O Caminho de Damasco/III

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Quando Jorge Aguiar chegou a casa, D. Joaquina dava as suas últimas ordens para uma grande porção de doce de coco, e tomava conhecimento da tarefa que dera de manhã a duas crias empregadas em costurar. Silvestre jogava o gamão com o padre Barroso, enquanto Clarinha tocava ao piano umas variações alemãs.

Esta Clarinha, que entra em cena sem se fazer anunciar, era uma sobrinha de D. Joaquina, e portanto prima de Jorge. Era ainda criança, quando perdera a mãe; e o pai, que dois anos antes se apaixonara por uma italiana que viera ao Rio de Janeiro, com o infundado pretexto de que era cantora, acompanhou a dama dos seus pensamentos, e andava agora pela Itália em sua companhia. Tanto valia estar morto para a pobre órfã. D. Joaquina recebeu em casa a sobrinha e tratava-a como se fora filha sua.

Tinha esta moça uma não vulgar formosura, a que dava realce um ar de profunda melancolia. A melancolia era natural; nascida para viver em tal ou qual abastança, vira o pai esbanjar os cabedais herdados, e perdera a mãe na idade em que mais precisava dela. Depois, foi estouvadamente abandonada pelo pai e obrigada a receber os favores dos tios. Isto, reunido à índole da moça, fazia que raras vezes lhe assomasse aos lábios um riso prazenteiro.

Clarinha vingara-se dos golpes que lhe dava o seu mau destino, instruindo-se e aprendendo a trabalhar com uma docilidade que encantava a senhora D. Joaquina. Esta boa senhora dizia que a sobrinha havia de ser a herdeira da sua competência na arte de governar a casa. Efetivamente, era difícil achar em tão verdes anos — 18 contava ela — tanta seriedade, prudência, atividade e ordem. Os momentos vagos, dava-os a moça ao estudo da música e da língua francesa, porque o seu fim era poder lecionar algum dia, e achar nessa profissão os meios de subsistência de que viesse a carecer.

D. Joaquina aprovava esta previsão da sobrinha, mas procurava dissipar-lhe tais receios, dizendo que enquanto ela vivesse, e ainda depois que se finasse, a sobrinha não precisaria de nada. Além disso, estava moça, e um casamento viria pô-la ao abrigo de toda a necessidade.

— Um casamento? dizia Clarinha, com ar triste; isso não é para mim.

— Por quê?

— Quem quererá casar comigo?

— Quem não for tolo, dizia a boa velha. Vejam lá se é fácil achar uma esposa como tu hás de ser!

Clarinha abanava a cabeça e ficava pensativa.

O procedimento da moça confirmava as suas disposições celibatárias. Parecia indiferente a todos os homens, não se enfeitava para ir aos bailes, quando ia a eles não dançava, raras vezes chegava à janela, e era de todo surda aos louvores que a sua beleza lhe granjeava. Usava ordinariamente roupas escuras por lhe parecerem cores tristes; os modos eram modestos e acanhados; falava pouco, e, como disse, raras vezes ria.

Estava ela a tocar piano na sala, a pedido do padre Barroso, que era doido por música, e dizia com aquele ar que a natureza só concede aos gamonistas intrépidos, que era bom suavizar musicalmente as derrotas do comendador Aguiar. O certo é que o dono da casa ganhava poucas partidas ao padre.

— Dois e ás, disse o comendador, lançando os dados e batendo numa das tábulas do padre.

— Tire o cavalo da chuva! respondeu o padre, chocalhando os dados no copo. Agora é que vai ver o que são elas. Preciso de umas quadras.

— Homem, jogue e deixe-se de conversa.

O padre lançou os dados.

— Quadras! disse ele.

Silvestre Aguiar coçou o nariz, enquanto o implacável padre, depois de lhe bater em duas tábulas, empalmava o lenço encarnado na mão, e assoava-se com estrépito.

— Isto sem rapé não vai, observou ele.

— O moleque ainda não viria? disse Aguiar. Não sei que descuido foi este meu de não ter comprado ontem.

Clarinha cessou de tocar; ia a levantar-se para saber se efetivamente o moleque não tinha voltado, mas o tio disse-lhe que não era preciso.

Nesse momento, entrou Jorge na sala; beijou a mão ao pai, apertou a do padre Barroso, e foi cumprimentar a prima.

— Então? disse o padre a Silvestre em voz baixa; por que não casam estes dois?

— Se eles quiserem, não lhes ponho dúvidas, respondeu Silvestre; mas são coisas que se não obrigam. Creio que não se namoram. Demais, o rapaz anda a desasnar-se.

— Há de me perdoar, disse o padre, cuido que anda a perder-se. Olhe, que estes hábitos de mocidade rara vez se perdem. Coíba os desvarios de Jorge; não lhe hão de dar bom proveito.

— Eu fui o que ele vai sendo, respondeu Silvestre, e todavia ninguém me vence em bom comportamento. Deixe estar, padre, que ele há de seguir os exemplos do pai.

Jorge trocou algumas palavras com a prima, e retirou-se para o seu aposento, enquanto a moça continuava a tocar e os dois velhos decidiam a partida.

Entrou, então, na sala um novo personagem: o dr. Marques, homem de seus quarenta e quatro anos, corado, vigoroso, um tanto grisalho de barba e dos cabelos. Era o médico da família; conhecia o comendador quase desde a infância, e entretinha laços de nunca desmentida amizade. Ele e o padre eram os dois mais íntimos da casa.

— Chega a propósito, disse o padre. Traz a caixa?

— Pois não, disse o recém-chegado depois de ir apertar a mão a Clarinha.

— Graças a Deus; venha de lá uma pitada.

— Duas, duas! emendou Silvestre; há de sofrer dois ataques, um por bombordo e outro por estibordo.

Ambos os gamonistas esfregaram os dedos no lenço, e sacaram da bolsa do dr. Marques duas grossas pitadas. O padre inseria a sua em ambas as ventas, e com o lenço sacudia o pó que lhe caíra na camisa, enquanto o comendador, carregando com o dedo polegar na venta direita, introduzia toda a pitada na venta esquerda.

Marques deixou os dois velhos entregues ao gamão e dirigiu-se ao piano, na ocasião em que a moça se ia levantar para deixar a sala.

— Não quer tocar mais? perguntou Marques.

— Tenho que fazer... murmurou Clara em voz baixa e sem levantar os olhos.

Marques lançou um rápido olhar para os dois gamonistas, e vendo que estavam entretidos com os dados, murmurou ao ouvido da moça:

— E a resposta?

— Deixe-me sair... respondeu Clarinha.

E caminhando rapidamente para a porta, desapareceu da sala. Marques ficou ao pé do piano com o ar embaçado que o leitor naturalmente imagina, enquanto o padre Barroso, deitando os dados, exclamava alegremente:

— Coitadinho, comendador, coitadinho!