O Choque das Raças/Capítulo 11
NO ANNO 2228
VOLTEI ao castello e minha amiga deu inicio emfim as suas revelações sobre o choque das raças.
— Decifrou o quebra-cabeças? perguntou-me logo que entrei.
— E' dos indecifraveis, miss Jane, dos indecifraveis para quem não inventou nenhum porviroscopio. Um ponto, entretanto, me intriga. Acho que a população negra da America é muito pequena em relação á branca para que possa jamais constituir perigo.
— Seria assim. de facto, si com o crescer do paiz a proporção se conservasse sempre a mesma. Não foi isso, entretanto, o que se deu. Emquanto a corrente immigratoria européa trazia ondas e mais ondas de brancos a sommarem-se aos já estabelecidos no paiz, nada alarmava, nem deixava vislumbrar um aggravamento futuro de situação. Mas essas ondas foram diminuindo em virtude dos obstaculos oppostos e por fim cederam o logar ao machiavelico Drainage System. Em vez de entrada franca a quem quizesse vir localizar-se no paiz, organizou o governo americano em todas as nações do velho mundo um serviço de importação de valores humanos, consistente em attrahir para lá a fina flor eugenica das melhores raças européas. Já alliviada do seu ouro em favor da America, viu-se a Europa tambem alliviada da sua elite.
— Desnataram a pobre Europa! Só lhe deixaram ao velho mundo, o sôro...
— Isso mesmo. Dahi a qualificação de machiavelico dada ao Drainage System. Os mais perfeitos typos de belleza plastica, as mais fortes intelligencias, os mais puros valores moraes eram descobertos onde quer que florissem e seduzidos de modo a, mais cedo ou mais tarde, se localizarem na Chanaan americana. Por fim achou-se o paiz bastante povoado, e a mentalidade prohibicionista, assustada com o espectro do super-povoamento, supplantou a immigracionista. Fecharam-se todas as portas ao fluxo europeu e a nação passou a crescer vegetativamente apenas. Data d'ahi a inflacção do pigmento.
Até essa epoca a população negra representava um sexto da população total do paiz. A predominancia do branco era, pois, esmagadora e de molde a não arrastar o americano a ver no negro um perigo sério. Mas com o prohibicionismo coincidiu o surto das idéas eugenisticas de Francis Galton. As elites pensantes convenceram-se de que a restricção da natalidade se impunha por mil e uma razões, resumiveis no velho truismo da qualidade a primar sobre a quantidade. Deu-se, então, a ruptura da balança. Os brancos entraram a primar em qualidade, emquanto os negros persistiam no avultar em quantidade. Foi a maré montante do pigmento. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda a linha e creou-se o Ministerio da Selecção Artificial, o surto negro já era immenso.
— Ministerio da Selecção Artificial?
— Sim. O grande Ministerio, o verdadeiro factor da espantosa transformação soffrida pelo povo americano. O seu espirito creador, a coragem de enveredar por sendas novas, sem esperar que outros o fizessem primeiro, deu áquelle povo um enorme avanço sobre os demais.
Essas restricções melhoraram de maneira impressionante a qualidade do homem. O numero dos mal-formados no physico desceu a proporções minimas — sobretudo depois do resurgimento da sabia lei spartana.
— A que matava ao nascedouro as creanças defeituosas? exclamei arrepiado. Tiveram elles a coragem de fazer isso?
— Si o senhor Ayrton visse, como eu vi, o resultado dessa e de outras leis semelhantes, só se admiraria da estupidez do homem em retardar por tanto tempo a adopção de normas tão fecundas. Entre cortar no inicio o fio da vida a uma posta de carne sem sombra de consciencia e deixar que della sáia o ser consciente que vae vegetar annos e annos na horrivel categoria dos "desgraçados", a crueldade está no segundo processo. A lei spartana reduziu praticamente a zero o numero dos desgraçados por defeito physico. Restavam os desgraçados por defeito mental.
— De numero infinito...
