O Coruja/III/XII

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A singularíssima posição de Teobaldo, entre a chamada melhor sociedade do seu tempo, vinha pura e simplesmente das graças dele, do seu espírito e de seu talento de saber, como ninguém, dar a cada um indivíduo aquilo que lhe era mais lisonjeiro ou agradável; vinha de conseguir agradar ao gosto de todos, desde o Imperador até ao último dos copeiros, sem aliás desgostar a ninguém, o que é muito difícil. A sua invejável atitude de homem raro e desejado por todos procedia em linha reta da sua excepcional habilidade de transformar-se sem o menor esforço, sem que ninguém desse por isso, e amoldando-se ao gosto da pessoa que tinha defronte de si, como a nuvem que percorre uma cordilheira e vai tomando o feitio de cada montanha que atravessa.

Pândego para os pândegos, homem sério para os homens sérios, ele a todos agradava e com todos se afinava, sem aliás perder uma linha da originalidade do seu tipo e da esquisitice do seu gênero, assim como um pintor de talento conserva o seu estilo próprio em mil diversas fisionomias que lhe saem da palheta.

Além dessas, havia uma outra razão, talvez não menos poderosa, e com certeza menos legítima.

Era a paternidade que lhe davam (e contra a qual ele protestava muito frouxamente) de uma famosa série de artigos, então publicados em várias revistas científicas e várias folhas diárias.

A história desses artigos é a seguinte: Coruja, havia muito, entregara-se por gosto e por necessidade de sua índole ao estudo sério e acurado de umas tantas matérias a que em geral chamam áridas, e com as quais Teobaldo não seria capaz de entestar.

Sem imaginação, nem talento inventivo e nem arte, André só assim encontrou meio de usar da sua grande atividade intelectual e foi aos poucos se familiarizando com os estudos econômicos e sociológicos.

Pode ser que esse apetite fosse ainda uma consequência da sua idéia fixa e dominante — a história do Brasil, obra esta a que ele se escravizara desde os seus vinte anos e da qual nunca se distraíra investigando sempre, inalteravelmente, com a calma e a paciência de um sábio velho que se dedica ao trabalho só pelo prazer de trabalhar, sem a menor preocupação de elogio ou glória. Essa obra ainda estava longe de seu termo, mas representava já uma soma enorme de serviço: compilações de todo o gênero e apontamentos de toda a espécie.

— Se eu não conseguir levá-la ao cabo, dizia ele, aí fica bom material para quem o souber aproveitar, dando-lhe a forma literária, que é só o que lhe falta.

E isto que ele dizia a respeito da carcassa da sua obra capital, verificou-se logo com os seus apontamentos sobre questões sociais: um dia Teobaldo fez-lhe algumas perguntas a respeito de elemento servil, locação de serviços e colonização. Coruja satisfez as perguntas do amigo e declarou que tinha consigo algumas notas tomadas nesse sentido.

Os dois subiram ao cubículo de André, e este sacou de uma gaveta de sua velha secretária um grosso pacote, composto de pequenos maços de tiras escritas, sobre cada uma das quais via-se metodicamente lançado um título diverso.

Teobaldo começou a manusear os maços.

Leu o primeiro: "Indústrias", no segundo: "Manufaturas", leu em outro: "Escravidão" e em outro: "Instrução pública".

E continuando a percorre-los, foi encontrando:

"Pequena lavoura - Nacionalização do comércio a retalho - Nunes Machado e seu tempo - Economia rural, decadência do açúcar, nota sobre o inquérito do governo - Exploração do gado lanígero - Administração dos correios - Legislação territorial - Cultura do bicho-de-seda - Plantação da vinha - Colonização, reflexões sobre as cartas do marquês de Abrantes - Discursos sobre o elemento servil por Bernardo de Vasconcelos, Euzébio de Queiroz e João Maurício Vanderley - Guerra do Rosas."

E assim por diante.

— Que diabo tencionas tu fazer disto? perguntou Teobaldo.

— Nada, respondeu André, são notas de considerações, que às vezes acodem e que a gente vai colecionando, para, se algum dia precisar...

— Mas é um tesouro isto que aqui tens!... Deves publicar estas notas!

