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O Caminho de Damasco/VI

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Durante estes meses de loucuras de Jorge, a situação do dr. Marques pouco tinha adiantado, mas adiantara alguma coisa. O pretendente expusera à tia de Clarinha os seus desejos depois de dois meses de hesitação, e a boa senhora, aprovando as intenções do médico, só impôs a condição de que a sobrinha o amasse.

— Ah! minha senhora, disse Marques, a este respeito não posso afiançar nada. Não sei se sou ou não amado: D. Clarinha é tão acanhada que não deixa campo a investigações deste gênero..

— Pois bem; redargüiu D. Joaquina, eu tomo a mim a incumbência de consultar-lhe o coração. Imponho esta condição, porque conheço bem Clarinha; sei que é uma rapariga de muito juízo, e digna de escolher o seu próprio esposo. Em circunstâncias diversas, eu é que lhe havia de dar o noivo.

D. Joaquina cumpriu a palavra. Perguntou a Clarinha se ela nunca havia pensado em casar.

— Casar? eu? perguntou a sobrinha.

— Sim, tu.

— Não, nunca pensei.

Clarinha disse estas palavras em tom frio e indiferente; todavia, pareceu a D. Joaquina que esta idéia a entristecera.

— Dar-se-á caso que já o ame? disse a velha consigo mesma.

Correram alguns minutos de silêncio.

— Sabes que alguém deseja casar contigo? disse enfim a mulher de Aguiar.

— Casar comigo? perguntou a moça, abrindo muito os olhos.

— Sim, contigo.

— Titia está brincando.

— Brincando por quê? Não mereces ser pretendida por alguém?

Clarinha não respondeu.

— E essa pessoa, é muito nossa conhecida.

— Ah!

— Já reparaste?

Clarinha levou a mão ao coração.

— Não, murmurou ela.

— Não adivinhas quem seja?

— Não posso adivinhar.

— O dr. Marques.

Clarinha empalideceu. A boa velha não tirava os olhos dela para ver se lhe lia no rosto os sentimentos do coração. Mas verdade, verdade, D. Joaquina não sabia traduzir fisionomias. A comoção de Clarinha, qualquer que fosse a causa, pareceu-lhe que era de bom agouro para o médico.

— Ama-o, não tem dúvida, disse ela consigo. Tudo está arranjado.

Clarinha recobrou a palavra no fim de dez minutos.

— Titia, murmurou ela; a senhora sabe o que me convém, e eu estou às suas ordens.

— Ordens, não, disse D. Joaquina; isto não é uma ordem; é uma consulta.

— O dr. Marques, disse Clarinha, é um excelente homem...

— E um excelente marido? concluiu D. Joaquina rindo.

Clarinha não respondeu.

O silêncio da moça foi interpretado como um assentimento, e a esposa do comendador imediatamente deu parte ao médico do resultado da sua missão.

Clarinha, apenas ficou só, correu ao quarto e debulhou-se em lágrimas — lágrimas silenciosas e sufocadas, para que ninguém lhas ouvisse nem suspeitasse sequer. Depois, tirou de uma gaveta um retrato, contemplou-o longo tempo, e beijou-o repetidas vezes. Quando reapareceu na sala tinham desaparecido os vestígios das lágrimas. Estava triste; mas como esse era o natural estado da moça, ninguém procurava saber-lhe a causa.

Quando Marques soube do resultado da missão de D. Joaquina não pôde esconder o seu regozijo.

— Acho, porém, conveniente, disse a mulher de Aguiar, que o senhor ouça da própria boca de Clarinha a confissão, da qual eu só alcancei metade.

Não hesitou Marques em sondar por si próprio o coração de Clarinha. Era ele um homem honesto e de nenhum modo queria casar com ela sem ter a certeza de que ela não o faria obrigada.

O resultado desta nova experiência foi mais satisfatório ainda que o da primeira. A moça não lhe confessou amor com os termos de um coração apaixonado; mas teve palavras tão afetuosas para o médico, que o casamento foi logo decidido por parte da senhora D. Joaquina.

Silvestre Aguiar teve participação de que o casamento da sobrinha devia realizar-se dentro de um mês e meio. Pediu-se-lhe o consentimento apenas como uma formalidade, porque a decisão de D. Joaquina era bastante para o caso. Aguiar nada tinha que opor; aplaudiu, pelo contrário, a união.

