O Cemitério dos Vivos/I/II
Os Primeiros Dias
(de 29-12-19 a 4-1-20)
Eu entrei na Seção Calmeil, seção dos pensionistas, na segunda-feira, 28 de dezembro. O inspetor da seção é um velho português de perto de sessenta anos, que me conhece desde os nove. Ele foi em 90, com meu pai, nomeado escriturário das colônias da ilha do Governador, exerceu as funções de enfermeiro-mor da Colônia Conde de Mesquita. As suas funções eram árduas, porquanto, ficando ela a dois quilômetros e meio da sede da administração, ele arcava com toda a responsabilidade de governar uma centena de loucos, numa colônia aberta para um grande campo, cheio de vetustas mangueiras, a que o raio e o tempo tinham desmanchado os maravilhosos quadriláteros, um dentro do outro, formando uma alameda quadrangular, que devia ser soberba quando intacta, aí pelos tempos de Dom João VI, que a conheceu, pois o edifício principal dela tinha sido uma das muitas casas de recreio que o bom e gordo rei tinha pelos arredores do Rio.
Ainda vi um curral de pedra, que mais parecia uma fortaleza, e um enorme pombal, alicerçado em pedra, mas construído de tijolos enormes e bem queimados, com as casuchas e pouso de entrada dos pombos feitos de um ladrilho grande, quase quadrangular, que certamente eram, ladrilhos e tijolos, de origem portuguesa.
Na ilha não havia pedra, a não ser granito em franca decomposição, esfoliando, de modo que curral e pombal foram pedreiras que forneceram material para reparos e acréscimos nos edifícios das duas colônias.
Dias, desde esse tempo, e parece que já mesmo antes, nunca largou esse ofício de pajear malucos. Não é dos mais agradáveis e é preciso, além de paciência e resignação para aturá-los, uma abdicação de tudo aquilo que faz o encanto da vida de todo o homem. É ele, por assim dizer, obrigado a viver no manicômio, só podendo ir ter com a família, ou o que com isso se parece, a longos intervalos, demorando-se pouco no lar. Ouvir durante o dia e a noite toda a sorte de disparates, receber as reclamações mais desarrazoadas e infantis, adivinhar as manhas, os seus trucs e dissimulações — tudo isto e mais o que se pode facilmente adivinhar, transforma a vida desses guardas, enfermeiros, num verdadeiro sacerdócio.
Estive mais de uma vez no hospício, passei por diversas seções e eu posso dizer que me admirei que homens rústicos, os portugueses, mal saídos da gleba do Minho, os brasileiros, da mais humilde extração urbana, pudessem ter tanta resignação, tanta delicadeza relativa, para suportar os loucos e as suas manias. Nem todos são insuportáveis; na maioria, são obedientes e dóceis; mas os poucos rebeldes e aqueles que se enfurecem, de quando em quando, são por vezes de fazer um homem perder a cabeça. Tratarei deles mais minuciosamente. Pois o meu Dias, apesar dos gritos, dos gestos de mando, é um homem talhado para pastorear doidos, tanto ele como Santana, cuja seção é mais trabalhosa, mas que eu deixei, não porque ele não me tratasse bem, o que ele me fez espontaneamente, mas para ter às ordens a biblioteca da Seção Calmeil, que eu descreverei devagar.
Outra coisa que me fez arrepiar de medo na Seção Pinel foi o alienista. Se entre nós, no Rio, houvesse uma universidade, eu poderia dizer que ele havia sido meu colega, porquanto, quando ele freqüentava a Escola de Medicina, eu passeava pelos corredores da Escola Politécnica.
Nunca travamos relações, mas nós nos conhecíamos. Ele, porém, não se deu a conhecer e eu, no estado de humilhação em que estava, não devia ser o primeiro a me dar a conhecer.
Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante de novidades, do vient de paraitre, das últimas criações científicas ou que outro nome tenham.
Dei-me muito com o irmão, cuja morte muito lamento; mas não posso deixar de dizer essa minha inocente opinião que, talvez, possa parecer maldosa. Garanto que não é.
