O Coruja/II/XXII
Às nove horas da noite Teobaldo partira para Botafogo dentro de um cupê, em cuja boléia o Coruja e mais o Sabino empertigavam-se denodadamente como se foram legítimos cocheiros.
Era para ver o grave professor enfronhado naquela libré já russa, de botões enverdecidos de azinhavre, e todo austero, inalterável, possuído da mesma gravidade com que se assentava ao lado da noiva ou recolhia na aula as lições dos seus rapazes.
Não se lhe desfranzira o sobrolho, nem lhe fugira dos lábios a triste rispidez favorita, como também os seus pequeninos olhos mal abertos conservavam aquela dura expressão antipática e sem graça, que a todos desagradava e repelia.
Pelas aproximações da casa do comendador o carro seguiu mais lentamente e abordou-a pelos fundos, sem se lhe ouvir o rodar, porque a rua era de areia.
A certa altura, Teobaldo segredou uma palavra ao amigo, saltou em terra e dirigiu-se para o portão traseiro da chácara; aí escondeu-se atrás de uma árvore que havia e assoviou três vezes. Só no fim de alguns minutos um leve rumor de saias fê-lo compreender que alguém se aproximava.
— Teobaldo... disse uma voz medrosa e tímida.
— Estás pronta?
E ele viu desenhar-se na escadaria de pedra, frouxamente iluminado pelas estrelas, o gracioso vulto de Branca.
Ela desceu trêmula e confusa, apoiando-se ao corrimão engrinaldado de verdura, a olhar espavorida para todos os lados, até chegar embaixo.
— Vem, disse Teobaldo a meia voz.
— Tenho medo... balbuciou a menina, encostando-se ao pilar da escada, sem ânimo de dar um passo em frente.
O rapaz abriu cautelosamente o portão e foi ter com ela.
— Não tenhas receio, minha Branca, segredou-lhe, passando-lhe um braço na cintura. — Lembra-te de que, se não aproveitarmos esta ocasião, nunca mais seremos um do outro. Dei já todas as providências: uma família espera por ti e ao raiar do dia estaremos casados. Vem! Nada de hesitações, vem, antes que nos surpreendam aqui.
— Vê como estou gelada... balbuciou ela, pousando a sua mãozinha fria sobre o rosto do namorado. O coração parece que me quer saltar de dentro do peito... Oh! não pensei que me custaria tanto a dar este passo...
Teobaldo puxou-a brandamente até à rua e, com um sinal, fez aproximar-se o carro, para onde ele a levou nos braços.
— Deus me proteja!... suspirou Branca, deixando-se cair sobre as almofadas, como se perdera os sentidos.
— Toca! ordenou o raptor ao Coruja.
O carro disparou. Então a menina deixou pender a cabeça sobre o colo do amante e abriu a soluçar.
D. Margarida e a filha esperavam por eles.
Não foi, porém, sem dificuldade que o Coruja logrou capacitar a velha de que não devia fugir a semelhante obséquio, e é de crer que ela cedesse mais por espírito de curiosidade do que pelo simples gosto de servir ao futuro genro: aquilo, afinal, era um escândalo, e a mãe de Inez dava o cavaquinho pelos escândalos.
Branca chegou lá às dez e meia da noite, e D. Margarida, ao dar com o Coruja muito sério e disfarçado em cocheiro, exclamou benzendo-se:
— Credo, seu Miranda! Que trajos são esses, homem de Deus?
Teobaldo despediu o carro, fez servir uma ceia que mandara trazer do hotel e ordenou ao Sabino que tornasse a Botafogo e ficasse até pela madrugada a rondar a casa do comendador, para ver se haveria alguma novidade.
Puseram-se todos à mesa e, a despeito da crescente aflição da foragida, riram e conversaram, sem cuidar nas horas que fugiam, porque estavam mais que dispostos a passar a noite inteira na palestra e na bisca de sete.
— Vê!... disse Margarida, dirigindo-se a André e apontando para Branca e Teobaldo, que alheados conversavam juntos, quando a gente quer as coisas deveras faz como aqueles...
O Coruja remexeu-se ao lado de Inez, e a velha acrescentou:
— E note-se que estes para casar topavam outras dificuldades que já o senhor não encontra para casar com minha filha!...
