O Coruja/I/VI

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— É bem feiozinho, benza-o Deus! o tal teu amigo!... disse o barão ao filho, enquanto André se afastava para ir buscar a sua trouxa.

— Sim, mas um belo rapaz, respondeu Teobaldo. Tem por mim uma cega dedicação.

— Embora! É muito antipático! Está sempre a olhar tão desconfiado para a gente!... E parece mudo — só me respondeu com a cabeça e com os ombros às perguntas que lhe fiz.

— É assim com todos.

— Nem sei como vocês se fizeram amigos. Então tu, que, segundo me disse ainda há pouco o Mosquito, não te chegas muito para os teus colegas.

— Só me chego para o Coruja. É o único.

Coitado! O reverendo, ao que parece, não morre de amores por ele; nem à mão de Deus Padre queria carregá-lo para casa.

— Um mau sujeito, o tal reverendo!

— Mas, com certeza não foi por maldade que o recolheu à sua proteção.

— Não sei. Talvez!...

Emílio olhou mais atentamente para o filho e disse sorrindo:

— Tens as vezes coisas que me surpreendem. Com quem aprendeste tu a desconfiar desse modo dos teus semelhantes?

— Contigo. Não me tens dito tantas vezes que gente deve desconfiar de todo o mundo?

— Para não sofrer decepções a cada passo.. exato!

— E que, no caso de erro, é preferível sempre nos enganarmos contra, do que a favor de quem quer que seja!...

— De certo. O homem deve sempre colocar-se superior a tudo e fazer por dominar a todos. O mundo, meu filho, compõe-se apenas de duas classes — a dos fortes e a dos fracos; os fortes governam, os outros obedecem. Ama aos teus semelhantes, mas não tanto como a ti mesmo, e entre amar e ser amado, prefere sempre o último; da mesma forma que deves preferir sempre dar a pedir, principalmente se o obséquio for de dinheiro.

— Achas mau que eu seja amigo do Coruja?

— Ao contrário, acho excelente. Essa escolha, entre tantos colegas mais bem parecidos, confirma o bom juízo que faço do teu orgulho, e mostra que tens sabido aproveitar-te dos meus conselhos.

— Não compreendo.

— Também ainda é cedo para isso. É preciso dar tempo ao tempo.

O Coruja reapareceu sobraçando a sua pequena mala de couro cru.

— Pronto? perguntou-lhe Teobaldo.

O outro meneou a cabeça, afirmativamente.

— Pois então a caminho! exclamou Emílio, descendo a escada na frente dos rapazes.

Um carro os esperava à porta do colégio; o cocheiro tomou conta das bagagens; Emílio fez subir os dois meninos e sentou-se defronte deles.

André, muito esquerdo com a sua roupinha de sarja, que ia já lhe ficando curta, não olhava de frente para os companheiros e parecia aflito naquela posição; ao passo que Teobaldo, muito filho de seu pai, conversava pelos cotovelos, dizia o que vira, praticara e assistira durante o ano, criticando os colegas, ridicularizando os professores e, ao mesmo tempo, fazendo espirituosos comentários sobre tudo que lhe passava defronte dos olhos pela estrada.

Chegaram à fazenda às oito horas da noite. Vieram recebê-los ao portão a Sra. baronesa e mais a irmã, D. Geminiana, acompanhadas ambas pelo Caetano, que trazia uma lanterna.

Santa lançou-se ao encontro do filho, cobrindo-o de beijos sôfregos e a chorar e a rir ao mesmo tempo, enquanto um escravo, que acudira logo, desembarcava as malas e ajudava o cocheiro a desatrelar os animais.

Teobaldo passou dos braços da mãe para os da tia, que não menos o idolatrava, apesar de ser um tanto resingueira de gênio.

— O nosso morgado traz-lhe um hóspede! declarou o barão, empurrando brandamente o Coruja para junto das senhoras É aquele amigo de que ele fala nas cartas. Vem fazer-lhe companhia durante as férias.

André, muito atrapalhado de sua vida, porque jamais se vira em tais situações, quando deu por si estava nos braços da mãe do seu amigo e recebia um beijo na testa.

Coitado! Que estranhas sensações não lhe produziu aquele beijo, ainda quente da ternura com que foram dados os outros no verdadeiro filho! Há quanto tempo não aspirava o pobre órfão essa flor ideal do amor, essa flor sonora — o beijo!

