprisse a execução.

Joanna mal pudera ouvir a intimação deste cruel mandado.

— Não, não! gritára, atirando-se para fóra do palacio em estado de puro desespero.

Alguns soldados correram a pegal-a, mas em vão, porque, empregando esforços sobre a natureza, pudera Joanna escapar, não sem deixar primeiro despedaçado nas mãos de um o lençol em que estava envolta, nas de outro parte dos seus cabellos que haviam de todo embranquecido. Aquella pobre mulher fôra condemnada pela adversidade a padecer angustiados momentos, para os quaes não acharemos semelhantes no catalogo das tragedias humanas.

Ella fôra pôr-se junto da masmorra, d’onde Cabelleira, Joaquim e Theodosio, que ahi se achavam em grande recado, logo que houvessem recebido os confortos da religião, tinham de partir para o lugar do supplicio.

A esse tempo já as circumvizinhanças desse lugar se achavam occupadas por grandes massas de povo.

Quando no relogio da cadeia soou a hora fatal, viu-se desfilar entre fortes columnas militares, e a multidão os condemnados. O silencio e a tristeza que augmentam a solemnidade destes espectaculos indescriptiveis, eram de momento a momento perturbados pelos lamentos de Joanna.

— Meu filho vai morrer enforcado! Ah! meu Deus, vós bem sabeis que elle não teve culpa — dizia ella com a voz entrecortada de souços.

José Cesar, cercado dos seus privados e lisongeiros viu da varanda do palacio, outr’ora povoado pelo vulto homerico de Mauricio de Nassau, typo do mais fidalgo liberalismo que ainda transpôz aquelles umbraes, com uma especie de recolhimento qual si estivesse presenciando uma procissão, desfilar o funebre prestito, que em seu trajecto percorreu as ruas do Crespo, Queimado, Livramento, Direita, Pateo-do-terço, e finalmente parou no Largo-das-cinco-pontas ao pé do terrivel artefacto. Era uma hora da tarde.

O juiz nomeado pelo governador para assistir á execução em conformidade do disposto na provisão régia, ordenou que o escrivão repetisse a leitura da sentença. Os delinquentes ouviram pela vigesima vez, com sincera contricção, esse padrão do absolutismo colonial.

Finda a leitura viu-se o Cabelleira apparecer, quasi de subito, no estrado da forca, ao lado do carrasco.

Elle não havia vacillado na rapida ascensão nem dava mostras de abatido.

Seu rosto estava pallido, mas sereno. A cabeça tinha sido despojada do bello distinctivo a que o mancebo devia a alcunha com que seu nome chegou à posteridade.

Com um olhar longo e rapido abrangeu a multidão que se apinhava em derredor do patibulo, e proferiu, sem titubiar, com voz ligeiramente alterada, estas palavras que a tradição recebeu como herança, para transmittir ás gerações vindouras:

— Morro arrependido dos meus erros. Quando cahi no poder da justiça, meu braço erajá incapaz de matar, porque eu já tinha entrado no caminho do bem...

— Meu filho! meu filho! gritou nesse momento Joanna do meio do povo por entre o qual buscava em balde abrir caminho para chegar ao pé do cadafalso.

A esta exclamação, o Cabelleira voltou-se confuso e commovido. Um longo suspiro escapou-lhe do peito oppresso da subita afflicção. Seus labios tremulos deixaram passar estas precisas e pontuaes palavras:

— Adeus, mamãisinha do meu coração!

No mesmo instante, aos olhos da multidão profundamente abalada, a scena transformou-se como por occulto machinismo. O infeliz mancebo, que, mal acabára de fallar, tinha sido rudemente impellido do estrado para o vacuo, pendia da corda assassina, tendo sobre os hombros o carrasco que apertava com as mãos cobardes o laço suffocante. Scena barbara que enche de horror a humanidade, e cobre de vergonha e luto, como tantas outras, a historia do periodo colonial!

No meio da multidão esta scena de morte reproduziu-se no mesmo instante unicamente modificada na fórma. Entre os braços de umas mulheres do povo, pobres mãis de certo, Joanna acabára de exhalar o ultimo suspiro. O coração tinha-lhe instantaneamente estalado de dor.

Poucos momentos depois ao cadaver do Cabelleira reuniram-se os de Joaquim e Theodosio, seus companheiros na vida e na morte, na historia da provincia e nas reminiscencias do povo, de presente quasi de todo apagadas pela mão do tempo.

A noticia de tão triste exemplo atravessou as remotas paragens onde repercutia a fama do grande matador, e passou ainda além nas azas ligeiras dos versos já citados, aos quaes se devem reunir estes dous ultimos, dos trovistas pernambuca­nos:

Quem tiver seus filhos
Saiba-os ensinar;
Veja Cabelleira
Que vai a enforcar.