— Eu sempre dizia, observou ele, que este doutor era um grande velhacão. Esta habilidade com que nos bifa a pequena é prova de que você nasceu com um sentido de mais.

Não ouviu tão alegremente o padre Barroso, que era considerado pessoa da família, esta notícia, que lhe foi dada com o pedido de aprovação.

— Eu não tenho nada que desaprovar, disse o padre, mas... a Clarinha gosta dele?

— Isso não se pergunta! exclamou D. Joaquina.

O padre olhou para a sobrinha do comendador; e no rosto dela leu uma satisfação tão pronunciada, que não fez mais do que encolher os ombros e dar os parabéns à noiva e aos tios.

Mas nessa mesma tarde, achando-se a sós com a moça, perguntou-lhe o padre:

— Que é isso, Clarinha? então aquele amor?...

— Aquele amor morreu, respondeu a moça tristemente; era um amor sem esperança, e amores destes, ou morrem ou matam. Era talvez melhor que me matasse; mas Deus quis que morresse. Não me queixo; obedeço ao meu destino.

O padre abanou a cabeça.

— Não, Clarinha, disse ele, esse amor não morreu: tu ainda o sentes e isso é mau, minha filha; é mau que cases com um homem, amando a outro...

— Oh! não! não! disse Clarinha. Afirmo-lhe que morreu; e se não morreu, juro-lhe que há de morrer.

— Juras! pobre criança! sabes o que estás jurando?

Duas lágrimas rebentaram dos olhos da moça. Viu-lhas o padre; e cingiu-a ao peito.

— Isso nunca! disse Clarinha. De que me serviria ser mulher de um homem que não me ama, nem pode amar?

— Sim, Jorge está perdido, murmurou o velho sacerdote com ar triste.

— Vou casar com um homem sério, continuou a moça; não lhe tenho amor, é verdade; mas tenho-lhe certo afeto e respeito; estou que seria feliz — tanto quanto o pode ser uma pessoa desgraçada. Peço-lhe que nada diga a este respeito; far-nos-ia mal a todos.

Barroso abraçou a moça.

— Clarinha, tu és uma boa alma. Merecias ser feliz! A culpa disto é de teu pai. Se ele não te abandonasse, talvez não viesses a amar teu primo, porque esse amor nasceu da convivência. Teu pai...

— Perdoe-lhe, disse a moça; meu pai tem má cabeça, mas é bom coração. Vamos; promete que não tentará desfazer este casamento?

— Se o quer, prometo.

— Obrigada! disse a moça, beijando a mão ao padre.

Foi este quem celebrou o casamento. O bom velho tremia na ocasião de proferir as palavras sagradas. Depois, quando a cerimônia acabou, disse ao noivo em voz baixa e procurando reter uma lágrima que lhe tremia na pálpebra:

— Faça-a feliz, que ela o merece.

Jorge assistiu ao casamento, fez um cumprimento banal à noiva, disse quatro ou cinco graças chulas a alguns dos rapazes que assistiam à cerimônia, e foi acabar a noite no Alcazar.

Saltemos agora uns onze meses. Todos os personagens desta história estão ainda vivos. O comendador continua a jogar o gamão com o padre; a facúndia de D. Joaquina tem perdido com os anos; quanto a Jorge, desfruta a reputação de libertino criada à custa do pai. Silvestre procurou todos os meios de arrancar o filho à carreira funesta em que ele mesmo o lançara, mas era impossível; a obra estava feita.

Alguma coisa havia conseguido Aguiar; conseguira dar-lhe um emprego, a ver se ele contraía hábitos de trabalhar. O rapaz viu no emprego mais uma fonte de renda e apenas lhe concedia algumas horas vagas. Assinava o ponto às 9 horas (o que já era uma correção) e retirava-se da repartição às onze. Não faria isso sempre, para não acostumar mal o Estado; deixava de lá ir muitas vezes. Não constava, porém, que nessas folgas estivesse incluído o dia primeiro do mês.

Marques era feliz; encontrara na mulher o ideal que havia sonhado: uma boa caseira, afetuosa, cheia de desvelo e respeito. Clarinha não era feliz; mas também não era desgraçada. O marido era um homem honesto, que vivia por ela e para ela, e procurava todos os meios de lhe fazer uma vida de rosas. Doía-lhe, é verdade, uns longes de melancolia que a moça nunca pudera apagar da fronte; mas isso, dizia ele, era natureza.

