O Cortiço/XXI
Ao mesmo tempo, João Romão, em chinelas e camisola, passeava de um para outro lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul e branco com florinhas amarelas fingindo ouro; havia um tapete aos pés da cama, e sobre a peniqueira um despertador de níquel, e a mobília toda era já de casados, porque o esperto não estava para comprar móveis duas vezes.
Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia lá embaixo num vão de escada, aos fundos do armazém, perto da comua.
Mas que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?
E coçava a cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver-se livre dela.
É que nessa noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava-o para marido e Dona Estela ia marcar o dia do casamento.
O diabo era a Bertoleza!...
E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solução para o problema.
Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso?
E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranqüilo obstáculo que lá estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em silêncio um mal horrível, perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe, talvez sem consciência, a chegada desse belo futuro conquistado à força de tamanhas privações e sacrifícios! Que ferro!
Mas, só com lembrar-se da sua união com aquela brasileirinha fina e aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava-se defronte da desensofrida avidez da sua vaidade. Em primeiro lagar fazia-se membro de uma família tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estela; em segundo lagar aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que era rica e, em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o que o Miranda possuía, realizando-se deste modo um velho sonho que o vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro, associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o lagar e fazer de si um verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco estivesse navegando ao largo a todo o pano — tome lá alguns pares de contos de réis e passe-me para cá o titulo de Visconde!
Sim, sim, Visconde! Por que não? e mais tarde, com certeza, Conde! Eram favas contadas!
Ah! ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos últimos anos o firme propósito de fazer-se um titular mais graduado que o Miranda. E, só depois de ter o titulo nas unhas, é que iria à Europa, de passeio, sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adulações, liberal, pródigo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!
E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.
— É exato! E a Bertoleza?... repetia o infeliz, sem interromper o seu vaivém ao comprido da alcova.
Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apagá-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de reunir aos vôos mais fulgurosos da sua ambição a idéia mesquinha e ridícula daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar no demônio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondá-lo ameaçadora e sombria; ali estava como o documento vivo das suas misérias, já passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo que havia de mau na vida dele! Seria um crime conservá-la a seu lado! Ela era o torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas à portuguesa; era o sono roncado num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a sua cúmplice e era todo seu mal— devia, pois, extinguir-se! Devia ceder o lagar à pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas caras; era enfim a doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.
Mas, e a Bertoleza?...
Sim! era preciso acabar com ela! despachá-la! sumi-la por uma vez!
Deu meia-noite no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé ante pé, como um criminoso que leva uma idéia homicida.
A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada de lado, com a cara escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo da cabeça. Aparecia-lhe uma parte do corpo nua.
João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco.
E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!... Parecia impossível!
— E se ela morresse?...
Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém já amadurecida e transformada nesta outra:
— E se eu a matasse?
Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos.
Além disso, como?... Sim, como poderia despachá-la, sem deixar sinais comprometedores do crime?... Envenenando-a?... Dariam logo pela coisa!... Matá-la a tiro?... Pior! Levá-la a um passeio fora da cidade, bem longe e, no melhor da festa, atirá-la ao mar ou por um despenhadeiro, onde a morte fosse infalível?... Mas como arranjar tudo isso, se eles nunca passeavam juntos?...
Diabo!
E o desgraçado ficou a pensar, abstrato, de castiçal na mão, sem despregar os olhos de cima de Bertoleza, que continuava imóvel, com o rosto escondido no braço.
— E se eu a esganasse aqui mesmo?...
E deu, na ponta dos pés, alguns passos para frente, parando logo, sem deixar nunca de contemplá-la.
Mas a crioula ergueu de improviso a cabeça e fitou-o com os olhos de quem não estava dormindo.
— Ah! fez ele.
— Que é, seu João?
— Nada. Vim só ver-te... Cheguei ainda não há muito... Como vais tu? Passou-te a dor do lado?...
Ela meneou os ombros, sem responder ao certo. Houve um silêncio entre os dois. João Romão não sabia o que dizer e saiu afinal, escoltado pelo imperturbável olhar da crioula, que o intimava mesmo pelas costas.
— Teria desconfiado? pensou o miserável, subindo de novo para o quarto. Qual! Desconfiar de quê?...
E meteu-se logo na cama, disposto a não pensar mais nisso e dormir incontinenti. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o mesmo assunto.