Adeus, ó cidade,
Adeus, Santo-Antão,
Adeus, mamãisinha
Do meu coração.

A execução do Cabelleira e seus co-réos não atalhou as de­sordens e delictos, a que se refere a provisão; não trouxe terror nem emenda aos malfeitores.

Os crimes atrozes, então muito frequentes, si têm dimi­nuído, ainda não cessaram de todo. As folhas publicas regis­tram todos os dias por infelicidade nossa muitos delles, perpe­trados no Norte, no Sul e na propria côrte do Imperio.

De que serviu pois a provisão régia? Em que consistiu o proveito da execução dos tres infelizes no regime colonial; e dos que os precederam, ou se lhes seguiram neste e no regime do Imperio?

Ah! meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado não ser mais que um crime juridico, de feito não corrige nem moraliza. O que ella faz é ennegrecer os codigos que em suas paginas a estampam, por mais liberaes e sabios que sejam como é o nosso; é abater o poder que a applica; é escandalizar, consternar e envilecer as populações em cujo seio se effectua.

A justiça executou o Cabelleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorancia e na pobreza.

Mas o responsavel de males semelhantes não será primeiro que todos a sociedade que não cumpre o dever de diffundir a instrucção, fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? [1]

Si a sociedade não tem em caso nenhum o direito de applicar a pena de morte a ninguem, muito menos tem o de applical-a aos réos ignorantes e pobres, isto é, aquelles que commettem o delicto sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade. O Cabelleira póde acaso comparar-se em culpabilidade a Lapomerais, medico illustrado, ou a esse negociante allemão ou americano, Thomaz ou Thompson, que, com intuito de enriquecer do dia para a noite, occasionou com a perda do paquete Moselle a morte de oitenta, e os ferimentos de cem passageiros?

Condemna-se á forca o escravo que mata o senhor, sem se attender a que, rebaixado pela condição servil, paciente do açoite diario, coberto de andrajos, quasi sempre faminto, sobrecarregado com trabalhos excessivos, semelhante creatura é mais propria para cego instrumento do desespero, do que competente para o exercicio da razão. Ainda em 28 de abril do corrente anno, em uma cidade da provincia das Alagôas um destes infelizes padeceu o supplicio capital. Por honra da civilização, um dos primeiros orgams da imprensa do norte, o Diario-de-Pernambuco lavrou contra essa cobardia juridica o seguinte protesto: « Registramos este acontecimento com a magoa que sôe causar áquelles que amam a patria e a humanidade a continuação entre nós da barbara pena de morte, que infamando, nem ao menos corrige. »

Arrastam os delinquentes á barra dos tribunaes ou ao pé dos juizes para serem interrogados sobre as circumstancias dos crimes que commetteram. Não devia ser assim. O interrogatorio principal devia ter por objecto os precedentes do culpado, o gráo da sua instrucção litteraria, a sua educação, os seus teres.

Á pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve a sociedade attribuir o maior numero dos crimes que pune e dos erros e faltas que não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca foi nem será jámais um elemento de elevação; ella foi e será sempre um elemento de degradação social.

A riqueza, meu amigo, é um dos primeiros bens da vida.

Quando ella resulta de um trabalho honesto, e servido por uma ambição nobre e ponderada, não podem della redundar males. Ao reverso, de uma riqueza assim adquirida, provém quasi sempre beneficios não só para aquelle que a possue, mas tambem para a sociedade.

Quanto mais medito sobre este assumpto, mais me parece que o evangelho que ensina a pobreza voluntaria, considerada pela moderna sciencia um absurdo economico, e um impossivel social, é antes um codigo de moral practica sujeito á revisão da sabedoria dos tempos, do que o corpo de leis de uma religião immutavel. A prova de que não estou em erro, eu a vou achar no exemplo que nos dão os actuaes ministros do evangelho, os quaes, muito diferentes dos pescadores da Galiléa e da Samaria que, descalços e humildes, o ensinaram gratuitamente a todas as gentes, empregam hoje todos os meios de tornar-se ricos e poderosos, e não desestimam a opulencia, começando pelos que occupam os primeiros lugares na hierarchia ecclesiastica.

Não sirvam estas verdades de consternação aos pobres.

Sirvam-lhes antes de estimulo para que trabalhem, cultivem a terra, as industrias, as artes, e possam, por seu proprio esforço, vir a ser independentes e felizes.

Notas do autor[editar]

  1. A seu tempo saberás, meu amigo, as minhas idéas a respeito da organização do trabalho no Brazil.