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O Choque das Raças/Capítulo 5

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CAPITULO V

TUDO ETHER QUE VIBRA!


SAHI daquelle almoço com as idéas mais desnorteadas do que antes. Um elemento novo contribuia para isso: miss Jane, creatura singularmente perturbadora, pois, alem de agir sobre meus fragilimos nervos como todas as moças bonitas, inda me tonteava com a sua mentalidade de sabio. De tudo quanto a joven disse só me ficou claro no espirito a historia dos passarinhos do pomar. Até alli pareceu-me uma creatura tal as outras, mas depois do "córte anatomico" tudo se complicou e passei a vel-a qual um mysterioso idolo de divindade dupla, mixto de Aphrodite e Minerva.

Depois do almoço levou-me o professor a ver os laboratorios. Atravessei numerosas salas e pavilhões cuja composição entendi menos que a do gabinete. Quanta machina exquisita, tubos de crystal, ampolas, pilhas electricas, bobinas, dynamos — extravagancias de sabio ! Eu conhecia varias officinas mechanicas, mas nellas nunca me tonteava. Tornos, machinas de cortar e furar, bigornas, martellos automaticos, laminadores, frezas, tudo isso eu via e comprehendia, pois, apesar de complicados na apparencia, evidenciavam logo uma funcção esclarecedora. Mas alli, santo Deus! Que chaos! Não consegui entender cousa nenhuma e, mesmo depois que o velho sabio m'as explicou, manda a verdade confessar que fiquei na mesma.

— Isto aqui, disse elle na primeira sala, são apparelhos electro-radio-chimicos, na maioria creados ou adaptados por mim e que constituiram o ponto de partida da minha descoberta. Si o amigo Ayrton fosse um technico, eu lh'os explicaria um por um, mas será difficil fazer-me entendido por quem não possue uma solida base de idéas scientificas. Resumirei dizendo que neste velho laboratorio consumi os trintas annos da minha mocidade em pesquizas pacientissimas, culminantes na construcção daquella antenna que o amigo lá vê ao alto da torre..

Olhei e vi uns fios entrecruzados, formando um desenho geometrico.

— Parece uma teia de aranha ! murmurei.

— E é de facto uma teia de aranha. A aranha sou eu. Com essa teia apanho a vibração atomica do momento.

— "Vibração atomica do momento"... repeti, fazendo um furioso esforço mental para comprehender a novidade.

— Sim. A vida na terra é um movimento de vibração do ether, do atomo, do que quer que seja uno e primario, entende?

— Estou quasi entendendo. Já li um artigo de jornal onde um sabio provava que só ha força e materia, mas que a materia é força, de modo que os dois elementos são um, como os tres da Santissima Trindade tambem são um, não é isso?

— Mais ou menos. Nomes não veem ao caso. Força, ether, atomo : denominações arbitrarias de uma cousa una, que é o principio, o meio e o fim de tudo. Por commodidade chamarei ether a esse elemento primario. Esse ether vibra e, conforme o gráo ou intensidade da vibração, apresenta-se-nos sob formas. A vida, a pedra, a luz, o ar, as arvores, os peixes, a sua pessoa, a firma Sá, Pato & Cia : modalidades da vibração do ether. Tudo isso foi, é e será apenas ether.

Não pude deixar de sorrir lembrando-me da cara que fariam os senhores Sá, Pato & Cia, si ouvissem as palavras do sabio. Ether, elles...

— Mas não ha somente ether no mundo. Si só houvesse ether e fosse de sua essencia vibrar, a vibração seria uniforme e tornaria impossivel a manifestação de fórmas de vida. Seria o estatismo eterno.

— Sei, um zum-zum, uma zoada de não acabar mais.

— Muito bem, está comprehendendo. A vibração do ether, pois, soffreu a interferencia... Sabe o que é interferencia?

— Uma cousa que se insinua pelo meio; intrometter a colher torta na conversa dos mais velhos deve ser, scientificamente, uma interferencia.

— Perfeitamente. Soffreu a interferencia do que, cá no vocabulario que creei com minha filha, chamo — o Interferente. Isto de palavras não tem importancia, como já disse. Só vale a idéa. O Interferente poderá para outros ter o nome de Deus, por exemplo, ou de Vontade. Os philosophos que philosopham com palavras passam a vida a debater qual a melhor palavra a applicar ao meu Interferente, como si palavras jamais esclarecessem alguma cousa.

— Vae indo muito bem, professor. Ha o ether que vibra e ha o Interferente que se mette no meio...

— Isso. Interfere e provoca a variação vibratoria. Essa variação crea correntes que se chocam umas com as outras, modificam-se e dão origem a todas as fórmas de vida existentes. A vida, pois, não passa da vibração do ether modificada pela acção do...

— Interferente ! conclui, glorioso.

Parece que o professor Benson mudou a idéa que formava de mim. Viu que o discipulo aprendia depressa e, voltando atrás, como si valesse a pena instruil-o mais a fundo, passou a explicar-me dezenas de cousas do seu laboratorio, na intenção de confirmar-me nos principios que o levaram á deducção da formula: Ether + Interferencia = Vida.