Depois de sua mãe ninguém mais o beijara. E Santa, sem saber, acabava de abrir o coração do desgraçado um sulco luminoso, que penetrava até às suas mais fundas reminiscências da infância.

— Este menino está chorando! considerou D. Geminiana, que até aí observara o Coruja como quem contempla um bicho raro.

— Que tens tu? perguntou Teobaldo ao amigo.

— Nada, respondeu este, limpando as lágrimas na manga da jaqueta.

E o seu gesto era tão desgracioso, coitadinho, que todos, à exceção de Santa, puseram-se a rir.

— Não é nada, com efeito! A comoção talvez!... exclamou Emílio, batendo levemente nas costas de André. — Há muito tempo que não se vê entre família! Daqui a pouco nem se lembrará que chorou... Não é verdade, amiguinho?

O Coruja disse que sim, enterrando a cabeça nos ombros.

— Mas, vamos para cima, que eu estou morrendo por comer! protestou Teobaldo, passando os braços em volta da cinta das duas senhoras e obrigando-as a acompanhá-lo.

Assim subiram a pequena alameda de mangueiras que conduzia à casa e, dentro em pouco, penetravam todos na sala de jantar.

A despeito de se achar naquelas alturas, Emílio cercava-se de todas as comodidades que lhe permitia a época. O seu primeiro casamento abrira-lhe o gosto pelos objetos do luxo asiático e trouxera-lhe uma riquíssima coleção de louças, de sedas e cachemiras, xarões, marfins, pinturas, objetos de goma-laca, tetéias de sândalo e tartaruga, e tudo mais que era de costume nesse tempo introduzirem no Brasil os portugueses vezeiros no comércio das Índias.

Viam-se aí também, pelas paredes, quadros antigos, de santos, alguns dos quais haviam pertencido a D. João VI, e das mãos deste passado às do avô de Teobaldo. Viam-se igualmente estalados retratos de damas e cavalheiros da corte de D. José e D. Maria I, detestavelmente pintados, nas suas pitorescas vestimentas do século XVIII e defronte de cujas telas inutilizadas e ressequidas pelo antiaristocrático sol brasileiro, habituara-se o velho Caetano a possuir-se de todo o respeito, porque lhe contava que entre aqueles figurões havia parentes do seu rico amo.

E, ao lado da mobília, relativamente nova, descobriam-se clássicas peças de madeira preta, que juntavam ao aspecto daquelas salas uma nota religiosa e grave.

Na biblioteca, aliás bem guarnecida, destacavam-se, por entre as estantes, antigas armas portuguesas, dispostas em simetria e caprichosamente entrelaçadas por arcos e flechas do Brasil. Na sala de jantar, dominando a larga e longa mesa da comida, havia um grande retrato de Cromwell, representado na ocasião em que ele invadiu o parlamento inglês de chicote em punho.

O Coruja passou por tudo isso, às cegas, sem ânimo de olhar para coisa alguma. O desgraçado sentia perfeitamente que agora, à luz das velas, a sua antipática figura havia de produzir sobre todos uma impressão ainda muito mais desagradável do que a primeira; sentia-se mais feio, mais irracional, posto em contraste com aquela gente e com aqueles objetos.

Mal se assentaram à mesa, D. Geminiana continuou a observá-lo fixamente e concluiu afinal o seu julgamento franzindo os cantos da boca em um trejeito de repugnância; Santa, porém, não se mostrou tão desagradada e chegou a sorrir para o Coruja, quando lhe passou o prato de sopa.

O barão que havia tomado a cabeceira, fizera sentar o filho ao seu lado e, segundo o costume, conversava com ele, como se estivesse defronte de um homem.

Entretanto, o Coruja continuava tão mudo e tão fechado, que do meio para o fim do jantar ninguém mais se animava a dirigir-lhe a palavra.

Depois do café, Santa ergueu-se da mesa e foi pessoalmente dar suas ordens para que nada faltasse ao taciturno hóspede; mandou acrescentar uma cama no quarto do filho e disse ao outro que podia recolher-se quando quisesse.

Coruja apertou a mão de todos, um por um, e meteu-se no quarto.

Já vais? perguntou-lhe o amigo. És um mau companheiro!

Na sala, onde ficou ainda a família, a conversar por algum tempo, veio o Coruja à discussão. Emílio contou o diálogo que ouvira entre o padre e o diretor do colégio, e Geminiana, que parecia disposta a não perdoar ao órfão o ser tão desengraçado, acabou ela própria louvando o procedimento do cunhado.