— É preciso despachá-la! É preciso despachá-la quanto antes, seja lá como for! Ela, até agora, não deu ainda sinal de si; não abriu o bico a respeito da questão; mas, Dona Estela está a marcar o dia do casamento; não levará muito tempo para isso... o Miranda naturalmente comunica a noticia aos amigos... o fato corre de boca em boca... chega aos ouvidos da crioula e esta, vendo-se abandonada, estoura! estoura com certeza! E agora o verás! Como deve ser bonito, hein?... Ir tão bem até aqui e esbarrar na oposição da negra!... E os comentários depois!... O que não dirão os invejosos lá da praça?... " Ah, ah! ele tinha em casa uma amiga, uma preta imunda com quem vivia! Que tipo! Sempre há de mostrar que e gentinha de laia muito baixa!... E aqui a engazopar-nos com uns ares de capitalista que se trata à vela de libra! Olha o carapicu pra que havia de dar. Sai sujo!" E, então, a família da menina, com medo de cair também na boca do mundo, volta atrás e dá o dito por não dito! Bem sei que ela está a par de tudo; isso, olé, se está! mas finge-se desentendida, porque conta, e com razão, que eu não serei tão parvo que espere o dia do casamento sem ter dado sumiço à negra! contam que a coisa correrá sem o menor escândalo! E eu, no entanto, tão besta que nada fiz! E a peste da crioula está ai senhora do terreiro como dantes, e não descubro meio de ver-me livre dela!... Ora já se viu como arranjei semelhante entalação?... Isto contado não se acredita!
E pisava e repisava o caso, sem achar meio de dar-lhe saída!
Diabo!
— Ela há muito que devia estar longe de mim... fiz mal em não cuidar logo disso antes de mais nada!... Fui um pedaço d’asno! Se eu a tivesse despachado logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém desconfiaria da história: "Por que diabo iria o pobre homem dar cabo de uma mulher, com quem vivia na melhor paz e que era até, dentro de casa, o seu braço direito?..." Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois da separação das camas, e principalmente depois que corresse a noticia do casamento, não faltaria decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse morta de repente!
Diabo!
Deram quatro horas, e o desgraçado nada de pregar olho; continuava a matutar sobre o assunto, virando-se de um para outro lado da sua larga e rangedora cama de casados. Só pelo abrir da aurora, conseguiu passar pelo sono; mas, logo às sete da manhã, teve de pôr-se a pé: o cortiço estava todo alvoroçado com um desastre.
A Machona lavava à sua tina, ralhando e discutindo como sempre, quando dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos, trouxeram-lhe sobre uma tábua o cadáver ensangüentado do filho. Agostinho havia ido, segundo o costume, brincar à pedreira com outros dois rapazitos da estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precipício, subido a uma altura superior a duzentos metros do chão e, de repente, faltara-lhe o equilíbrio e o infeliz rolou de lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes.
Todo ele, coitadinho, era uma só massa vermelha; as canelas, quebradas no joelho, dobravam moles para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada, abrira no casco e despejava o pirão dos miolos; numa das mãos faltavam-lhe todos os dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra.
Foi um alarma no pátio quando ele chegou.
Cruzes! que desgraça!
Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma síncope; Nenen ficou que nem doida, porque el a queria muito àquele irmão; a das Dores imprecou contra os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se daquele modo em presença deles; a mãe, essa apenas soltou um bramido de monstro apunhalado no coração e caiu mesquinha junto do cadáver, a beijá-lo, vagindo como uma criança. Não parecia a mesma!
As mães dos outros dois rapazitos esperavam imóveis e lívidas pela volta dos filhos, e, mal estes chegaram à estalagem, cada uma se apoderou logo do seu e caiu-lhe em cima, a sová-los ambos que metia medo.
— Mira-te naquele espelho, tentação do diabo! exclamava uma delas, com o pequeno seguro entre as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas. Não era aquele que devia ir, eras tu, peste! aquele, coitado! ao menos ajudava a mãe, ganhava dois mil-réis por mês regando as plantas do Comendador, e tu, coisa-ruim, só serves para me dar consumições! Toma! Toma! Toma!
E o chinelo cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes.
João Romão chegou ao terraço de sua casa, ainda em mangas de camisa, e de lá mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os seus hábitos impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no intimo, tomado de estranhas condolências.
Pobre pequeno! tão novo... tão esperto... e cuja vida não prejudicava a ninguém, morrer assim, desastradamente!... ao passo que aquele diabo velho da Bertoleza continuava agarrado à existência, envenenando-lhe a felicidade, sem se decidir a despachar o beco!
