O Cortiço/XX

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Chegaram a casa às nove horas da noite. Piedade levava o coração feito em lama; não dera palavra por todo o caminho e logo que recolheu a pequena, encostou-se à cômoda, soluçando.

Estava tudo acabado! Tudo acabado!

Foi à garrafa de aguardente, bebeu uma boa porção; chorou ainda, tornou a beber, e depois saiu ao pátio, disposta a parasitar a alegria dos que se divertiam lá fora.

A das Dores tivera jantar de festa; ouviam-se as risadas dela e a voz avinhada e grossa do seu homem, o tal sujeito do comércio, abafadas de vez em quando pelos berros da Machona, que ralhava com Agostinho. Em diversos pontos cantavam e tocavam a viola.

Mas o cortiço já não era o mesmo; estava muito diferente; mal dava idéia do que fora. O pátio, como João Romão havia prometido, estreitara-se com as edificações novas; agora parecia uma rua, todo calçado por igual e iluminado por três lampiões grandes simetricamente dispostos. Fizeram-se seis latrinas, seis torneiras de água e três banheiros. Desapareceram as pequenas hortas, os jardins de quatro a oito palmos e os imensos depósitos de garrafas vazias. À esquerda, até onde acabava o prédio do Miranda, estendia-se um novo correr de casinhas de porta e janela, e daí por diante, acompanhando todo o lado do fundo e dobrando depois para a direita até esbarrar no sobrado de João Romão, erguia-se um segundo andar, fechado em cima do primeiro por uma estreita e extensa varanda de grades de madeira, para a qual se subia por duas escadas, uma em cada extremidade. De cento e tantos, a numeração dos cômodos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e goteiras encarnadas. Poucos lugares havia desocupados. Alguns moradores puseram plantas à porta e à janela, em meias tinas serradas ou em vasos de barro. Albino levou o seu capricho até à cortina de labirinto e chão forrado de esteira. A casa dele destacava-se das outras; era no andar de baixo, e cá de fora via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mobília muito brunida, jarras de flores sobre a cômoda, um lavatório com espelho todo cercado de rosas artificiais, um oratório grande, resplandecente de palmas douradas e prateadas, toalhas de renda por toda a parte, num luxo de igreja, casquilho e defumado. E ele, o pálido lavadeiro, sempre com o seu lenço cheiroso à volta do pescocinho, a sua calça branca de boca larga, o seu cabelo mole caldo por detrás das orelhas bambas, preocupava-se muito em arrumar tudo isso, eternamente, como se esperasse a cada instante a visita de um estranho. Os companheiros de estalagem elogiavam-lhe aquela ordem e aquele asseio; pena era que lhe dessem as formigas na cama! Em verdade, ninguém sabia por que, mas a cama de Albino estava sempre coberta de formigas. Ele a destruí-las, e o demônio do bichinho a multiplicar-se cada vez mais e mais todos os dias. Uma campanha desesperadora, que o trazia triste, aborrecido da vida. Defronte justamente ficava a casa do Bruno e da mulher, toda mobiliada de novo, com um grande candeeiro de querosene em frente à entrada, cujo revérbero parecia olhar desconfiado lá de dentro para quem passava cá no pátio. Agora, entretanto, o casal vivia em santa paz. Leocádia estava discreta; sabia-se que ela dava ainda muito que fazer ao corpo sem o concurso do marido, mas ninguém dizia quando, nem onde. O Alexandre jurava que, ao entrar ou sair fora de horas, nunca a pilhara no vicio; e a esposa, a Augusta Carne-Mole, ia mais longe na defesa, porque sempre tivera pena de Leocádia, pois entendia que aquele assanhamento por homem não era maldade dela; era praga de algum boca do diabo que a quis e a pobrezinha não deixou. — Estava-se vendo disso todos os dias!