— Qual! Não despertariam interesse em ninguém; falta-lhes forma literária, não passam de apontamentos; datas, nomes, citações, discursos políticos e nada mais.

— Ora! a forma literária é o menos. Isso arranja-se brincando.

— Pois se quiseres arranjá-la...

— Homem! Está dito! Publicam-se com um pseudônimo. Vais ver o barulhão que isto faz aí!

— Não creio.

— E eu tenho certeza; só com uma vista dolhos já percebi que tomaste nota de todos os fatos mais curiosos de nossa administração pública nestes últimos tempos.

— Ah! Isso é exato; estas notas foram escritas à proporção que se sucediam os fatos, e cada uma tem ao lado as considerações que a respeito dela fez a imprensa.

— São minhas! resumiu Teobaldo, guardando na algibeira as notas do Coruja.

Daí a dias surgia em público o primeiro artigo dos de uma longa série que então se publicaram e que estavam destinados a dar ao marido de Branca uma nova reputação, uma reputação que ele ainda não tinha: — a de homem de bom senso prático e econômico.

As conscienciosas notas de André, floreadas pelas lantejoulas da retórica do outro, converteram-se no objeto da curiosidade pública.

Foi um verdadeiro sucesso; o jornal que as publicou viu a sua tiragem aumentada e os artigos, uma vez colecionados em volume, deram várias edições.

Daí nasceu o prestígio de Teobaldo entre os homens públicos do seu tempo, que desde então começaram a respeitá-lo, se bem que o habilidoso jamais declarasse positivamente ser o autor dos célebres artigos.

Branca, porém, sabia ao certo a quem eles pertenciam de direito e ficou muito seriamente indignada contra o marido uma vez em que este, depois de negar a pé junto que não era o autor dos tais artigos, respondera a um tipo que exigia nesse caso que ele desse a sua palavra de honra.

— Não! isso não! afianço que os artigos não são meus, mas, quanto a dar palavras de honra, não dou!

O fato é que ele ficou sendo desde então considerado uma das primeiras ilustrações do Brasil, tendo ao seu dispor o jornalismo em peso e ao seu serviço a proteção dos homens mais influentes na política.

Podia enfim alargar os seus horizontes e desejar mais largos apesar do seu espírito ser tão inconstante e a sua ambição tão desnorteada.

Agora já não pensava mais em se fazer dono e redator de um jornal; vivia só para uma ideia: entrar na câmara dos deputados.

Um terrível contratempo veio, porém, alterar-lhe a vida.

Nessa ocasião, em vista dos efeitos da guerra, esperava-se que o preço das libras esterlinas subisse extraordinariamente, e Teobaldo, fiado nisso, empregou a melhor parte do que lhe restava em comprar uma boa porção delas para as revender com lucro fabuloso; eis, porém, que a subida inesperada do partido conservador, firmando o crédito do estado, elevou o papel-moeda, deixando o câmbio quase ao par, depois de verificado o empréstimo do Visconde de Itaboraí, do qual se conservou a popular denominação de "bonde em ouro".

Por conseguinte, o dinheiro arriscado nessa especulação de cambiais não foi recuperado; as libras, que aliás haviam chegado excepcionalmente ao valor de 15$ cada uma, desceram de repente e foram vendidas por muito menos do custo.

Teobaldo viu-se perdido. Além de ficar completamente despido de dinheiro, ainda tinha de apresentar seis contos de réis ao seu fornecedor de café em certo dia convencionado, sob pena de perder também o crédito, que era a coisa única com que podia ainda contar para a sua reabilitação.

No entanto só o Coruja, o Aguiar e Branca sabiam da verdade inteira a respeito disso; de todos os mais Teobaldo escondeu a sua crítica situação, convencido de que tudo perdoam aos homens, menos a infelicidade.

Este fato de ter de esconder o seu desespero ainda mais o fazia sofrer, enchendo-lhe as horas de amargura e sobressalto.

Foi então que o Aguiar se chegou para ele e disse, batendo-lhe no ombro:

— Ora, se a questão é de seis contos de réis, não tens que te afligir, eu tos empresto; teu crédito não ficará abalado!

Teobaldo abraçou-o, declarando que o Aguiar acabava de lhe salvar a honra.