E o demônio da crioula parecia mesmo não estar disposta a ir só com duas razões; apesar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas pernas curtas e lustrosas eram duas peças de ferro unidas pela culatra, das quais ela trazia um par de balas penduradas em saco contra o peito; as róseas lustrosas do seu cachaço lembravam grossos chouriços de sangue, e na sua carapinha compacta ainda não havia um fio branco. Aquilo, arre! tinha vida para o resto do século!
— Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseado!... disse o vendeiro de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se.
Enfiava o colete quando bateram pancadas familiares na porta do corredor.
— Então?! Ainda se está em val de lençóis?...
Era a voz do Botelho.
O vendeiro foi abrir e fê-lo entrar ali mesmo para a alcova.
— Ponha-se a gosto. Como vai você?
— Assim. Não tenho passado lá essas coisas...
João Romão deu-lhe noticia da morte do Agostinho e declarou que estava com dor de cabeça. Não sabia que diabo tinha ele aquela noite, que não houve meio de pegar direito no sono.
— Calor... explicou o outro. E prosseguiu depois de uma pausa, acendendo um cigarro: pois eu vinha cá falar-lhe... Você não repare, mas...
João Romão supôs que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se para a defesa, queixando-se inopinadamente de que os negócios não lhe corriam bem; mas calou-se, porque o Botelho acrescentou com o olhar fito nas unhas:
— Não devia falar nisto... são coisas suas lá particulares, em que a gente não se mete, mas...
O taberneiro compreendeu logo onde a visita queria chegar e aproximou-se dele, dizendo confidencialmente:
— Não! Ao contrário! fale com franqueza... Nada de receios...
— É que... sim, você sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a Zulmirinha... Lá em casa não se fala agora noutra coisa... até a própria Dona Estela já está muito bem disposta a seu favor... mas...
— Desembuche, homem de Deus!
— É que há um pontinho que é preciso pôr a limpo... Coisa insignificante, mas...
— Mas, mas! você não desembuchará por uma vez?... Fale, que diabo!
Um caixeiro do armazém apareceu à porta, prevenindo de que o almoço estava na mesa.
— Vamos comer, disse João Romão. Você já almoçou?
— Ainda não, mas lá em casa contam comigo...
O vendeiro mandou o seu empregado dizer lá defronte à família do Barão que seu Botelho não ia ao almoço. E, sem tomar o casaco, passou com a visita à sala de jantar.
O cheiro ativo dos móveis, polidos ainda de fresco, dava ao aposento um caráter insociável de lagar desabitado e por alagar. Os trastes, tão nus como as paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova.
— Mas vamos lá! Que temos então?... inquiriu o dono da casa, assentando-se à cabeceira da mesa, enquanto o outro, junto dele, tomava lugar à extremidade de um dos lados.
— É que, respondeu o velho em tom de mistério, você tem cá em sua companhia uma... uma crioula, que... Eu não creio, note-se, mas...
— Adiante!
— É! Dizem que ela é coisa sua... Lá em casa rosnou!... O Miranda defende-o, afirma que não... Ah! aquilo é uma grande alma! mas Dona Estela, você sabe o que são as mulheres!... torce o nariz e... Em uma palavra: receio que esta história nos traga qualquer embaraço!...
Calou-se, porque acabava de entrar um portuguesinho, trazendo uma travessa de carne ensopada com batatas.
João Romão não respondeu, mesmo depois que o pequeno saiu; ficou abstrato, a bater com a faca entre os dentes.
— Por que você a não manda embora?... arriscou o Botelho, despejando vinho no seu e no copo do companheiro.
Ainda desta vez não obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal, uma resolução, declarou confidencialmente:
— Vou dizer-lhe toda coisa como ela é... e talvez que você até me possa auxiliar!...
Olhou para os lados, chegou mais a sua cadeira para junto da de Botelho e acrescentou em voz baixa:
— Esta mulher meteu-se comigo, quando eu principiava minha vida... Então, confesso... precisava de alguém nos casos dela, que me ajudasse... e ajudou-me muito, não nego! Devo-lhe isso! não! ajudar-me ajudou! mas...
— E depois?
— Depois, ela foi ficando para ai; foi ficando... e agora...
— Agora é um trambolho que lhe pode escangalhar a igrejinha! É o que é!