Depois que me viu já bem seguro das suas theorias, proseguiu :

— Preste attenção agora, que este ponto é capital. O Interferente não interfere sempre. O Interferente interferiu uma só vez !

Parei um pouco atordoado.

— Espere, doutor. Dê-me tempo de assentar as idéas. O Interferente veio, interferiu e parou de interferir. E' isso?

— Perfeitamente. Quebrou a uniformidade da vibração, perturbou o unisonismo...

— O zum-zum!

— ...e desde então o phenomeno vida, que tambem podemos denominar universo, desenvolve-se por si, automaticamente, por determinismo. As cousas vão-se determinando...

— Uma puxa a outra...

— Isso. Uma determina a outra. Dahi vem falarem os velhos philosophos em lei da causalidade, "todo o effeito tem uma causa", "toda a causa produz effeitos", etc.

— Aristoteles... ia arriscando eu.

— Deixe Aristoteles em paz. Estamos na determinação universal, e a vida, ou o universo, é para nós o momento consciente desta determinação.

— "Momento consciente"... repeti forçando o cerebro.

— O senhor Ayrton, por exemplo, é um momento consciente da determinação universal, ás 13 horas e 14 minutos do dia 3 de Janeiro do anno de 1926, aos 22° e 35" de latitude e 35° e 3' de longitude da superficie do globo terraqueo.

— Admiravel! exclamei eu com enthusiasmo e cheio de orgulho, comprehendendo afinal a minha verdadeira significação na vida. Mas o futuro, doutor? Muito mais do que a definição scientifica do que eu sou me interessam as suas visões do futuro.

— Para lá chegar temos que ir por este caminho. Começamos do ether inicial, admittimos a Interferencia e estamos na Determinação, que é o que os philosophos chamam presente. O futuro é a pre-determinação.

Franzi os sobrolhos. A palavra era nova para mim e a idéa muito mais. O professor Benson expol-a com luminosa clareza e mostrou-me a belleza do determinismo. Em certo ponto da sua exposição lembrei-me do amigo corretor e da sua comparação do 2 + 2 = 4. Fingi que era minha a imagem e arrisquei :

— Dois mais dois egual a quatro.

O professor Benson entreparou, com a physionomia radiante. Em seguida estendeu-me a mão.

— Meus parabens! Vejo que o senhor Ayrton é muito mais intelligente do que suppuz a principio. Nessa imagem está toda a minha philosophia. 2+2 significa o presente ; 4 significa o futuro. Mas, desde que escrevemos o presente 2+2, o futuro 4 já está predeterminado antes que a mão o transforme em presente, lançando-o ao papel. Aqui porém, são tão simples os elementos que o cerebro humano, por si mesmo, ao escrever o 2 + 2, vê immediatamente o futuro 4. Já num caso, mais complexo, onde em vez de 2 + 2 temos, por exemplo, a Bastilha, Luiz 16, Danton, Robespierre, Marat, o clima de França, o odio da Inglaterra alem Mancha, a herança gauleza combinada com a herança romana, bilhão de factores, em summa, que faziam a França de 89, embora tudo isso predeterminasse o quatro Napoleão, esse futuro não poderia ser previsto por nenhum cerebro em virtude da fraqueza do cerebro humano. Pois bem : eu descobri o meio de predeterminar esse futuro — e vel-o!

— Mas é assombroso, professor ! E' a mais espantosa descoberta de todos os tempos ! exclamei, de olhos arregalados. Entretanto, permitta-me uma duvida. Si esse futuro ainda não existe, como o póde ver ?

— O 4 antes de ser escripto tambem não existe, no entanto o amigo o vê tão claro no presente 2 + 2 que o escreve incontinente.

O argumento calou fundo. Pisquei sete vezes, com a testa fortemente refranzida.

— O futuro não existe, continuou o sabio, mas possuo o meio de produzir o momento futuro que desejo.

Tonteado pelo tom categorico daquella affirmativa, não me atrevi a duvidar, e estava ainda apalermado com a maravilhosa revelação quando miss Jane appareceu, esplendida de formosura.

Esqueci toda aquella altissima sciencia, que já me fazia dôr de cabeça, e regalei os olhos na sua imagem perturbadora.

Saudou-me com um gesto amavel e disse, dirigindo-se ao professor :

— Tinha razão, meu pae. Já fiz o córte e só lá vi as eternas brancuras.

E, voltando-se para mim :

— Tem aprendido muita cousa, senhor Ayrton ?

— Mais que em toda a minha vida, miss Jane, e começo a bemdizer o acaso que me fez victima de um desastre.

— E está tão no começo ainda ! Quando entrar no segredo de tudo e puder ver directamente uns córtes, o seu assombro vae ser illimitado.

— Já prevejo isso, senhorita, e...

E engasguei-me. Miss Jane olhara-me nos olhos e eu não era creatura que supportasse de frente um olhar assim. Cheguei a corar, creio, o que inda mais augmentou a minha perturbação. Felizmente a boa menina, vendo que eu me calava, voltou-se para o professor Benson e disse :

— Mas agora, meu pae, tregoas ás revelações. O café está na mesa e com uns bolinhos tentadores que eu mesma fiz. Senhor Ayrton, vamos...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.