O Coruja/III/II
Teobaldo, ao instalar-se mais a esposa em Botafogo, convidou logo o Coruja a ir morar com eles.
— Ora!... opôs vacilante o amigo.
— Ora, quê?
— Receio incomodá-los; vocês têm lá os seus hábitos de grandeza... estão acostumados a certo modo de vida, a certo luxo, entre o qual o meu tipo esquisito havia de ser uma nota dissonante...
— Não admito que te separes de mim! foi a única resposta de Teobaldo.
Mas, como o outro ainda recalcitrasse, ele acrescentou:
— Também era só o que faltava: era que tu me abandonasses pelo simples fato de me haver eu casado. Tinha graça! Enquanto me vi atrapalhado e sem meios de viver, éramos companheiros de casa e mesa; agora queres desertar. Não deixo!
— Mas...
— Não aceito razões. Hás de ir morar comigo! Coruja cedeu um tanto contrariado, porque previa não se ajeitar àqueles requintes de luxo. O que para Teobaldo representava o encanto e a delícia de uma bela existência, para ele seria nada menos do que um martírio de todos os instantes.
Cedeu, mas com a condição de que iria ocupar um sótão que havia nos fundos da casa.
— O sótão?! exclamou Teobaldo. Ora essa! Pois eu consentiria lá que fosses para o pior lugar da casa, havendo aí outras acomodações tão boas e que de nada me servem?
— Não sei; a ter de ir, só irei para o sótão, e desde já te previno de que não me separo dos meus cacaréus.
— Pois faze o que entenderes, contanto que fiques em minha companhia.
Não era sem razão que o Coruja opunha aquela resistência ao convite do seu querido Teobaldo. Desejava estar junto deste, oh! se desejava! Desejava vê-lo e falar-lhe todos os dias, porque o idolatrava, porque no seu espírito inalterável e escravo dos hábitos Teobaldo se constituíra em ídolo; Teobaldo fora a sua primeira afeição, o seu primeiro amigo, o seu primeiro protetor; André habituara-se a vê-lo crescer no seu reconhecimento e dentro da sua estima, como o único e legítimo senhor; mas também não queria abrir, sem mais nem menos, com o programa de vida que ele próprio traçara, jurando a si mesmo cumpri-lo rigorosamente, porque assim entendia o cumprimento do dever.
Havia coisa de dois anos resolvera o Coruja ir pondo de parte as economias que pudesse, para ver se lograva realizar afinal o seu casamento, cuja transferência de ano para ano já o apoquentava deveras.
E com efeito, depois da morte de Ernestina, conseguiu ajuntar aqueles oitocentos mil réis que serviram para abrandar as iras de Leonília; Teobaldo, em casando, pagou-os logo; mas ainda não foi desta vez que o pobre Coruja viu efetuado o seu desiderato, porque uma nova contrariedade se lhe pôs de permeio.
Foi a seguinte:
Uma noite entrava às horas do costume em casa da noiva, quando esta lhe apareceu muito triste, dizendo entre suspiros que a mãe, desde pela manhã, se queixara de dores na cabeça e fora piorando com o correr do dia, a ponto de ter de largar o serviço e meter-se na cama, já ardendo em febre.
André passou logo ao quarto da velha e encontrou-a em uma grande sonolência e quase sem dar acordo de si. Observou-a em silêncio por alguns segundos, depois tomou de novo o chapéu e foi buscar um médico seu conhecido.
O doutor declarou que a velha tinha varíola de muito mau caráter e que precisava de um bom tratamento.
Daí a pouco toda a vizinhança de Margarida sabia já do fato e começava a alvoroçar-se. Só Inez não se preocupou com ele.
— Para que estar com medos?... disse entre dois muxoxos. Se eu tiver de pegar as bexigas, hei de pegar ainda que fuja para o inferno!
E com a sua filosofia de fatalista, afrontou impavidamente a moléstia da mãe.
No dia seguinte Coruja alugou um enfermeiro, e o médico principiou a visitar a doente com toda a regularidade.
As bexigas foram das piores, pele de lixa, o tratamento muito dispendioso e demorado. Durante a moléstia nada faltou à velha; mas, quando esta se pôs em convalescença e foi para a Tijuca à procura de novos ares em casa de uma amiga, André não tinha mais um só vintém das suas economias.
— Sim, disse ele, para se consolar, gastei tudo é verdade; mas também agora estou desembaraçado de certas despesas e posso mais facilmente ajuntar algum pecúlio.
E, nos quatro meses que se seguiram à enfermidade da velha, entregou-se ele ao trabalho com tal fúria, que, ao entrar no quinto, sua saúde começou de alterar-se consideravelmente.
Apareceram-lhe então terríveis dores na espinha e na caixa do peito; veio-lhe uma tosse seca e constante; e à noite, quando o tempo ia refrescando, sentia ameaços de febre e uma prostração aborrecida que lhe tirava o gosto para tudo.
— Ó Coruja! dizia-lhe o amigo, tu precisas descansar! Dessa forma dás cabo de ti, homem! Olha! Pede uma licença ao colégio e deixa-te ficar aí em casa por algum tempo. Que diabo, não te faltará nada!
Bastava, porém, ao desgraçado lembrar-se do seu compromisso com Inez para não lhe ser possível ficar tranquilo. Além disso, D. Margarida, cuja força de gênio aumentara com a moléstia, cercava-o já com frases desta ordem:
— Também você não ata, nem desata, seu Miranda! No fim de contas vejo que não tratei com um homem sério! Ora pois!
A própria Inez, até aí tão passiva tinha agora de vez em quando as suas rabugens e acompanhava já o serrazinar da velha.
Coruja enfraqueceu afinal; principiou a trabalhar menos e a faltar constantemente às aulas.
— Recolhe-te por uma vez! gritava-lhe Teobaldo. Mas o teimoso fazia ouvido de mercador e lá ia para a frente, ganhando os magros vencimentos de professor e procurando sempre por de parte alguma coisa para o casamento.
— Querem ver que ele agora dá para morrer!... grunhia a velha cada vez mais enfurecida. Se em bom não conseguiu casar, quanto mais doente! Ah! este homem foi uma verdadeira praga que nos caiu em casa!
— E foi mesmo!... confirmava já a moleirona da filha, que sentia ir-se encaminhando para a velhice a passos de granadeiro: foi mesmo uma praga!
E, quando ele lhes aparecia muito pálido, a tossicar dentro do cache-nez, saltavam-lhe ambas em cima:
— Então, então, seu Miranda! Acha que ainda é pouco o debique?
— Tenham um pouco de paciência! um pouquinho mais de paciência. Agora estou fraco; juro, porém, que em breve levantarei a cabeça e tudo se arranjará. Descansem!
— Ora! Quem se fiar no que você diz não tem o que fazer! Diabo do empulhador!
Para as tranquilizar um pouco, enviava-lhes presentes e dava-lhes o dinheiro que podia.
E sempre bom, escondendo de todos as suas privações e os seus desgostos, procurando ocupar no mundo o menor espaço que podia, e sempre superior aos outros, sempre além da esfera de seus semelhantes, atravessava a existência, caminhava por entre os homens sem se misturar com eles, que nem um pássaro que vai voando pelo céu e apenas percorre a terra com a sua sombra.