Logo ao entrar na seção, no meado do dia da segunda-feira, notei que a biblioteca tinha mudado de lugar. Mudei a roupa, pois meu irmão me apareceu com outra de casa. Esperei o Dias, que me marcasse o dormitório, e sentei-me na biblioteca e estava completamente desfalcada! Não havia mais o Vapereau, Dicionário das Literaturas; dois romances de Dostoiévski, creio que Les Possédés, Les Humilliés et Offensés; um livro de Mello Morais, Festas e Tradições Populares do Brasil. O estudo sobre Colbert estava desfalcado do primeiro volume; a História de Portugal, de Rebelo da Silva também, e assim por diante. Havia, porém, em duplicado, a famosa Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
Olhei as fisionomias e, tanto aqui, como na outra seção, eu me surpreendi de encontrar tantas fisionomias vagamente conhecidas. Umas me pareciam de antigos colegas de colégio, de escola superior, de repartição, do Exército, de cafés, de festas; mas não me animava a falar-lhes, pois me olhavam com ar estúpido e parado, que eu detinha o primeiro impulso de perguntar a cada um:
— O senhor não me conhece?
O engraçado é que aqueles que eu não conhecia prontamente, é que vinham a mim falar-me; e não veio um só, vieram muitos, e todos me trataram com afeto e respeito, conquanto me caceteassem, lendo o que eu escrevia ou lia, querendo o meu jornal, pedindo-me cigarros, não me deixando de todo sossegar e aproveitar esse descanso que o álcool e as apreensões da minha atribulada vida me dão.
No dia seguinte à minha entrada na seção e no outro imediato, fui à presença do médico. É um rapaz do meu tempo e deve ter a minha idade; conheci-o estudante; ele, porém, não me conheceu por esse tempo.
Nos nossos jornalecos troçamo-lo muito. Eu, porém, não me lembro de qualquer pilhéria a seu respeito feita por mim. Ele me tratou muito bem, auscultou-me, disse-lhe tudo o que sabia das conseqüências do meu alcoolismo e eu saí do exame muito satisfeito por ter visto no moço uma boa criatura, que não guardava rancor das troças que ele bem podia atribuir a mim.
Era uma alma boa, em quem o dandismo era mais uma aquisição que uma manifestação de superficialidade de alma e inteligência.
Não me achou muito arruinado e, muito polidamente, deu-me conselhos, para reagir contra o meu vício. Oh! meu Deus! Como eu tenho feito o possível para extirpá-lo e, parecendo-me que todas as dificuldades de dinheiro que sofro são devidas a ele, e por sofrê-las, é que vou à bebida. Parece uma contradição; é, porém, o que se passa em mim. Eu queria um grande choque moral, pois físico já os tenho sofrido, semimorais, como toda a espécie de humilhações também. Se foi o choque moral da loucura progressiva de meu pai, do sentimento de não poder ter a liberdade de realizar o ideal que tinha na vida, que me levou a ela, só um outro bem forte, mas agradável, que abrisse outras perspectivas na vida, talvez me tirasse dessa imunda bebida que, além de me fazer porco, me faz burro.
Não quero morrer, não; quero outra vida.
Não lhe disse isto ao doutor H., mas lhe quis dizer. Tenho que falar dos doentes em cuja companhia estou, dos guardas, dos enfermeiros, mas preciso tratar com mais detalhe e já me cansa o escrever estas notas.
Cá estou na Seção Calmeil há oito dias. Raro é o seu hóspede com quem se pode travar uma palestra sem jogar o disparate. Ressinto-me muito disto, pois gosto de conversar e pilheriar; e sei conversar com toda a gente, mas, com esses que deliram, outros a quem a moléstia faz tatibitate, outros que se fizeram mudos e não há nada que os faça falar, outros que interpretam as nossas palavras de um modo inesperado e hostil, o melhor é calar-se, pouco dizer, mergulhar na leitura, no cigarro, que é a paixão, a mania de todos nós, internados, e o possuí-los em abundância é um perigo que se corre e só pode ser evitado pela astúcia ou pela energia.
Falarei disso com mais vagar.
Estou entre mais de uma centena de homens, entre os quais passo como um ser estranho. Não será bem isso, pois vejo bem que são meus semelhantes. Eu passo e perpasso por eles como um ser vivente entre sombras — mas que sombras, que espíritos?! As que cercavam Dante tinham em comum o stock de idéias indispensável para compreendê-lo; estas não têm mais um para me compreender, parecendo que têm um outro diferente, se tiverem algum.