— tanto que ultimamente, depois que a criatura pediu a um padre um pouco de água benta e benzeu-se com esta em certos lugares, o fogo desaparecera logo, e ela ai vivia direita e séria que não dava que falar a ninguém! Augusta ficara com a família numa das casinhas do segundo andar, à direita; estava grávida outra vez; e à noite via-se o Alexandre, sempre muito circunspecto, a passear ao comprido da varanda, acalentando uma criancinha ao colo, enquanto a mulher dentro de casa cuidava de outras. A filharada crescia-lhes, que metia medo. "Era um no papo outro no saco!" Moravam agora também desse lado os dois cúmplices de Jerônimo, o Pataca e o Zé Carlos, ocupando juntos o mesmo cômodo; defronte da porta tinham um fogãozinho e um fogareiro, em que preparavam eles mesmos a sua comida. Logo adiante era o quarto de um empregado do correio, pessoa muito calada, bem vestida e pontual no pagamento; saia todas as manhãs e voltava às dez da noite invariavelmente; aos domingos só ia à rua para comer, e depois fechava-se em casa e, houvesse o que houvesse no cortiço, não punha mais o nariz de fora. E, assim como este, notavam-se por último na estalagem muitos inquilinos novos, que já não eram gente sem gravata e sem meias. A feroz engrenagem daquela máquina terrível, que nunca parava, ia já lançando os dentes a uma nova camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar inteira lá para dentro. Começavam a vir estudantes pobres, com os seus chapéus desabados, o paletó fouveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço, e as algibeiras muito cheias, mas só de versos e jornais; surgiram contínuos de repartições públicas, caixeiros de botequim, artistas de teatro, condutores de bondes, e vendedores de bilhetes de loteria. Do lado esquerdo, toda a parte em que havia varanda foi monopolizada pelos italianos; habitavam cinco a cinco, seis a seis no mesmo quarto, e notava-se que nesse ponto a estalagem estava já muito mais suja que nos outros. Por melhor que João Romão reclamasse, formava-se ai todos os dias uma esterqueira de cascas de melancia e laranja. Era uma comuna ruidosa e porca a dos demônios dos mascates! Quase que se não podia passar lá, tal a acumulação de tabuleiros de louça e objetos de vidro, caixas de quinquilharia, molhos e molhos de vasilhame de folha-de-flandres, bonecos e castelos de gesso, realejos, macacos, o diabo! E tudo isso no meio de um fedor nauseabundo de coisas podres, que empesteava todo o cortiço. A parte do fundo da varanda era asseada felizmente e destacava-se pela profusão de pássaros que lá tinham, entre os quais sobressaia uma arara enorme que, de espaço a espaço, soltava um formidável sibilo estridente e rouco. Por debaixo ficava a casa da Machona, cuja porta, como a janela, Nenen trazia sempre enfeitada de tinhorões e begônias. O prédio do Miranda parecia ter recuado alguns passos, perseguido pelo batalhão das casinhas da esquerda, e agora olhava a medo, por cima dos telhados, para a casa do vendeiro, que lá defronte erguia-se altiva, desassombrada, o ar sobranceiro e triunfante. João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna de vidros vermelhos; foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas ali mesmo à porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a primeira, em vez de "Estalagem de São Romão" lia-se em letras caprichosas:

"AVENIDA SÃO ROMÃO"


O "Cabeça-de-Gato" estava vencido finalmente, vencido para sempre; nem já ninguém se animava a comparar as duas estalagens. À medida que a de João Romão prosperava daquele modo, a outra decaía de todo; raro era o dia em que a polícia não entrava lá e baldeava tudo aquilo a espadeirada de cego. Uma desmoralização completa! Muitos cabeças-de-gato viraram casaca, passando-se para os carapicus, entre os quais um homem podia até arranjar a vida, se soubesse trabalhar com jeito em tempo de eleições. Exemplos não faltavam!

Depois da partida de Rita, já se não faziam sambas ao relento com o choradinho da Bahia, e mesmo o cana-verde 35 pouco se dançava e cantava; agora o forte eram os forrobodós dentro de casa, com três ou quatro músicos, ceia de café com pão; muita calça branca e muito vestido engomado. — E toca a enfiar para ai quadrilhas e polcas ate romper a manhã!

Mas naquele domingo o cortiço estava banzeiro; havia apenas uns grupos magros, que se divertiam com a viola à porta de casa. O melhor, ainda assim, era o da das Dores. Piedade dirigiu-se logo para lá, sombria e cabisbaixa.

— Com o demo! você anda agora que nem o boi castrado! exclamou-lhe o Pataca, assentando-se ao lado dela. As tristezas atiram-se para trás das costas, criatura de Deus! A vida não dá para tanto! O homem deixou-te? Ora sebo! mete-se com outro e põe o coração à larga!

Ela suspirou em resposta, ainda triste; porém, a garrafa de parati correu a roda, de mão em mão, e, à segunda volta, Piedade já parecia outra. Começou a conversar e a tomar interesse no pagode. Daí a pouco era, de todos, a mais animada, falando pelos cotovelos, criticando e arremedando as figuras ratonas da estalagem. O Pataca ria-se, a quebrar a espinha, caindo por cima dela e passando-lhe o braço na cintura.

— Você ainda é mulher pr’um homem fazer uma asneira!

— Olha pra que lhe deu o ébrio! Solta-me a perna, estupor!

O grupo achava graça nos dois e aplaudia-os com gargalhadas. E o parati a circular sempre de mão em mão. A das Dores não descansava um momento; mal vinha de encher a garrafa lá dentro de casa, tinha de voltar outra vez para enchê-la de novo. "Olha que estafa! Vão beber pro diabo!" Afinal apareceu com o garrafão e pousou-o no meio da roda.

— Querem saber! Empinem por aí mesmo, que já estou com os quartos doendo de tanto andar de lá pra cá!

Essa noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando João Romão entrou, de volta da casa do Miranda, encontrou-a a dançar ao som de palmas, gritos e risadas, no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e com o pé embaraçavam-lhe as pernas, para a ver cair e rebolar-se no chão.

O vendeiro, de fraque e chapéu alto, foi direito ao grupo, então muito mais reforçado de gente, e intimou a todos que se recolhessem. Aquilo já não eram horas para semelhante algazarra!

— Vamos! Vamos! Cada um para a sua casa!

Piedade foi a única que protestou, reclamando o seu direito de brincar um pouco com os amigos.

Que diabo! não estava fazendo mal a ninguém!

— Ora vá mas é pra cama cozer a mona! vituperou-lhe João Romão, repelindo-a. Você, com uma filha quase mulher, não tem vergonha de estar aqui a servir de palhaço?! Forte bêbada!

Piedade assomou-se com a descompostura, quis despicar-se, chegou a arregaçar as mangas e sungar a saia; mas o Pataca meteu-se no meio e conteve-a, pedindo a João Romão que não levasse aquilo em conta, porque era tudo cachaça.

— Bom, bom, bom! mas aviem-se! Aviem-se!

E não se retirou sem ver a roda dissolvida, e cada qual procurando a casa.

Recolheram-se todos em silêncio; só o Pataca e Piedade deixaram-se ficar ainda no pátio, a discutir o ato do vendeiro. O Pataca também estava bastante tocado. Ambos reconheciam que lhes não convinha demorar-se ali, porém nenhum dos dois se sentia disposto a meter-se no quarto.

— Você tem lá alguma coisa que beber em casa?... perguntou ele afinal.

Ela não sabia ao certo; foi ver. Havia meia garrafa de parati e um resto de vinho. Mas era preciso não fazer barulho, por’mor da pequena que estava dormindo.

Entraram em ponta de pés, a falar surdamente. Piedade deu mais luz ao candeeiro.

— Olha agora! Vamos ficar às escuras! Acabou-se o gás!

O Pataca saiu, para ir a casa buscar uma vela, e de volta trouxe também um pedaço de queijo e dois peixes fritos, que levou ao nariz da lavadeira, sem dizer nada. Piedade, aos bordos, desocupou a mesa do engomado e serviu dois pratos. O outro reclamou vinagre e pimenta e perguntou se havia pão.

— Pão há. O vinho é que é pouco!

— Não faz mal! Vai mesmo com a caninha!

