O Choque das Raças/Capítulo 4
MISS JANE
NA sala de almoço tive uma nova surpreza. Estava lá, e recebeu-nos com gentil sorriso, a mais encantadora creatura que
ainda viram meus olhos.
— Minha filha Jane, apresentou-m'a o velho.
Como esperava tudo, menos encontrar alli uma figura feminina, atrapalhei-me e gaguejei, visto que sou timido deante das mulheres formosas. Já com as feias, ou velhas, sinto-me desembaraçadissimo. Mas cabellos louros como aquelles, olhos azues como aquelles, esbelteza e elegancia de porte como as de miss Jane, eram ingredientes fortes demais para que não produzissem a ruptura do meu equilibrio nervoso. Gaguejei, já disse, e fui logo tropeçando num pé de cadeira, o que muito me vexou, embora não fizesse rir á moça. Esta contensão de sua parte provou-me que estava deante de uma creatura finamente educada e generosa.
Correu sem incidentes o almoço, e nada vi nelle de mysterio. Pratos simples, servidos em baixella fina, tudo despido dos excessos que caracterizam a mesa dos ricaços amigos de, nas menores cousas, exhibirem o seu dinheiro.
Miss Jane falou ao pae de tres filhotes de pintasilgos que encontrara no pomar, num ninho feito de raizes de capim.
— Gosta de passaros, senhor Ayrton? perguntou-me com gracioso sorriso.
Confesso que até ignorava a existencia de passaros no mundo. A minha vida de cidade, no corre-corre das ruas desde menino, sem nunca umas férias passadas no campo, impedia-me de prestar attenção a essas vidinhas aladas, que constituem um dos enlevos dos contemplativos.
— Gosto, sim senhora, respondi eu, si bem' que em materia de passaros só me lembre dum periquito victima duma menina, filha lá da firma.
— Pois aprenderá aqui a adoral-os. O sabiá que todas as tardes canta numa das laranjeiras do pomar com certeza já lhe attrahiu a attenção. Temos tambem varios outros amiguinhos que de lá não sahem, pintasilgos, sanhaços, rolinhas, sahiras...
— O senhor Ayrton, interveio o professor, vae ficar aqui comnosco. Tem muito que ouvir e aprender. Vou revelar-lhe os segredos da natureza, e tu, Jane, lhe revelarás a poesia. Estes homens da cidade teem a visão muito restricta; o mundo para elles se resume na rua, nas casas marginaes e no torvelinho humano.
— Realmente, professor. A impressão que tive hoje durante o meu passeio pelo campo abriu-me' a alma. Verifiquei que o mundo não é só a cidade e que o centro do universo não é a firma Sá, Pato & Cia, como toda a vida o suppuz.
— O mundo, meu caro, é um immenso livro de maravilhas. A parte que o homem já leu chama-se passado ; o presente é a pagina em que está aberto o livro ; o futuro, as paginas ainda por cortar. E a uma creatura que nem conhece a pagina aberta ante seus olhos, como o senhor, vou eu revelar o que a ninguem foi ainda revelado : algumas paginas futuras !
Olhei para o professor Benson com ar palerma, porque sempre me apalermava o que elle dizia. Tinha o sabio uma linguagem nova para mim, da qual eu apprehendia apenas o sentido formal, não o sentido intimo... Animei-me, entretanto, a uma phrase :
— Miss Jane, com certeza, conhece tambem essas paginas futuras.
— Sim, eu e ella, respondeu o professor. Só nós dois, no mundo inteiro e desde que o mundo é mundo, gosamos deste privilegio maravilhoso. Enviuvei muito cedo e minha familia está hoje reduzida a Jane. E' a minha companheira de estudo dos córtes anatomicos do futuro.
"Córtes anatomicos do futuro"... A expressão soou-me como outróra a do senhor Sá, quando pela primeira vez me falou em "lançamento por partidas dobradas", cousa que hoje não ignoro, mas que, na epoca, valeu por um "córte anatomico".
Nesse ponto do almoço se fez notar certa zoada distante, vinda não sabia eu de onde.
— Deixaste o chronizador aberto, Jane?
— Sim, meu pae. Deixei-o em marcha para 410 annos, focalizado a 80 gráos de latitude por 40 de longitude. Experiencia ao acaso, pois nem verifiquei onde fica esse ponto.
— Groenlandia. O córte não revelará cousa nenhuma, supponho. Não creio que em 410 annos as condições do mundo se alterem a ponto de haver lá outra vida alem da dos esquimãos, ursos e phocas.
— Em todo o caso, vejamos, disse a moça. Temos tido tantas surprezas...
— Minha filha, senhor Ayrton, possue mais frieza de sabio do que eu. Não perde tempo em formular hypotheses quando tem ao alcance meios de verificar experimentalmente.
Ri-me. Acho que a melhor maneira de figurar numa roda onde se falam cousas acima da nossa comprehensão é sorrir para o interlocutor que nos dirige a palavra. Si o riso não engana a elle, engana a nós, e livra-nos de uma replica verbal, que sae asneira infallivelmente. De todo o dialogo da filha com o pae só me evocou uma imagem já classificada no cerebro a palavra Groenlandia. Lembrei-me dos meus tempos de geographia e da impressão que me causara a descripção da Terra Verde, ou Groenlandia, feita pelo meu barbaçudo professor Maneco Lopes. E por associação me vieram á mente ursos brancos, phocas, leões marinhos, pinguins, esquimáos. Querendo contribuir com uma nota para a conversa, e fingindo entender o que elles haviam dicto, arrisquei
— Não ha duvida, a Groenlandia é um caso sério. Uma piririca !
Foi a vez do professor Benson franzir os sobrolhos, no gesto classico da incomprehensão. Vi que aquelle homem, que sabia tudo e lia o futuro, ignorava alguma cousa do presente a gyria da cidade, e firmei-me na resolução de dar com a gyria em cima delle para vel-o refranzir a testa muitas vezes.
— Quê? indagou o velho sabio.
— Sim, expliquei eu, sem erguer os olhos para miss Jane, com medo de desnortear. A Terra Verde é um caso, um numero. Quando o pinguim scisma p'ra cima do peixe, e o urso gréla a phoca...
Mas o professor Benson cortou-me as vasas.
— Não reflectiu, nunca, meu caro senhor Ayrton, na opportunidade do silencio? O silencio é sabio, é uma das mais altas fórmas da sabedoria. Foi silenciando que Jesus deu ao "Que é a verdade?" de Pilatos a unica resposta acertada...
— Papae, interveio a moça, evidentemente apiedada da minha situação, está ahi uma experiencia que inda não fizemos! Involuir a corrente e operar um córte no anno 33, a ver si apanhamos essa scena historica...
— Realmente é uma idéa, minha filha, e mais curiosa do que o exame da Groenlandia, onde, como diz cá o amigo, o urso gréla a phoca....
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.