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O Choque das Raças/Capítulo 25

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CAPITULO XXV


O BEIJO DE BARRYMORE



O desfecho do drama racial da America commoveu-me profundamente.

Não ter futuro, acabar... Que torturante a sensação dessa massa de cem milhões de creaturas assim amputadas do seu porvir !

Do outro lado, que maravilhoso surto não ia ter na America o homem branco, a expandir-se, liberrimo, na sua Chanaan prodigiosa !

Si somos, si existimos, si apesar de todos os males da vida tanto nos apegamos a ella, é que no intimo do nosso ser a voz da persistencia da especie nos ampara. A meio da vida de cada creatura já é a prole que lhe dá coragem de a viver até o fim. O celibatario, ser que vale por triste ponto final, sente-se corpo estranho no tumulto biologico-quasi um amaldiçoado. Que dizer de um povo inteiro assim amputado da sua descendencia ? A ver-se envelhecer sem um choro de creança em seu seio, que o faça pensar no amanhã ? Dia final. Dia já em crepusculo rapido para uma noite eterna...

Fosse eu um philosopho e tinha alli materia para esmoer o cerebro no imaginar e re-imaginar a infinita maravilha do formidando quadro. Mas não era philosopho. Quem ama não philosopha, apenas suspira — e eu suspirava de commover penedos.

— Jane, Jane, Jane... como se repetia em minha bocca febrenta essa palavra e com que extase meus ouvidos a ouviam !

Lembrei-me do romance. Senti que era talvez o caminho mais curto para alcançar o coração da filha do professor Benson. Lancei-me a elle. Comprei uma resma de papel e com furiosa soffreguidão fiz e refiz o primeiro capitulo, enthusiasmado com os periodos redondos e cantantes que me sahiam da penna. Burilei-o, qual um soneto, aprimorei-o de todos os arrebiques de forma, orientado por modelos que me pareceram os melhores. E nunca me hei de esquecer a ansia com que corri ao castello com a minha obra em punho ! Ia pelo caminho prelibando a surpreza de miss Jane ante aquella forte revelação dum genio literario que morreria latente si esse meu anjo bom lhe não provocasse o surto.

Encontrei-a á varanda, radiosa de formosura avivada pelo ar fino da manhã. Sem saudal-a, fui logo gritando de longe, com infantil alegria :

— Já fiz o primeiro, miss Jane ! O primeiro capitulo ! E estou ansioso por ouvir a sua opinião...

— Bravos ! exclamou ella. Não esperei que tão rapidamente puzesse mãos á obra.

Abri o meu pacote de tiras em bello cursivo e entreguei-lh'as, como quem á sua dama entrega a mais preciosa das gemmas. Impossivel que após sua leitura miss Jane não me désse o seu amor.

Vendo a minha soffreguidão, alli mesmo a joven as leu, emquanto meus olhos avidos acompanhavam em seu rosto o effeito da narrativa.

Mas, ai de mim, tudo sahiu bem ao contrario do esperado... Miss Jane atenuou quanto poude a sua critica, delicada e gentil que era, mas não logrou impedir que de volta á cidade eu rasgasse em mil pedaços a minha obra prima e pela janellinha do vagão, melancholicamente, os lançasse ao vento. Azedei a semana inteira e no proximo domingo reappareci no castello de mãos vazias.

— Não refez, então, o capitulo ? indagou ella logo que entrei.

— Oh, não, miss Jane. Suas palavras abriram-me os olhos. Convenci-me de que não possuo qualidades literarias e não quero insistir, retruquei com ar resentido.

— Pois tem que insistir, foi a sua resposta. Em nome da nossa amizade o exijo, e pelas qualidades que vi em germem no seu primeiro escripto tenho a certeza de que fará a obra como é mister.

— Confesso, miss Jane, que a sua apreciação do ultimo domingo me desalentou, e ainda permaneço sob essa, impressão...

— Que vaidosos, os moços ! Lembre-se de meu pae. Quantas vezes fazia e refazia a mesma experiencia, com tenacidade de benedictino ! Porisso venceu. Lembre-se dos grandes escriptores na phase inicial, lembre-se do esforço incessante de Flaubert para attingir a luminosa clareza que só a sabia simplicidade dá. A emphase, o empolado, o enfeite, o contorcido, o rebuscamento de expressões, tudo isso nada tem com a arte de escrever, porque é artificio e o artificio é a cuscuta da arte. Puros maneirismos que em nada contribuem para o fim supremo : a clara e facil expressão da idéa.

— Sim, miss Jane, mas sem isso fico sem estylo...

Que finura de sorriso, temperado de meiguice, aflorou nos labios da minha amiga !