— Fui sempre assim; é meu modo. Nunca me conheceu outra, creio eu.

— É verdade que não, respondia o médico; mas se eu pudesse vencer esse modo...

— Eu sou feliz, dizia a moça com um sorriso triste.

Uma noite, o comendador Aguiar, que raríssimas vezes ia ao teatro, e tinha neste assunto as mesmas idéias de 1840, resolveu ir ver uma peça no Ginásio. A mulher não foi; detestava o teatro. Aguiar comprou o competente bilhete e entrou para a platéia. No fim do ato, saiu ao saguão e encontrou um amigo.

— Tu aqui? disse este. É coisa rara.

— É verdade, respondeu o velho. Também sou gente; quis ver estas coisas novas. E tu?

— Eu ainda me não aposentei. Onde estás?

— Nas cadeiras.

— Vem ao meu camarote.

Aguiar foi para o camarote do amigo que era na segunda ordem. Levantou-se o pano e a peça continuou. No meio do ato, abre-se a porta do camarote contíguo àquele em que estava o comendador, e entra uma mulher. Pelo desgarre das maneiras e aparato do luxo, não era difícil reconhecer nela uma das damas da moda. Voltaram-se para ela todos os olhos, assestaram-se os binóculos e lunetas, e durante uns cinco minutos o espetáculo não esteve no palco, mas na sala. Inútil dizer que a dama anônima não tinha outro juízo, entrou no meio do ato para chamar a atenção de todos: era uma vaidadezinha inocente, que seria ridícula, se não fosse um recurso de ofício.

Silvestre olhou para ela como toda a gente. Logo atrás da dama entrou um rapaz elegante, com o rosto avermelhado, e meio trôpego.

Aguiar reteve um grito.

Era Jorge.

Trêmulo e fulo de raiva, Silvestre levantou-se e cravou os olhos no filho. Este, porém, não vira o movimento do vizinho; correu os olhos pelos camarotes fronteiros e sentou-se ao lado da dama, mas encoberto por ela.

Era o mais que ele podia conceder ao decoro.

O comendador continuava de pé, com os olhos no filho, que ficou justamente em frente dele. Jorge, depois de assestar o binóculo à cena e alguns camarotes, assentou-se preguiçosamente na cadeira, e foi então que viu o pai.

Estremeceu.

Silvestre não lhe tirava os olhos de cima. Duas vezes, Jorge afastou os seus, mas duas vezes os dirigiu de novo ao pai, até que, levantando-se, pegou no chapéu e saiu.

Aguiar não esperou que acabasse o espetáculo.

Voltou para casa, perguntou se o filho já havia chegado; responderam-lhe que sim. Mandou-o chamar ao seu quarto, e o rapaz não se deteve; foi ter com o pai e arrojou-se-lhe aos pés.

O comendador lançou-lhe em rosto o seu procedimento, e declarou-lhe que, se não mudasse de vida, era obrigado a pô-lo fora de casa.

O rapaz retirou-se para o quarto envergonhado, irritado, mas ainda não arrependido. Não acusava a fatalidade que o levou a encontrar o pai no teatro, onde nunca ia. Imaginou se seria denúncia de algum desafeto, fez mil planos e dormiu profundamente até à hora do almoço.

O velho Aguiar referiu ao padre a cena do teatro, e pediu-lhe conselho para o caso em que o filho se não emendasse.

O padre refletiu alguns instantes.

— Não sei que conselho te dê, disse ele; o melhor é ver se o estróina se emenda. Queres que eu lhe fale?

— Sim, fala-lhe.

— A culpa é tua, comendador; tu mesmo o perdeste com as tuas facilidades. Não te disse muita vez, que essa idéia de o deixar viver à rédea solta era má? O resultado foi este.

O padre Barroso mandou dizer a Jorge que o esperava em casa. O recado causou algum espanto ao rapaz: Que lhe teria de dizer o padre? Suspeitou logo a verdade.

Apesar da resolução que tomou de não aceder ao convite do padre, Jorge foi à casa dele. O padre já o esperava há muito. A casa era modesta; os móveis singelos e encanecidos no serviço.

O padre estava diante de uma escrivaninha, sentado numa velha cadeira de couro, de alto espaldar; em frente, tinha aberto um volume in-fólio, que o bom velho lia com atenção e recolhimento. Não se moveu, quando entrou na sala o filho do comendador, conduzido pelo criado. Fez um gesto a este, que se retirou, e continuou a ler até ao fim da página.