— O meu caso é muito diferente... resmungou por fim o Coruja — mas muito diferente... Quanto a mim, não se trata de vencer oposições de família; trata-se é de obter os meios necessários para que a senhora e sua filha não venham a sofrer dificuldades depois do meu casamento...
— Ora! Quem tudo quer, tudo perde!
Teobaldo interveio a favor da velha, aconselhando ao amigo que acabasse por uma vez com aquela história, que se casasse logo com a moça, e, depois de apresentar em linguagem colorida as vantagens do matrimônio, fechou o discurso oferecendo a sua casa e a sua mesa ao amigo, apesar de não saber ainda onde havia de se refugiar com Branca depois que a igreja os tivesse legalmente unido.
André abanou as orelhas a tais palavras.
— E por que não? insistiu o outro — não temos porventura conseguido viver juntos até hoje e em perfeita harmonia?... Para que havemos, pois, de separar-nos daqui em diante...
— Para não termos o desgosto, contraveio André, de vermos nossas famílias em guerra constante. Dois rapazes viverão eternamente em boa paz debaixo do mesmo teto; com duas senhoras a coisa é mais difícil e com mais de duas é impossível.
— Agora, isto é exato... confirmou a velha.
— É! arriscou Inez — Quem casa, quer casa!...
Mas declarou logo que, apesar disso, estaria por tudo que deliberassem.
— Pois eu, replicou Teobaldo, afianço desde já que não estou disposto, seja pelo que for, a dispensar a companhia do Coruja, ache-se ele casado, solteiro ou viúvo!
— Se sua mulher ou a dele estiverem por isso!... observou a velha, já em tom de contenda e disposta a armar questão.
— Ora! D. Inez não me parece das mais difíceis de contentar... disse Teobaldo sorrindo.
— Ah! eu estou sempre por tudo... confirmou Inez.
— E quanto a Branca... prosseguiu aquele.
— Desde que me case, atalhou a filha do comendador. — Serei sempre da opinião de meu marido. Só a ele compete decidir.
D. Margarida, pela cara, mostrou não gostar de semelhante teoria; mas a filha em compensação por uma risonha careta que fez ao Coruja, deu a entender que subscrevia as palavras de Branca.
E por este caminho, a conversa deu ainda algumas voltas, até cair de novo no principal assunto: — o rapto, e, às cinco da manhã, quando se dispunham a levantar o vôo para a igreja, ouviram bater à porta da rua.
Teobaldo foi logo abrir.
Era o Sabino. Vinha a botar os bofes pela boca, e com muito custo declarou que estivera por um triz a cair nas unhas da Polícia.
— Mas fala por uma vez! disse-lhe o senhor impacientando-se. — Houve alguma novidade?
— Já se sabe de tudo na casa do homem! explicou o moleque.
— O diabo!
— Ali pela volta das três horas, prosseguiu aquele, ouvi rumor dentro da casa, e, com poucas, era gente a passar com luz para uma banda e para outra, assim como coisa que caçassem alguém; eu me escondi na rua, atrás de uma árvore; eles desceram à chácara, deram com o portão aberto e, pelo jeito, toparam um lenço ou coisa que o valha, porque tudo ficou assanhado!
— E depois?
— Depois vieram à rua, não me bisparam e, tudo seguiu outra vez para riba, e aí foi um berreiro de todos os diabos, que nem se tivesse morrido alguém.
— Mas que teria sucedido, não sabes?
— Não sei não senhor, porque vim me embora...
Embalde procurou Teobaldo esconder de Branca o que acabava de ouvir: foi preciso dizer-lhe tudo, e ela desde então pôs-se a chorar, dominada por terríveis apreensões.
Daí a algumas horas boquejava-se em toda a cidade que a filha do comendador Rodrigues de Aguiar fugira de casa com um vadio de marca maior chamado Teobaldo, o qual a desposara clandestinamente às cinco e meia da madrugada na igreja de Santana; e que o pai da moça, assim que deu por falta desta e quando soube quem era raptor, caíra fulminado por uma congestão cerebral, morrendo logo em seguida, sem dar uma palavra.
Bem dizia o Aguiar que o homem, se lhe chegassem um charuto aceso à ponta do nariz — estourava.
E, com efeito, estourou.