O Caminho de Damasco/II
Jorge Aguiar, no tempo em que se passa esta narrativa, contava os seus vinte e três anos de idade. No ano anterior, voltara de S. Paulo com um diploma de bacharel na algibeira e uns amores no coração. Poderia dizer que trazia também alguma ciência jurídica na cabeça, se o meu intento não fosse uma escrupulosa fidelidade histórica. Aguiar aprendeu apenas o necessário para de todo em todo não atar as mãos aos lentes; mas o pouco que aprendeu ficou na serra de Cubatão, sem lhe deixar saudades. Os amores ainda os trouxe até à barra do Rio de Janeiro, mas com certeza não desembarcou com eles. Também, não valiam a pena; eram amores bem pouco sérios para virem acolher-se à sombra da família.
Bem desventurado seria ele se tivesse de ganhar o pão com o que aprendera na academia. Mas a fortuna, que uns dizem ser cega, naquele caso teve uma vista de lince, adivinhando que era necessário afiançar a vida a quem não era capaz de ganhá-la. A família de Jorge tinha de sobra com que lhe manter a existência e satisfazer os caprichos. Desta maneira podia ele dormir tranqüilamente e acordar em paz.
Nem tudo, porém, eram rosas na existência de Aguiar. Havia um ponto negro na limpidez do céu azul. Não era o pai. O pai de Jorge tinha-lhe aquele amor cego que não vê senões no objeto querido e era a seu respeito um tanto doutor Pangloss: achava uma tal ou qual necessidade nos desvarios do rapaz. Além disso, acariciava o sonho, aliás plausível, de o ver ministro de Estado. Para isso, disse ele, era necessário dar alguns meses à vida livre; depois do que, chamá-lo-ia à razão e buscaria encartá-lo na primeira assembléia provincial que lhe ficasse a jeito.
Tais eram os planos e sentimentos do velho Silvestre Aguiar, cuja mocidade parecia não ter sido inteiramente capuchinha.
O ponto negro era a mãe de Jorge. Dona Joaquina era uma senhora austera e respeitável, mas impertinente, rusguenta e despótica, além de ser dotada de uma energia que não dizia muito com os seus cinqüenta e dois anos. Não havia memória em casa de Aguiar de que a senhora D. Joaquina estivesse algum dia calada durante uma hora inteira. Calava-se, quando dormia, mas como dormia pouco, e acordava às cinco horas da manhã, dava apenas uma escassa trégua à família.
Não se precisava ter olhos muito perspicazes para conhecer que a senhora dona Joaquina era o verdadeiro dono da casa. Silvestre pertencia àquela raça de homens pacatos para quem este mundo é uma ante-sala do céu. Não se irritava nunca, não conhecia o que fosse impaciência ou tédio. Amou a muitas mulheres, rezavam as crônicas, mas nenhuma lhe captou tanto afeto como "a sua gorda Pachorra".
— A natureza, dizia ele, tem rios impetuosos e plácidos ribeiros. Se todos fôssemos rios, não havia ribeiros na espécie humana. É bom que haja uma e outra coisa. A Providência quis que, ao pé de uma cachoeira despenhada como a Joaquina, houvesse um regato manso como eu. Nisto é que está a harmonia.
Devo dizer que Silvestre, quando casou com D. Joaquina, não lhe conhecia a facúndia, nem a impetuosidade. E é possível que ainda nesse tempo a boa senhora não tivesse desenvolvida a vocação. Foi um namoro começado por ocasião das festas da coroação. Um parente de Silvestre deu um jantar, onde se encontraram as duas famílias, a dele e a de Joaquina. Era fama que esta moça não casaria nunca, porque andavam já por cinco ou seis os pretendentes que ela despedira com uma rispidez anunciadora dos seus hábitos futuros. Grande foi, pois, a admiração dos pais, quando três meses depois, indo Silvestre pedir-lhes a mão de D. Joaquina, receberam dela uma resposta afirmativa.
— Hão de ser felizes, dizia a mãe; ela que até agora recusou todos os casamentos, é porque Deus lhe guardava este.
Efetivamente, foram felizes. Silvestre dava-se perfeitamente com o gênio da mulher. D. Joaquina irritava-se, às vezes, com a impassibilidade do marido, e soltava contra ele os seus discursos; mas, como Silvestre não articulava sequer uma queixa ou censura, a senhora D. Joaquina acabava, como ele mesmo dizia consigo, por "meter a viola no saco".
Esta D. Joaquina, pois, era o ponto negro da vida de Jorge. Às dez horas, quando muito, devia o rapaz recolher-se a casa. Silvestre advogava a causa do filho. Observava que o rapaz não podia ter uma vida de freira; mas a palavra freira, tão indiferente na boca de outra pessoa, na de dona Joaquina dava um discurso de dez páginas in-fólio. O marido calava-se e a ordem da senhora D. Joaquina prevalecia.
Jorge obedeceu durante muito tempo às ordens da mãe, mas os conselhos dos amigos foram pervertendo o seu espírito reto e casto. Jorge entrou um dia às 11 horas da noite; a mãe, que até então se não deitara, veio em pessoa abrir-lhe a porta.
— Oh! mamã! exclamou ele, espantado.
D. Joaquina não disse palavra, fechou a porta e subiu silenciosamente adiante dele. Foi o único lance em que deixou de falar, e realmente nunca fora mais sublime em sua vida.
Daí em diante, não ousou Jorge transgredir as ordens da mãe; mas como os passeios, teatros e festas não se podiam combinar com esta obediência, o jovem bacharel arranjou uma chave sua, e por meio dela, batia a linda plumagem.
Além disso, alcançava facilmente convite para saraus e bailes, objeto em que a boa velha consentia na ausência do filho.
Com esses e outros pretextos, que em circunstâncias especiais lhe ocorriam, conseguira o nosso Jorge Aguiar iludir a vigilância e as ordens da velha. Quem se não enganava era o pai, que o via sair muitas vezes, e enxergava a verdadeira razão dos seus numerosos convites; mas o bom Silvestre aplaudia os escrúpulos do filho e tirava deles um bom agouro para a vida política do rapaz.