Depois, fechou o livro, convidou o rapaz a sentar-se ao pé dele, e perguntou-lhe:

— Jorge, até quando quer continuar esta vida?

Jorge não respondeu. O padre contava com o silêncio, e continuou:

— Seu pai fundava muitas esperanças no senhor. Desvelou-se em lhe dar um meio de vida e uma posição na sociedade. Tudo isto lhe desfez o senhor, entregando-se a uma vida libertina. Quando seu pai conheceu o mal, este era quase irremediável. Seu pai, entretanto, não supunha que o senhor chegasse ao ponto de dar o espetáculo de ontem à noite. Imagine, se pode, a dor e a vergonha que lhe causou.

Calou-se o padre, por alguns instantes, e continuou:

— Ainda é tempo; nem tudo está perdido. Pode salvar-se; deve salvar-se.

— Sr. padre Barroso, disse Jorge, eu não nego que a minha vida tem sido um pouco livre; mas eu não faço nada do outro mundo.

— Bem sei, bem sei, redargüiu o padre; tudo o que o senhor faz é deste mundo; e neste mundo é que se fazem as piores coisas...

— Mas eu não faço nada que mereça emenda...

O padre fez um gesto de impaciência.

— E o escândalo de ontem à noite? disse ele.

— O que houve ontem à noite foi um acaso.

— Um homem sério não se expõe a estes acasos.

Jorge franziu a testa.

— Oh! escusa de fazer gestos de estranheza; eu sou velho, sou rude e sou sacerdote; tenho o direito de lhe dizer a verdade. O senhor é um homem doido, e é o menos que lhe posso dizer.

O padre proferiu estas palavras em voz alta e intimativa. Jorge sentiu, a seu pesar, a influência da autoridade do bom velho. Não lhe respondeu. Barroso insistiu em obter dele a promessa de que procuraria carreira e triunfaria dos maus hábitos contraídos.

Jorge refletiu algum tempo e respondeu:

— Pois bem, prometo emendar-me.

— É de coração?

Jorge hesitou.

— É, disse ele depois de algum tempo.

Não era de coração, mas o bom padre era um homem sincero; acreditava firmemente na sinceridade dos outros.

— Tanto melhor, disse ele. Emende-se, Jorge; verá que ganha com isso. Calcule a alegria que dará a seus pais. Quando me lembra...

O velho suspirou.

— Quando se lembra? repetiu Jorge.

— Quando me lembra, continuou Barroso, que você podia ser hoje um homem feliz ao lado de uma mulher feliz... de uma mulher que o amou...

— Uma mulher? perguntou Jorge. Quem era?

O padre ia a dizer o nome de Clarinha; mas lembrou-se repentinamente o perigo que podia haver nessa declaração, em vista do atual estado da moça.

Calou-se.

— Quem é essa mulher, repetiu Jorge?

O velho levantou-se sem responder.

Jorge olhava para ele e procurava na memória algum vestígio que lhe indicasse a mulher a quem o padre aludia. Não se lembrou de ninguém. Insistiu com o padre para que lho dissesse.

— De que serviria isso? respondeu o velho sacerdote; o bem que ela lhe podia fazer é já impossível...

— Impossível?

— Sim, impossível.

— Por quê?...

— Porque... morreu.

Jorge não acreditou que a pessoa de quem se tratava houvesse morrido, segundo dizia o padre.

— Mas se morreu, objetou ele, que mal há em dizer-me o nome dela? Espere... trata-se... querem ver... que essa moça é... Clarinha?

O padre abanou a cabeça.

— Não, não me engano, disse consigo o estróina, é ela!

— Não importa saber quem seja, disse Barroso; voltemos ao nosso ponto; o que lá vai, lá vai. Prometeu-me já emendar-se; está disposto a emendar-se?

Jorge teve o pudor de não repetir uma promessa que não estava disposto a cumprir; mas estendeu-lhe a mão com um gesto que parecia corresponder à pergunta do padre.

— Deus o ilumine, disse este. Vamos, faça que eu não morra sem o ver reabilitado. Fui eu que o batizei; não me deixe morrer com a idéia de que não pude salvar pela segunda vez uma alma que me foi confiada.

O padre disse estas palavras com paternal brandura, Jorge correspondeu a elas com uma aparência de humildade. Estava ansioso por sair. Despediu-se e saiu.