E assentaram-se. O cortiço dormia já e só se ouviam, no silêncio da noite, cães que ladravam lá fora na rua, tristemente. Piedade começou a queixar-se da vida; veio-lhe uma crise de lágrimas e soluços. Quando pôde falar contou o que lhe sucedera essa tarde, narrou os pormenores da sua ida com a filha à procura do marido, o jantar em comum com a peste da mulata, e afinal a sua humilhação de vir de lá enxovalhada e corrida.

Pataca revoltou-se, não com o procedimento de Jerônimo, mas com o dela.

Rebaixar-se àquele ponto! com efeito!... Ir procurar o homem lá na casa da outra!... Oh!

— Ele tratou-me bem, quando lá fui da primeira vez... Hoje é que não sei o que tinha: só faltou pôr-me na rua aos pontapés!

— Foi bem feito! Ainda acho pouco! Devia ter-lhe metido o pau, para você não ser tola!

— É mesmo!

— Pois não! O que não falta são homens, filha! O mundo é grande! Para um pé doente há sempre um chinelo velho!— E ferrou-lhe a mão nas pernas:— Chega-te para mim, que te esqueceras do outro!

Piedade repeliu-o. Que se deixasse de asneiras!

— Asneiras! É o que se leva desta vida!

A pequena acordara lá no quarto e viera descalça até à porta da sala de jantar, para espiar o que faziam os dois.

Não deram por ela.

E a conversa prosseguiu, esquentando a medida que a garrafa de parati se esvaziava. Piedade deu de mão aos seus desgostos, pôs-se a papaguear um pouco; as lágrimas foram-se-lhe; e ela manducou então com apetite, rindo já das pilhérias do companheiro, que continuava a apalpar-lhe de vez em quando as coxas.

Aquelas coisas, assim, sem se esperar, é que tinham graça!... dizia ele, excitado e vermelho, comendo com a mão, a embeber pedaços de peixe no molho das pimentas. Bem tolo era quem se matava!

Depois lembrou que não viria fora de propósito uma xicrinha de café.

— Não sei se há, vou ver, respondeu a lavadeira, erguendo-se agarrada à mesa.

E bordejou até à cozinha, a dar esbarrões pela direita e pela esquerda.

— Tento no leme, que o mar está forte! exclamou Pataca, levantando-se também, para ir ajudá-la.

Lá perto do fogão agarrou-a de súbito, como um galo abafando uma galinha.

— Larga! repreendeu a mulher, sem forças para se defender.

Ele apanhou-lhe as fraldas.

— Espera! Deixa!

— Não quero!

E ria-se por ver a atitude cômica do Pataca vergado defronte dela.

— Que mal faz?.. Deixa!

— Sai daí, diabo!

E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao chão.

— Olha que peste! resmungou a desgraçada, quando o adversário conseguiu saciar-se nela. Marraios te partam!

E deixou-se ficar por terra. Ele pôs-se de pé e, ao encaminhar-se para a sala de jantar, sentiu uma ligeira sombra fugir em sua frente. Era a pequena, que fora espiar à porta da cozinha.

Pataca assustara-se.

— Quem anda aqui a correr como gato?... perguntou voltando a ter com Piedade, que permanecia no mesmo lugar, agora quase adormecida.

Sacudiu-a.

— Olá! Queres ficar ai, ó criatura! Levanta-te! Anda a ver o café!

E, tentando erguê-la, suspendeu-a por debaixo dos braços. Piedade, mal mudou a posição da cabeça, vomitou sobre o peito e a barriga uma golfada fétida.

— Olha o demo! resmungou Pataca. Está que se não pode lamber!

E foi preciso arrastá-la até a cama, que nem uma trouxa de roupa suja. A infeliz não dava acordo de si.

Senhorinha acudira, perguntando aflita o que tinha a mãe.

— Não é nada, filha! explicou o Pataca. Deixe-a dormir, que isso passa! Olha! se há limão em casa passa-lhe um pouco atrás da orelha, e veras que amanhã acorda fina e pronta pra outra!

A menina desatou a soluçar.

E o Pataca retirou-se, a dar encontrões nos trastes, furioso, porque, afinal, não tomara café.

Sebo!