— Esses foram impedidos de se produzirem pela lei Owen, fructo das grandes idéas pregadas por Walter Owen. Walter Owen foi o verdadeiro remodelador da raça branca na America. Appareceu cento e poucos annos antes do choque das raças com o seu famoso livro — O direito de procrear, onde lançava os fundamentos do Codigo da Raça, conjuncto de leis tão sabias e fecundas em resultados que, podemos dizer, a era nova da raça humana datou da sua promulgação. A lei Owen, como era chamado esse Codigo de Raça, promoveu a esterilização dos tarados, dos mal-formados mentaes, de todos os individuos, em summa, capazes de prejudicar com má progenie o futuro da especie. Só depois da applicação de taes leis é que foi possivel realizar o grandioso programma de selecção que já havia empolgado todos os espiritos. Os admiraveis processos hoje em emprego na criação dos bellos cavallos puro-sangue passaram a reger a criação do homem na America.
— E lá se foram os pelludos !...
— Exactissimamente... Desappareceram os pelludos — os surdo-mudos, os aleijados, os loucos, os morpheticos, os hystericos, os criminosos natos, os fanaticos, os grammaticos, os mysticos, os rhetoricos, os vigaristas, os corruptores de donzellas, as prostitutas, a legião inteira de mal-formados no physico e no moral, causadores de todas as perturbações da sociedade humana. Essas leis está claro que eram fortemente restrictivas da natalidade, sobretudo no começo, quando havia quasi tanto joio como trigo. Crescer, para a America, não mais valia por avultar ás tontas em numero, como hoje, e sim por elevar o indice mental e physico dos seus habitantes. Os Estados Unidos (e o Canadá que já se fundira nelles) cresciam dessa maneira admiravel, si bem que incomprehensivel para nós que vivemos em plena e licenciosa anarchia procreadora.
Mas... o mas perturbador de todos os calculos humanos surgiu. Apesar de submettida aos mesmos processos restrictivos dos brancos, a raça negra começou desde logo a apresentar um indice mais alto de crescimento. A proporção do negro puro relativa ao branco subiu a um quinto, a um quarto, a um terço e por fim chegou á metade. Quer isso dizer que o binomio racial, desprezado na era do crescimento immigratorio e descurado no inicio do regimen selectivo, passou a entrar na phase aguda do "resolve-me ou devoro-te".
— Em quantos eram calculados os negros nesse momento?
— Na éra em que tomamos este córte anatomico do futuro, anno 2228, as estatisticas apresentavam dados alarmantes. Negros, 108 milhões; brancos, 206 milhões. E como o coefficiente da natalidade negra accusasse uma nova subida, o instincto de conservação dos brancos eriçou-se nos primeiros arrepios da legitima defesa.
Ďos muitos alvitres propostos para de uma vez por todas arrancar a America do seu becco sem sahida, predominavam duas correntes de idéas contrarias, conhecidas por solução branca e solução negra. A solução branca...
— Já sei, disse eu, afflicto por acertar uma só vez que fosse. A solução branca era expatriar o negro !...
— Muito bem, confirmou miss Jane, alegre de ter-me proporcionado um innocente prazer mental. Queriam os brancos a expatriação dos negros para o...
— Valle do Amazonas ! exclamei, adiante do meu successo anterior e esperançoso de segunda victoria. Dias antes eu lera não sei onde uma qualquer coisa que me deixara entrever isso.
— Bravos ! Nesse andar vae o senhor Ayrton substituir com vantagem o nosso porviroscopio perdido. Para esse valle, sim. O antigo Brasil scindira-se em dois paizes, um centralizador de toda a grandeza sul-americana, filho que era do immenso foco industrial surgido ás margens do rio Paraná. A seriar cataratas gigantescas ao longo do seu curso, acabou esse fecundo Nilo da America transformado na espinha dorsal do paiz que em efficiencia occupava no mundo o logar immediato aos Estados Unidos. O outro, uma republica tropical, agitava-se ainda nas velhas convulsões politicas e philologicas. Discutiam systemas de voto e a collocação dos pronomes da semi-morta lingua portugueza. Viam nisso os sociologos o reflexo do desequilibrio sanguineo, consequente á fusão de quatro raças distinctas, o branco, o negro, o vermelho e o amarello, este ultimo predominante no valle do Amazonas.
