O Caminho de Damasco/I

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Eram duas horas da tarde de um dia de junho, dia de magnífico inverno, nem frio, nem chuva, nem sol. Nem sol, é maneira de dizer; o astro-rei dominava o céu com todo o esplendor dos seus raios; mas os raios eram temperados e brandos. Não era certamente um sol para aquecer lagartixas, mas não o podia haver melhor para quem atravessasse pedestremente o Campo da Aclamação.

A Rua do Ouvidor tinha, então, o movimento do costume. Gente parada em frente ou sentada dentro das lojas, gente que descia, que subia, homens, senhoras, de quando em quando uma vitória ou um tílburi, tudo isso dava à principal rua do Rio de Janeiro um aspecto animado e luzido. Viam-se aqui e ali alguns deputados, trocando notícias políticas ou admirando as senhoras que passavam, coisa muito mais deliciosa que uma discussão a respeito do orçamento da guerra, assunto em que, nesse momento, estava falando o respectivo ministro na Câmara. Também ali estava uma grande parte da áurea juventude — la jeunesse dorée —, comentando o acontecimento do dia ou encarecendo a beleza da moda. Estranharia aquela designação quem reparasse que entre os rapazes havia também algumas suíças grisalhas e outras totalmente brancas. Mas essas suíças podiam responder-lhe que a mocidade não é um aspecto, mas um fato interior, e que o gelo pode cobrir a cumeada da serra sem descer à planície. Planície, neste caso, é sinônimo de coração.

Perto da Rua da Quitanda, entre a livraria Garnier e o escritório do Jornal do Commercio, três moços elegantemente vestidos trocavam algumas últimas palavras. Um deles tinha de seguir para baixo, outro para cima, e o terceiro ia entrar num tílburi, que o estava esperando. O primeiro usava suíças pretas; o segundo a barba toda; o terceiro apenas tinha um bigode castanho esmeradamente encaracolado.

— Está assentado, disse o das suíças, às dez horas à porta do Alcazar.

— Quem chegar primeiro, espera, observou o da barba toda.

— Sim, tornou o primeiro, mas não é bom que, fiado nisso, algum de vocês se demore muito.

O do bigode aprovou esta emenda, mas acrescentou que pedia alguma exceção para si.

— É-me necessário ter cuidado com a velha, disse ele.

O das suíças abanou a cabeça com impaciência.

— Realmente, Aguiar, não sei o que quer dizer essa tua obediência passiva. És um homem feito, e vives como uma freira!

O da barba toda, que conhecia bem o profundo abismo que medeava entre o amigo e uma freira, não pôde deixar de sorrir a este reparo do rapaz das suíças, aliás tão informado como ele das façanhas de Aguiar.

Aguiar explicou como pôde a situação em que se achava para com a velha, e de novo prometeram todos se acharem à porta do Alcazar, às 10 horas da noite.

Justamente no momento em que ia despedir-se, entrou na Rua do Ouvidor, vindo da Rua da Quitanda, uma vitória puxada por um cavalo castanho e governada por cocheiro ainda rapaz, bianco vestito. O desdém com que este indivíduo ia olhando para os peões poderia fazer crer que levava no carro a rainha filho de Peleu; tal ilusão, porém, não podia durar desde que se lançasse um olhar para dentro do carro e se visse molemente recostada uma mocinha loura e magra, cujas feições pareciam vir do céu, mas cujo exterior e aparato estavam delatando o mais delicioso purgatório.

Naturalmente, as lágrimas dos pecadores eram ali cristalizadas, porque a dama trazia nas orelhas, no colo e nos dedos umas fulgentíssimas pedras com que ia mui galante e concertada. Olhava preguiçosamente para as pessoas que passavam à esquerda do carro, mas sem mover a cabeça, e com um ar tão friamente aristocrático, que justificava bem a arrogância do cocheiro e a curiosidade dos passantes.

Quando ela viu os três amigos de que há pouco falamos, sorriu e inclinou levemente a cabeça, enquanto o das suíças pretas parecia fazer um sinal convencionado. A dama respondeu com um gesto; tudo isto sem que o carro parasse.

— Bem; a Candinha está avisada, disse o das suíças; é inútil mandar lá.

E depois de uma nova promessa, cada um dos amigos tomou a direção em que ia.

Dos três, é Aguiar o que mais nos interessa acompanhar. Vai de tílburi, mas não importa; chegaremos a tempo de entrar com ele em casa.