— Estylo o senhor Ayrton só o terá quando perder em absoluto a preoccupação de ter estylo. Que é estylo, afinal ?

— Estylo é... ia eu respondendo de prompto ; mas logo engasguei, e assim ficaria si ella muito naturalmente não m'o definisse de gentil maneira.

— ...é o modo de ser de cada um. Estylo é como o rosto : cada qual possue o que Deus lhe deu. Procurar ter um certo estylo vale tanto como procurar ter uma certa cara. Sahe mascara, fatalmente, essa horrivel cousa que é a mascara...

— Mas o meu modo natural de ser não tem encantos, miss Jane, é bruto, grosseiro inhabil, ingenuo. Quer, então, que escreva desta maneira ?

— Pois certamente ! Seja como é, e tudo quanto lhe parece defeito surgirá como qualidade, visto que será reflexo da cousa unica que tem valor num artista — a personalidade.

Reflecti commigo uns instantes e disse por fim :

— Está bem, miss Jane. Vou tentar mais uma vez. Vou escrever como sahir, sem preoccupação de especie nenhuma — nem de grammatica, e verá que horror...

— Isso ! exclamou ella encantada. Acertou. Isso é que é escrever bem. Refaça o primeiro capitulo com esse criterio e traga-m'o no proximo domingo. Serei franca como o fui na tentativa anterior, e si me parecer que de facto não tem as qualidades precisas, dil-o-ei francamente e não pensaremos mais nisso.

De regresso ao meu quartinho humilde nessa mesma noite dei inicio á obra. O meu amúo, consequente á vaidade literaria offendida, não passara de todo, e resolvi escrever mal, de um jacto, com a intenção deliberada de desapontar miss Jane. Ella me condemnaria a segunda tentativa, punhamos um ponto final na literatura e passariamos a cuidar de outra cousa. Escrevi até madrugada, sem rasuras, sem escolha de palavras, como si estivesse a correr no meu saudoso Ford ao acaso das estradas sem fim. Ao soarem tres horas atirei com a caneta e fui dormir o somno mais pesado da minha vida.

— Aqui está, miss Jane, o horror que me sahiu da penna. Escrevi de accordo com a sua receita e nem coragem tive de reler. Condemne-me de uma vez e passemos a cuidar de outra cousa.

Miss Jane tomou as tiras e logo ao fim da primeira abriu a expressão que eu tanto ansiara por ver na tentativa anterior. E nesse estado de extase soffrego permaneceu até ao fim.

— Optimo ! exclamou. O senhor Ayrton acaba de revelar-se-me um verdadeiro escriptor — impetuoso, irregular, incorrecto, ingenuo, mas expressivo, original e forte. Ha aqui verdadeiros achados de expressão. Faça o livro inteiro neste tom que lhe garanto a victoria.

Olhei para a minha amiga quasi com rancor, tão certo estava de que se fazia cruelmente ironica para commigo.

— Tem coragem de ser assim impiedosa com o pobre Ayrton ? disse-lhe em tom magoado.

Ella olhou-me nos olhos fixamente, sem dizer palavra, e nos seus lindos olhos azues vi reflectida com tamanha nitidez a pureza de sua alma que logo me envergonhei do meu impeto, filho exclusivo da ignorancia.

— Não, meu amigo, disse-me por fim. Sou incapaz de ironia. O que acabo de dizer é a fiel expressão do meu pensamento. Estas paginas estão cheias de defeitos, mas dos defeitos naturaes ao primeiro jacto de toda obra sincera e expontanea. São as rebarbas que com a lima o fundidor tira. Mas si noto defeitos que a lima tira, não noto nenhum vicio literario, e porisso considero optimo o começo do seu romance. Faça-o todo nesse tom e fará a obra que imagino. O trabalho de rebarba deixe-o commigo. Sou mulher e paciente. Deixe-me o menos e faça o mais. Seja o fundidor apenas, o obreiro que crea o grande bloco e não perde tempo com detalhes subalternos.

Calaram fundo no meu coração aquellas palavras. Vi nellas um interesse mais de amorosa do que de simples amiga — de amorosa que o é sem o saber. Immergida que sempre vivera em suas visões do futuro, e sempre presa da mais intensa actividade cerebral, miss Jane ignorava-se.

Olhei-a com o coração nos olhos. O puro espirito viu em mim a taça cheia em excesso cuja espuma derrama — e perturbou-se. Seus olhos baixaram-se. Seu peito offegou.

Era o céo. Atirei-me, como quem se atira á vida, e esmaguei-lhe nos labios o beijo sem fim de John Barrymore. E qual o raio que accende em chammas o tronco impassivel, meu beijo arrancou da gelada filha do professor Benson a ardente mulher que eu sonhara.

— Minha, afinal !...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.