Saltar para o conteúdo

O Caminho de Damasco/V

Wikisource, a biblioteca livre

Eu creio que o leitor dispensa uma descrição da festa em que Jorge figurou como um dos mais destacados. Foi uma das primeiras ceias que se têm dado nos hotéis desta cidade. Acabou, quando a aurora anunciava os primeiros albores, e os varredores das ruas concluíam a sua tarefa.

Jorge deixou-se entrar alguma coisa pelo vinho, e foi para casa um tanto perturbado da razão. Felizmente, ninguém o viu entrar; dirigiu-se para a cama, onde dormiu até meio-dia, tendo tido cuidado de ordenar ao criado, confidente das suas aventuras, que dissesse à velha que ele havia passado mal a noite. A boa senhora ficou muito aflita quando o criado lhe transmitiu esta notícia, mas ordenou que o não fossem acordar; era esse justamente o desejo do filho.

Essas aventuras foram muitas e muitas vezes repetidas. Jorge completou a sua educação com tal arte que adquiriu logo um respeitável nome entre os mais tresloucados da terra fluminense. Não havia banquete, passeio, loucura, em que Jorge de Aguiar não tivesse parte conspícua.

O pai dava-lhe algum dinheiro; Jorge não se detinha em o gastar às mãos largas. Nos primeiros dias, ainda o dinheiro podia ocorrer às necessidades, mas não tardou que a receita ficasse muito abaixo da despesa. Quando este fenômeno se dá, quer nas finanças de um indivíduo, quer nas de um Estado, surge uma coisa que se chama deficit. Jorge achou-se senhor de um deficit. Tinha dois recursos: o trabalho, ou o crédito. O crédito tinha a grande vantagem de dispensar o trabalho. Jorge consertou as suas finanças deixando algumas dívidas em aberto ou recorrendo à bolsa de alguns usurários.

Desta maneira, conseguiu não perder a posição brilhante, que adquirira, nem os afagos desinteressados de algumas damas do tempo. O processo destas damas era geralmente uniforme. Manifestavam por ele uma louca e desenfreada paixão, e durante quinze ou vinte dias falavam-lhe de uma vida celeste e romântica, de uns amores puros e recatados. Não hesitavam em sacrificar-lhe antigos adoradores e modernos pretendentes. Jorge subia ao sétimo céu. Em tese, não acreditava no amor, nem delas nem de ninguém; mas, na hipótese, lisonjeava-se de ter fixado uma borboleta volúvel e doida.

Essa crença, toda gratuita, sofria algum abalo no vigésimo-primeiro dia, quando a borboleta fisgada enviava ao namorado uma conta da Notre Dame, uma letra vencida, ou um simples pedido de aluguéis atrasados. Jorge pagava largamente esta desilusão.

Não pagava só estas. Na sociedade em que ele ocupava um dos primeiros lugares, havia também uma casta de homens, cujas doutrinas comunistas tinham o único defeito de só se aplicarem às algibeiras alheias. A de Jorge era uma algibeira fácil e pronta; além disso, o filho do comendador tinha certo amor-próprio, e por nenhum preço queria que lhe chamassem pinga.

Esses e outros golpes, quem os sofria era o pai, que pagava as contas, as letras e as leviandades do filho. No fim de alguns meses, achou o comendador que a aprendizagem de Jorge já lhe ia custando caro; em todo o caso, devia estar feita.

— Bem, disse ele consigo, agora já ele há de estar enfadado da vida solta, e pode cuidar das coisas sérias. É um grande erro querer meter os rapazes em coisas sérias antes de eles se terem enfadado das coisas frívolas: quem não erra na mocidade, erra na velhice. Tratemos de o arranjar.

Era tarde.

Jorge estava calejado no vício; tinha andado mais em poucos meses do que outros em muitos anos. Era impossível chamá-lo à razão. Silvestre arranjou os meios brandos, mas nada fez; lançou mão dos meios enérgicos, e a resistência que encontrou fez-lhe conhecer todo o mal da situação que ele mesmo criara.

D. Joaquina não deixou escapar a ocasião de fazer ao marido ásperas e merecidas censuras. O rapaz já não lhe obedecia; a boa senhora achou a causa desta resistência na docilidade com que Silvestre suportou os primeiros erros do filho. Eu poderia dar um extrato do discurso com que D. Joaquina descreveu esta situação perante o marido abatido e envergonhado; mas arriscava-me a não acabar o conto, do mesmo modo que ela não acabou o discurso, porque só se calou quando lhe faltou o ar.