— Sim, que dúvida! pode ser um obstáculo sério ao meu casamento! Mas, que diabo! eu também, você compreende, não a posso pôr na rua, assim, sem mais aquelas!... Seria ingratidão, não lhe parece?...
— Ela já sabe em que pé está o negócio?...
— Deve desconfiar de alguma coisa, que não é tola!... Eu, cá por mim, não lhe toquei em nada...
— E você ainda faz vida com ela?
— Qual! há muito tempo que nem sombras disso...
— Pois, então, meu amigo, é arranjar-lhe uma quitanda em outro bairro; dar-lhe algum dinheiro e... Boa viagem! O dente que já não presta arranca-se fora!
João Romão ia responder, mas Bertoleza assomou à entrada da sala. Vinha tão transformada e tão lívida que só com a sua presença intimidou profundamente os dois. A indignação tirava-lhe faiscas dos olhos e os lábios tremiam-lhe de raiva. Logo que falou veio-lhe espuma aos cantos da boca.
— Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira a toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!
— Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te à toa?... perguntou o capitalista.
— Eu escutei o que você conversava, seu João! A mim não me cegam assim só! Você é fino, mas eu também sou! Você está armando casamento com a menina de seu Miranda!
— Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!... Não hei de ficar solteiro toda a vida, que não nasci para podengo. Mas também não te sacudo na rua, como disseste; ao contrário agora mesmo tratava aqui com o seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e...
— Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor me deu força e saúde!
— Mas afinal que diabo queres tu?!
— Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu!
— Mas não vês que isso é um disparate?... Tu não te conheces?... Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras! Descansa que nada te há de faltar!... Tinha graça, com efeito, que ficássemos vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento!
— Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e agüentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?... Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!
João Romão perdeu por fim a paciência e retirou-se da sala, atirando à amante uma palavrada porca.
— Não vale a pena encanzinar-se... segredou-lhe o Botelho, acompanhando-o até a alcova, onde o vendeiro enterrou com toda a força o chapéu na cabeça e enfiou o paletó com a mão fechada em murro.
— Arre! Não a posso aturar nem mais um instante! Que vá para o diabo que a carregue! em casa é que não me fica!
— Calma, homem de Deus! Calma!
— Se não quiser ir por bem, ira por mal! Sou eu quem o diz!
E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atrás de si o velhote, que mal podia acompanhá-lo na carreira. Já na esquina da rua parou e, fitando no outro o seu olhar flamejante, perguntou-lhe:
— Você viu?!
— É... resmungou o parasita, de cabeça baixa, sem interromper os passos.
E seguiram em silêncio, andando agora mais devagar; ambos preocupados.
No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava quando João Romão tomou conta dela.
Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em metê-la como idiota no Hospício de Pedro 11, mas acudia-lhe agora coisa muito melhor: entregá-la ao seu senhor, restituí-la legalmente à escravidão.
Não seria difícil... considerou ele; era só procurar o dono da escrava, dizer-lhe onde esta se achava refugiada e aquele ir logo buscá-la com a polícia.
E respondeu ao Botelho:
— Era e é!
— Ah! Ela é escrava? De quem?
— De um tal Freitas de Melo. O primeiro nome não sei. Gente de fora. Em casa tenho as notas.
— Ora! então a coisa é simples!... Mande-a p’ro dono!
— E se ela não quiser ir?...
— Como não?! A polícia a obrigará! É boa!
— Ela há de querer comprar a liberdade...
— Pois que a compre, se o dono consentir!... Você com isso nada mais tem que ver! E se ela voltar à sua procura, despache-a logo; se insistir, vá então à autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para serem bem feiras, fazem-se assim ou não se fazem! Olhe que aquele modo com que ela lhe falou há pouco é o bastante para você ver que semelhante estupor não lhe convém dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe até: já não só pelo fato do casamento, mas por tudo! Não seja mole!
João Romão escutava, caminhando calado, sem mais vislumbres de agitação. Tinham chegado à praia.
— Você quer encarregar-se disto? propôs ele ao companheiro, parando ambos à espera do bonde; se quiser pode tratar, que lhe darei uma gratificação menos má...
— De quanto?...
— Cem mil-réis!
— Não! dobre!
— Terás os duzentos!
— Está dito! Eu cá, pra tudo que for pôr cobro a relaxamento de negro, estou sempre pronto!
— Pois então logo mais à tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o lugar em que ele residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar a respeito.
— E o resto fica a meu cuidado! Pode dá-la por despachada!