Não pude deixar de estremecer deante das revelações que fazia miss Jane do futuro do meu paiz.
— Que tristeza, miss Jane ! exclamei compungido. Pois vae dar-se isso, então ?
— Não vejo motivos para a sua tristeza, respondeu ella. Acho até que a divisão do paiz em varios constituiu uma sahida optima, a melhor possivel, dado o erro inicial da mistura das raças. A parte quente ficou a soffrer o erro e suas consequencias ; mas a parte temperada salvou-se e poude seguir o caminho certo. A sua tristeza vem da illusão territorial. Mas reflicta que a muita terra não é que faz a grandeza de um povo e sim a qualidade do seus habitantes. O Brasil temperado, alem disso, continuou a ser um dos grandes paizes do mundo em territorio, visto como fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguay e o Paraguay.
Enchi-me de orgulho patriotico e sem querer levantei-me da cadeira com um hurrah entalado na garganta.
— Vencemos a Argentina, então ? Conquistamos todo o Prata ?
— Errou desta vez, senhor Ayrton. Não houve guerra, nem conquista de qualquer especie. Os povos deste sul abriram os olhos a tempo, viram que a espinha dorsal da zona era o rio Paraná, e foram-se arrumando ao longo das suas quedas, como costellas, formando um todo unico, mais ligados pelos interesses economicos do que por vinculos de sangue.
— Mas a velha rivalidade entre brasileiros e argentinos?
— Não passava de uma estupida voz do sangue. Brasileiros e argentinos, descendentes de lusos e hespanhoes, encampavam, sem o saber, o velho antagonismo que sempre dividiu a peninsula iberica. Mas tantas ondas européas despejou cá a immigração, que o elemento inicial luso-hespanhol foi supplantado e não teve forças para perpetuar a ridicula rivalidade hereditaria.
— Mas por que dividiram o Brasil? perguntei ainda mal consolado. Era só povoar o norte da mesma maneira que o sul...
— Um paiz não é povoado como se quer, senhor Ayrton, ou como apraz aos idealistas. Um paiz povoa-se como pode. No nosso caso foi o clima que estabeleceu a separação. Dos europeus só os portuguezes se acclimavam na zona quente, onde, graças ás affinidades com o negro, continuaram o velho processo de mestiçamento, acabando por formar um povo de mentalidade incompativel com a do sul.
Mas voltemos á America do Norte. O nosso caso é o americano. Mais tarde revelarei ao senhor Ayrton o que se passou no Brasil e como surgiu a republica do Paraná. Estavamos na solução branca e direi que todos os brancos só queriam uma cousa : exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no valle do Amazonas. Isso, entretanto, constituia uma empreza formidavel ou, melhor, impraticavel, não só em virtude de tremendas difficuldades materiaes como por ferir de facea Constituição Americana. O pacto fundamental do grande povo era profundamente sabio, tão sabio que conseguira elevar a antiga colonia ingleza á liderança universal e, pois, gosava de um respeito na verdade supersticioso. Essa carta impedia uma duplicidade de tratamento para cidadãos eguaes entre si perante a sua serena majestade de lei substantiva.
Já os negros se batiam por uma solução muito mais viavel e justa. Queriam a divisão do paiz em duas partes, o sul para os negros e o norte para os brancos. Allegavam que era a America tanto de uma raça como de outra, visto como sahira do esforço de ambas ; e já que não podiam gosar juntas da obra feita em commum, o razoavel seria dividir-se o territorio em dois pedaços. Mas como os brancos preferiam continuar no statu-quo a resolver o caso por esse processo, o problema racial permanecia de pé, cada vez mais ameaçador.