— És um verdadeiro amigo! disse-lhe. Se não foras tu, era natural que eu metesse uma bala nos miolos!

Quando Branca se achou a sós com o primo, apertou-lhe a mão muito comovida e repetiu pouco mais ou menos as palavras do esposo.

— Engana-se, respondeu o Aguiar, não foi por ele aquilo, foi simplesmente em honra da senhora.

— Não é então amigo de Teobaldo?

— Eu o detesto.

— Foi nesse caso só por mim que o socorreu?

— Bem sabe que sim.

E chegando-se para ela, acrescentou em voz baixa:

— E que não faria eu por sua causa? Terei porventura alguma outra preocupação que não seja tornar-me aos seus olhos cada vez mais digno? Terei maior ambição do que vê-la satisfeita comigo e perdoando-me o estimá-la mais do que me é permitido... E tanto assim que nada mais lhe peço além de declarar com franqueza o que quer que eu faça; ordene e ver-me-á submisso e escravo a seus pés cumprindo as suas leis.

— Não tenho ordens para lhe dar, nem direito para isso, apenas desejo que meu primo continue a ser meu amigo, e, visto que não está nas mesmas circunstâncias em que eu estou para com Teobaldo, perdoe-lhe as franquezas e as maldades.

— Não! Eu só perdoaria àquele vaidoso se ele a deixasse em paz!

— Não o compreendo e peço licença para retirar-me, sinto-me indisposta; meu marido não tarda aí e far-lhe-á companhia.

Branca afastou-se tranquilamente, sem se mostrar nem de leve receosa das seduções do primo; ao passo que este, sufocando a sua impaciência, deixou-se ficar imóvel no lugar em que estava, a fitá-la pelas costas com o seu comprido olhar de homem teimoso e vingativo.

Que pensará de mim esta mulher? interrogou ele intimamente, cruzando os braços no meio da sala. — Que idéia fará da minha vontade e do meu querer? Pois não perceberá ela que eu, odiando o marido, não faria por este o menor sacrifício, se não fora a esperança de saciar o amor que me põe louco? É impossível que Branca, tão inteligente e tão lúcida, não me compreenda e não perceba as minhas intenções! É impossível que ela me suponha tão fácil de contentar que eu só exija de sua pessoa um casto e fraternal reconhecimento! Ah! mas agora, agora que os tenho seguros por uma dívida de meia dúzia de contos de réis, hei de chegar aos fins a que desejo ou muito terão eles de amargar!

Fazia tais reflexões, quando Teobaldo entrou da rua.

Vinha extremamente pálido e, pelos modos, bastante contrariado.

— Oh! que tens tu? perguntou-lhe o outro, indo ao encontro dele. Estás com uma cara! Alguma coisa te contraria ainda?

— Nada!

— Desconheço-te, homem!

— Nada! não tenho nada! necessidade de repouso.

— Nesse caso, retiro-me...

— Não. Fica à vontade.

— Julgas que é muito agradável suportar-te neste estado?...

— É exato. Confesso que estou preocupado. Mais tarde saberás por que.

— Bem; não falemos mais nisso e conversemos sobre outra coisa.

Mas, daí a meia hora, dizia o Aguiar:

— Não! Tem paciência! Hoje não posso contigo. Adeus. Voltarei quando estiveres mais admissível.

Teobaldo, mal viu sair o amigo, meteu-se no seu gabinete de trabalho, acendeu o gás, fechou-se por dentro e pôs-se a reler uma carta, que tirara da algibeira.

Era uma carta anônima e dizia o seguinte:

Meu adorável Teobaldo.

O feitiço vira-se às vezes contra o feiticeiro: tu, que tens destelhado a valer a honra de vários maridos, estás agora com a tua exposta à chuva e aos ventos... Olha que lhe fazem cada rombo, que até da rua a gente os vê!...

E a graça, adorável Teobaldo, é que deves esse obséquio ao teu melhor amigo, ao teu íntimo, ao teu unha com carne! Coitado do meu Teobaldo!

Se exiges provas do que dizemos, estamos dispostos a dar-tas quando quiseres."

Assinava - Uma das vítimas dos teus encantos.