Dez annos antes começara a apparecer na scena americana um vulto de excepcional envergadura : Jim Roy, o negro de genio. Tinha a figura athletica do senegalez dos nossos tempos, apesar da modificação craneana soffrida por influenica do meio. Tal modificação o approximava do typo dos antigos pelle-vermelhas. Era esse aliás o typo predominante no paiz inteiro, e cada vez mais accentuado depois que a interrupção da corrente immigratoria permittiu um evoluir ethnico não perturbado por injecções estranhas. Até na tez levemente acobreada começava a transluzir a mysteriosa influencia do ambiente geographico.
— Engraçado! Quer dizer que com o tempo todos viraram indios...
— Não quer dizer bem isso, e sim que se approximavam um pouco do typo amerindio, no que pude observar. Talvez que dentro de vinte ou trinta mil annos a sua hypothese esteja realizada. Infelizmente o apparelho que meu pae construiu não ia alem do anno 3257.
Em Jim Roy a sua semelhança com um mestiço de senegalez e pelle-vermelha (cousa impossivel, pois de ha muito não existia um só indio na America) accentuava-se pela cor da pelle, nada relembrativa da côr classica dos pretos de hoje.
— Influencia do meio ?
— Não. Não foi isso milagre da influencia do meio, nem era cousa singular, privativa de Jim Roy. Quasi toda a população negra da America presentava pelle egual á sua. Havia a sciencia resolvido o caso da côr pela destruição do pigmento. De modo que se Jim Roy apparecesse deante de nós, hoje, surprehenderia da maneira mais desconcertante, visto como esse negro de raça purissima, sem uma só gotta de sangue branco nas veias, apesar de ter o cabello carapinha era horrivelmente esbranquiçado.
— Albino ?
— Não, albino. Esbranquiçado — um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de crême e pó de arroz...
— Barata descascada, sei.
— Mas nem eliminando com os recursos da sciencia o caracteristico essencial da raça, deixavam os negros de ser negros na America. Antes aggravavam a sua situação social, porque os brancos, orgulhosos da da pureza ethnica e do privilegio da côr branca ingenita, não lhes podiam perdoar aquella camouflage da despigmentação.
Era Jim Roy na realidade um homem de immenso valor. Nascera fadado a altos destinos, com a marca dos conductores de povos impressa em todas as facetas da sua individualidade. Como organizador e meneur talvez șuperasse os mais famosos organizadores surgidos entre os brancos. A historia da humanidade pouco exemplos apresentava de uma efficiencia egual á sua. Consagrara-se desde muito joven á execução dum plano de genio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita comprehensão do material humano sobre que pretendia agir.
— Está-me lembrando o velho Moysés...
— Jim Roy conseguira o milagre da associação integral da população negra sob a bandeira dum partido politico cujas forças, collectadas por extensa cadeia de agentes districtaes, vinham, como fios telephonicos, ter á estação central da sua chefia suprema. Sempre sabias e constructoras, desciam suas instrucções, com autoridade de dogmas, sobre todas as cellulas da Associação Negra (era o nome do partido) e as fazia moverem-se como puros automatos. Esta abdicação, ou melhor, esta sujeição consciente e consentida de todas as vontades a uma vontade unica, aperfeiçoara-se de tal modo, que no anno da tragedia a situação politica dos Estados Unidos passou de jacto a depender do leader negro.
— Passou a depender delle como? Pois não eram os negros apenas cem para duzentos milhões de brancos?
— Não se impaciente, senhor Ayrton. Temos que ir por partes. Disse eu que a situação politica da America passou a depender de Jim Roy e foi facto. Mas antes de lá chegarmos temos que fazer um rodeio politico. Gosta de politica, senhor Ayrton ?
— Nem eleitor sou, miss Jane.
— E de politica feminina ?
— Essa desconheço. Supponho, entretanto, que ha de ser mais felina que a dos homens...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.